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O Ocidente contra-ataca: na estreia global de Biden, a China foi o alvo

Após afastamento na era Trump, o presidente americano Joe Biden tenta reconquistar aliados do G7 para seu embate contra a China. Mas não será tão fácil quanto antes

Carolina Riveira
Carolina Riveira

Repórter de Economia e Mundo

Publicado em 18 de junho de 2021 às 06h00.

Última atualização em 21 de abril de 2023 às 15h50.

China: primeira viagem de Biden mostrou o desafio de encontrar "consenso anti-China" (stockinasia/Getty Images)

Se nos primeiros meses de mandato o governo Joe Biden chamou atenção pelas medidas dentro dos EUA — dos pacotes trilionários à vacinação contra a covid-19 —, a semana que passa marcou de vez a entrada da nova gestão americana na cena internacional. Biden, que tomou posse em janeiro, fez nos últimos dias suas aguardadas primeiras reuniões com o G7, grupo das sete democracias mais ricas do mundo, e da Otan, aliança militar ocidental.

Entre um sorriso e outro nas fotos, o democrata tenta colocar os EUA de volta no papel de líder do “mundo livre”. Mas não importou qual era o presidente ou o assunto da vez, um tema não faltou em todos os comunicados multilaterais divulgados na semana: a China.

Capitaneados pelos EUA, líderes de países como Canadá, Japão e europeus divulgaram nos últimos dias mensagens conjuntas mais duras contra as práticas chinesas, sejam elas nas frentes comerciais ou de direitos humanos. A discussão sobre a origem da covid-19, e a possibilidade de o vírus ter saído acidentalmente de um laboratório em Wuhan, também voltou à tona.

Em resposta, Pequim acusou o G7 de "caluniar deliberadamente" a China.

Mais do que pura ameaça retórica, para analistas, as movimentações dão a largada para o que será o principal caminho dos EUA — e, se Biden conseguir seu objetivo, de todo o G7 — na política externa nos próximos anos.

“Diferentemente do ex-presidente Donald Trump, que resolveu barrar a ascensão da China sozinho, o presidente Biden quer formar uma coalização internacional mais ampla para fazer frente ao gigante asiático”, diz o professor Luís Antonio Paulino, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp.

“Com isso, pretende matar dois coelhos com uma cajadada só: retomar o papel de liderança dos Estados Unidos e isolar ainda mais a China internacionalmente”.

É um objetivo que não mudou na transição entre Biden e Trump: garantir que o Ocidente seja um rival à altura do crescimento da China. Os chineses podem ultrapassar os EUA como maior economia do mundo já nesta década e a economia da China foi a única entre as grandes a crescer em meio à pandemia.

Líderes do G7 em reunião no Reino Unido: Biden tenta liderar aliança contra a China (Photo by Leon Neal - WPA Pool/Getty Images)

A busca pelos emergentes

Dentro de casa, Biden já anunciou um pacote de infraestrutura de 2,3 trilhões de dólares, buscando alavancar frentes como energia renovável e a produtividade na indústria 4.0 americana para fazer frente aos chineses. Está ainda na conta do "Bidenomics" pagar o plano com aumento de impostos para grandes empresas, outro tema que também avançou no G7 em escala global no fim de semana.

Mas os últimos encontros internacionais deixaram claro que, além do caminhão de dinheiro dentro dos EUA, Biden tentará tirar o atraso com aliados que ficaram esquecidos na era Trump, das potências aos países em desenvolvimento.

Um dos principais anúncios feitos pelo G7 foi de um gigantesco programa de infraestrutura e investimentos nos países mais pobres. O plano foi batizado de Build Back Better World (ou "Reconstruir Melhor - Mundo", em tradução livre), inspirado no mesmo nome que Biden usou em sua campanha eleitoral no ano passado.

A meta é ajudar os países a chegar aos 40 trilhões de dólares em investimentos que o Banco Mundial estima que precisarão até 2035 para garantir que não fiquem para trás na corrida do século 21.

O pacote já começa a ser comparado ao Plano Marshall, que os EUA lançaram após a Segunda Guerra Mundial para ajudar países devastados pelo conflito, em meio ao embate com a extinta União Soviética.

Desta vez, Biden e os aliados ocidentais buscam rivalizar com o Belt and Road Initiative (o BRI, na sigla em inglês, ou Nova Rota da Seda), iniciativa de 2013 do presidente chinês Xi Jinping para investimentos em aliados, sobretudo na Ásia, África e América Latina.

"O que é novo nisso é o fato de os EUA terem levado esse plano para construir de forma coordenada com os países do G7", diz o professor Marco Antônio Rocha, do Instituto de Economia da Unicamp, especialista em desenvolvimento da indústria e tecnologia.

"Fica evidente que a questão central para Biden é se colocar frente à competição chinesa não só em termos de concorrência industrial, mas geopolítica, organizando os países do G7 como bloco." 

Quais setores e países de fato podem entrar nesse rol de investimento ainda não está claro. Para países como o Brasil, o que tornaria as propostas americanas mais atrativas frente às chinesas, diz Rocha, seriam investimentos que incluíssem acordos de tecnologia com as empresas locais — e não somente a obrigatoriedade de participação de empresas americanas, o que tem sido mais comum até agora.

À agência Reuters, um alto oficial americano disse que o Ocidente, até o momento, havia "falhado em oferecer alternativas" aos investimentos chineses — que o porta-voz critica por suas questões trabalhistas, ambientais e de "falta de transparência".

Em meio à pandemia, a China foi uma das principais fornecedoras de equipamentos de proteção aos países do Sul global, e, depois, de vacinas. Só na América Latina, mais de 160 milhões de doses de imunizantes vieram de parcerias com a China, incluindo a Coronavac feita no Brasil pelo Instituto Butantan.

Já os EUA, que têm empresas donas de três vacinas aprovadas (Pfizer, Johnson & Johnson e Moderna), tentam reverter o quadro anunciando o envio de milhões de doses para o exterior. No entanto, os anúncios só vieram depois que o país já havia atingido mais de 50% da população vacinada, enquanto a China tem fechado acordos desde o ano passado.

Funcionário trabalha na linha de produção da vacina de dose única contra a Covid-19 da CanSino em Tianjin, China.

Funcionário trabalha na linha de produção da vacina CanSino, na China: país foi provedor de vacinas ao Sul global (China Daily/Reuters)

As vacinas chinesas têm sido vistas como uma ação "indireta" da Nova Rota da Seda, que oficialmente inclui mais de 2.600 projetos, segundo dados da consultoria Refinitiv de meados do ano passado.

Por outro lado, na era pós-covid, há questionamentos sobre o quanto a China será capaz de seguir investindo para construir alianças no exterior. Só o custo da Nova Rota da Seda é de 3,7 trilhões de dólares em projetos, embora parte tenha sido paralisada devido à pandemia.

Ao contrário da crise de 2008, quando a China tinha mais margem na dívida pública para seguir gastando, as contas estão menos fáceis neste anos 2020, disse Todd Lee, diretor da IHS Markit, à EXAME.

"A China estava em uma posição diferente na última crise. Eles implementaram estímulos como nunca antes, e isso influenciou o setor de commodities no exterior. Dessa vez, o potencial de alavancagem é muito menor", diz.

Com os estímulos chineses, o pós-crise de 2008 foi também o momento de auge das parcerias entre os países emergentes — como no caso dos BRICS, grupo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que chegaram a criar um banco de financiamento, hoje muito reduzido.

"O impacto chinês na economia global pós-covid vai ser menor do que foi em 2008. Será uma política mais domesticamente orientada daqui para a frente, sobretudo quando a demanda [do consumidor interno] voltar a engrenar", diz Lee.

O momento hoje é outro, e o caminhão de dinheiro vem, agora, dos EUA. Como mostra relatório da Gavekal Research, parceira do EXAME Invest, os EUA estão, pela primeira vez neste século, emitindo mais moeda que a China. "Não é o Fed [banco central americano] que está surpreendendo a todos com o arrocho, mas o Politburo da China", escreve o fundador e presidente da Gavekal, Louis Gave.

Aliados, mas não muito

Mas apesar das tentativas de coalizão, angariar aliados contra a China não será fácil. Com os anúncios mais duros direcionados ao país durante as últimas semanas (com, além do G7, Pequim aparecendo em um comunicado da Otan pela primeira vez), os principais líderes europeus tentaram suavizar as mensagens.

A chanceler alemã, Angela Merkel, disse que "a China é nossa rival em muitas questões, mas também nossa parceira em muitos aspectos". Já o francês Emmanuel Macron disse que o grupo de potências não é contrário aos chineses. "Serei muito claro: o G7 não é um clube hostil à China", disse o presidente francês.

Com o crescimento da economia chinesa, cujo PIB subiu mais de 9.000% nos últimos 40 anos, países de todos os cantos do mundo são cada vez mais dependentes de Pequim. A China é o segundo maior parceiro comercial da União Europeia, por exemplo, atrás somente dos EUA, e o Brasil tem nos chineses seu maior parceiro comercial desde 2009.

"Acredito que a maioria dos países do mundo — e o Brasil é um deles — está em uma posição de 'não nos faça escolher entre um e outro'", diz Lee, da IHS Markit.

Merkel e Trump em reunião do G7 em 2018: relação americana com aliados do G7 enfraqueceu na gestão do republicano (Jesco Denzel /Bundesregierung/Getty Images)

Esse cenário aponta as dificuldades que Biden terá na reunião do G20, com as 20 principais economias do mundo, grupo do qual o Brasil faz parte, assim como a própria China. A cúpula está marcada para outubro.

"Na prática, se já foi difícil conseguir um consenso anti-China ao nível do G7, ao nível do G20 será quase impossível", diz Paulino, da Unesp. "A maioria dos países do G20 têm a China como seu principal parceiro comercial."

A globalização faz com que os próprios americanos tenham a economia amplamente ligada à da China na atualidade, apesar da disputa na tecnologia de fronteira. Nos primeiros cinco meses de 2021, mesmo com a guerra comercial ainda a todo vapor, o comércio bilateral entre China e EUA teve aumento de mais de 50% em dólares, com importação de manufaturas baratas por parte dos americanos e exportação de commodities para o amplo mercado chinês.

Em sua primeira viagem internacional, Biden deu a largada para uma nova fase da disputa global. Mas o desafio americano de trazer o mundo a reboque de suas guerras não será tão simples quanto um dia já foi.

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