Netflix: do DVD por correio ao império do entretenimento (Montagem EXAME)
Repórter de Casual
Publicado em 6 de dezembro de 2025 às 18h32.
Última atualização em 6 de dezembro de 2025 às 18h43.
Se um dia existiu uma guerra dos streamings a ser vencida, a disputa já virou história antiga. Não bastasse alcançar o marco de 300 milhões de assinantes em 2024, neste ano, a Netflix comprou a Warner Bros. e, seja isso positivo ou não, deu o primeiro e mais importante passo para se tornar o maior conglomerado de entretenimento do planeta.
E pensar que tudo começou com uma dívida com a Blockbuster.
Não, você não leu errado. Foi isso, mesmo: o atual império de filmes e séries nasceu de uma origem bem humilde, e até que bem contemporânea também. Em 1997, os americanos Reed Hatings e Marc Randolph — criadores da Netflix — queriam porque queriam fazer um novo negócio que envolvesse a internet.
Foram mais de 110 ideias, mas nenhuma parecia ser exatamente a que eles procuravam. Até um dia em que Hastings lembrou de uma dívida que tinha pelo atraso na devolução de um videocassete (VHS), e veio o clique: o mercado poderia ser o de cultura e entretenimento.
Naquela época, quem dominava o mercado eram as locadoras. Mas o momento foi coincidentemente perfeito: a indústria começava a ouvir falar sobre o DVD, e Hastings e Randolph tiveram a brilhante ideia de oferecer um serviço de aluguel do produto pelo correio. A proposta, quase 30 anos atrás, era uma ideia mais "vintage" do que a Netflix faz até hoje: diminuir o contato do cliente com a loja física — hoje, o cinema — com a conveniência da entrega em domicílio.
O investimento inicial foi de US$ 2,5 milhões. Nos primeiros anos, eram somente 925 títulos disponíveis, e o esquema de aluguel era bem parecido ao das locadoras. Em 2000, de cliente em cliente, a empresa já tinha enviado 1 bilhão de filmes por correio a seus mais de 670 mil assinantes mensais.
29 anos depois, a Netflix — que recebeu esse nome como uma junção das palavras internet e flicks (filmes, em inglês) — tem mais de 7.500 filmes e séries em sua plataforma de streaming. E os US$ 2,5 milhões iniciais, hoje, parecem irrisórios diante do valor de mercado da companhia, que passou de US$ 425 bilhões.
Os primeiros anos da Netflix foram marcados por um crescimento sólido, mas modesto. A verdadeira virada de chave veio mesmo a partir de 2007, com a criação do Watch Now, o streaming de filmes e séries.
Diferente da interface interativa de hoje, que combina um algoritmo poderoso para ofertar títulos de acordo com a preferência do usuário, no começo, a plataforma era bem mais simplória, mas eficiente. O acervo inicialmente tinha 1 mil títulos disponíveis, focados principalmente em filmes e em alguns programas de TV licenciados de parceiros, como a Paramount e a MGM.
A criação do streaming foi a mudança mais brusca, inovadora e necessária da Netflix na indústria. E "matou" dois negócios de uma vez: primeiro as locadoras, lá para 2010, e os DVDs, não muito tempo depois.
Já o acervo diversificado de outras empresas foi também o início de uma parceria que se mantém até hoje na produção dos conteúdos da Netflix. Os maiores sucessos atuais da plataforma — Wandinha, da Amazon MGM Studios, é um bom exemplo — são frutos de co-produções. É um ganha-ganha entre os dois lados: o estúdio parceiro leva uma parte pela produção, e a Netflix ganha outra (bem gorda) pela distribuição.
Gostando ou não do modelo de negócios da plataforma, o salto de 2007 mostra duas coisas sobre a história da companhia que, até as últimas semanas, continua vivo e pulsante em seu DNA: A Netflix sabe como ninguém como enxergar e aproveitar o momento da virada para alavancar os negócios, e a maneira de crescer é, para essa empresa, um bote inicial de uma caçada predatória.

Quando o mercado nos Estados Unidos já estava quase garantido, a gigante do entretenimento começou a esticar as pernas nos países mais próximos. A expansão internacional começou em 2010, no Canadá, quando a Netflix já tinha cerca de 23 milhões de assinantes americanos. Em 2011, chegou à América Latina e, no ano seguinte, alcançou a Europa.
Com o crescimento global, veio a necessidade de adaptação cultural. A Netflix teve que entender os diferentes hábitos de consumo de vídeo em cada país e adaptar a plataforma para oferecer um catálogo diversificado, tanto em termos de conteúdos locais quanto internacionais. O que exigiu investimentos massivos, principalmente em conteúdo original.
Ainda que hoje a maior parte dos títulos sejam norte-americanos ou europeus, outros países têm tido espaço aberto para entrar com produções locais na plataforma. E o resultado tem sido eficiente: a coreana Round 6 se tornou um dos maiores sucessos do streaming dos últimos tempos, com mais de 300 milhões de visualizações nas três temporadas e US$ 900 milhões em valor para a Netflix.
O Brasil, por exemplo, tem entre 100 e 150 títulos brasileiros no catálogo global, incluindo filmes como O Filho de Mil Homens, Homem com H, e séries como Cidade Invisível, Bom Dia, Verônica, entre outros. E a tendência, conforme aumenta a demanda, é que esse número cresça.
O movimento de expansão internacional não só fortaleceu a base de assinantes da empresa, mas também estabeleceu a Netflix como um player global no setor de entretenimento digital. Hoje, o alcance dos títulos — sejam eles de uma produtora independente brasileira ou mais uma alta aposta da BBC, do Reino Unido — atingem 190 países.

Mas a história da Netflix não se sustenta só na expansão internacional. No momento em que chegar a outros países passou a ser rotina, a Netflix entendeu que ser apenas uma distribuidora de conteúdo não era o suficiente para atender a todo o seu mercado. Para ser gigante de verdade no setor, era preciso começar a produzir histórias próprias.
Em 2013, já com 33 milhões de assinantes, quando a lançou House of Cards, primeira série original de grande sucesso, a atenção à plataforma de streaming mudou. Produzida por David Fincher e estrelada por Kevin Spacey, a série não só conquistou uma enorme base de fãs, mas também atraiu a atenção da crítica e das premiações.
A produção de conteúdo próprio se tornou estratégia audaciosa para garantir controle sobre o conteúdo e, com isso, também criar produtos exclusivos para os assinantes.
No começo, a fórmula da Netflix se baseava em fornecer total liberdade criativa aos criadores. No contrafluxo dos concorrentes, tentava explicar aos roteiristas e diretores que o conteúdo seria postado todo de uma vez na plataforma, ao melhor formato de maratona.
Foi dessa leva inicial que nasceram algumas das produções originais mais aclamadas: Orange Is The New Black (2013), BoJack Horseman (2015) e Narcos (2015). Em 2016, as produções monumentais colocaram a Netflix no topo da guerra de impérios do entretenimento: chegava Stranger Things, um dos maiores sucessos da plataforma, e The Crown, entre as mais premiadas.
Ainda hoje a Netflix depende (e muito) dos títulos em co-produção para alavancar seu negócio. Mas as produções originais, quando bem investidas com tempo e qualidade, vez ou outra se destacam com estatuetas do Emmy, Globo de Ouro e Critics' Choice Awards.
Quando a história das crianças de Hawkings viralizou, a Netflix já tinha mais de 100 milhões de assinantes na plataforma. Hoje, com o lançamento da quinta e última temporada da série, o número mais que triplicou.

Explicar como a Netflix saiu dos DVDs à dona da Warner Brs. implica mencionar que um império de entretenimento não se faz só com roteiro, equipamento e elenco. Durante a jornada até o topo, além da produção de bons filmes e séries e conteúdos medianos, mas de alta demanda no mercado global, a Netflix se destacou pela inovação tecnológica e publicitária.
Em 2012, a empresa lançou a Open Connect, uma rede própria de entrega de conteúdo que melhorou significativamente a qualidade do streaming e reduziu os custos operacionais. Foi também uma das pioneiras na adoção de tecnologias de streaming em alta definição (HD) e 4K, o que permitiu que seus usuários tivessem acesso a uma experiência de visualização superior.
Uma estratégia, inclusive, que foi seguida por todos os outros streamings que vieram depois dela.
Além dos detalhes mais técnicos, há de se notar que o uso de algoritmos também foi um dos maiores pilares de ascensão da empresa. Enquanto os demais mercados sofriam com a escolha sobre o que assistir, dentro de uma oferta tão voluptuosa de conteúdos, a Netflix investiu forte em uma maneira de oferecer bem seus produtos, usando o próprio comportamento de seus usuários na plataforma.
Em 2021, com toda a estratégia de crescimento funcionando, a companhia passou a The Walt Disney Company em valor de mercado e se tornou a empresa de entretenimento mais valiosa do planeta. Assim segue e, se por ventura conseguir concluir a compra da Warner, tem tudo para se tornar invencível.
Todo esse histórico serviu como base para a criação dos novos modelos de negócio do streaming. Em 2022, depois da ascensão brutal que a companhia viveu na pandemia de covid-19 — com vantagem sob a falta de bilheteria dos cinemas, impedidos de exibir filmes —, a Netflix investiu forte na primeira plataforma de anúncios, que hoje forma parcerias bilionárias com os títulos do catálogo.
A estratégia, mais uma vez, foi visionária diante do mercado, que já tinha bons novos concorrentes — de Prime Video e Disney+ a HBO. Em novembro 2025, a platafroma de anúncios atingiu 190 milhões de Pessoas Ativas Mensais (MAV) globalmente, com 29,2 milhões no Brasil (15% do total), considerando assinantes que veem pelo menos 1 minuto de ads multiplicado pela média de pessoas por residência.
Nos últimos anos, os investimentos tem sido voltados para pequenas mudanças que geram grandes resultados. O fim do compartilhamento de senhas, exibição de esportes ao vivo e parcerias com marcas para pacotes mais acessíveis fazem parte da estratégia de crescimento constante pelo qual a companhia passa nas últimas três décadas.

Hoje em dia, com mais de 300 milhões de assinantes e um lucro que passa dos US$ 3 bilhões, pelo menos no último trimestre, já dá para dizer que a Netflix ganhou a guerra dos streamings.
Mas esse modelo predatório de crescimento, ainda mais agora com a compra da Warner, pode entrar na esteira dos mesmos problemas que outras gigantes de tecnologia enfrentam hoje: acusação de monopólio, infrações de leis, e avanço desenfreado que elimina outros competidores (e, com eles, a diversidade).
Ainda há desafios, principalmente com a crescente competição e a evolução das expectativas do público. Em um mercado saturado, onde o modelo de assinatura está cada vez mais pressionado, a empresa precisará continuar inovando para se manter à frente.
Mas da origem modesta até o império global que se tornou, a trajetória da Netflix deixa um recado: com o ímpeto de se jogar nas mudanças de forma estratégica, a chave do sucesso foi a capacidade de adaptação às mudanças de mercado, sem perder o DNA da ideia original de 1997.