Bangrang: filme foi exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro (Bangrang/ Giulio Mastromauro/Divulgação)
Repórter de POP
Publicado em 2 de novembro de 2024 às 23h06.
Última atualização em 2 de novembro de 2024 às 23h13.
Quem idealiza as belezas do Sul da Itália pode não saber que, entre os cartões postais paradisíacos da região, existe uma cidade imersa em uma crise ambiental, política e econômica desde a década de 1960. Taranto, que em seu mais longínquo passado foi uma província prestigiada da Magna Grécia, vive nos últimos 60 anos com a consequência da industrialização europeia: abriga a Ilva de Taranto, a maior siderúrgica da Europa, pilar estratégico para o emprego e indústria no país. E causador de um dos maiores desastres ambientais e sanitários do continente.
É nesse contexto político-econômico tão delicado da Itália que acontece "Bangrang", documentário vencedor do prêmio especial do júri da seção Panorama Itália do Festival de Cinema de Roma, do diretor Giulio Mastromauro. O longa leva o público ao cotidiano das crianças de Taranto, enquanto evidencia a realidade dos arredores da usina Ilva, responsável boa parte das vagas de emprego da Itália e a 40% da capacidade de produção de aço do país, acusada de ter envenenado os moradores dos arredores de suas instalações no que foi considerado, até hoje, um dos maiores crimes ambientais da Europa.
Em 2013, a Ilva esteve no centro de uma luta jurídica, que terminou com o ex-chefe da fábrica, Emilio Riva, preso. Na época, a imprensa local divulgou que a Justiça da Itália embargou mais de 8,1 bilhões de euros dos proprietários da indústria e fechou parte das instalações poluentes. Outros envolvidos da família Riva fugiram do país.
Parte da população italiana luta pelo fechamento definitivo da usina, que afetou a vida de diversos moradores tarentinos. Outra parcela clama para que a ilva continue funcionando, para garantir os empregos e a estabilidade econômica da região. No início deste ano, conforme noticiou a Reuters, o governo italiano anunciou a sindicatos de Taranto que pretende colocar a antiga siderúrgica "sob administração especial para mantê-la funcionando".
O filme esteve em cartaz na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no mês de outubro e Mastromauro viajou ao Brasil para sua divulgação no festival. À EXAME, o diretor compartilhou detalhes sobre o processo de criação de "Bangarang", a recepção do documentário e a realidade de Taranto.
Como foi a recepção do filme em Roma? Você esperava vencer o Prêmio do Júri?
Giulio Mastromauro: 'Bangarang' foi escolhido como o único documentário na competição de longas-metragens, o que já foi uma surpresa agradável. Ainda não sabíamos como o filme, com sua narrativa não convencional, seria recebido. Mas o público e a crítica o abraçaram com entusiasmo, e o Prêmio do Júri trouxe uma grande alegria para a equipe do filme e para a cidade de Taranto. Fiquei feliz que tenham reconhecido o valor e a sinceridade da história.
O filme mistura temas da infância e a realidade de Taranto. Por que decidiu explorar essas narrativas juntas?
A infância é um momento da vida que sempre despertou em mim curiosidade e admiração. Quando eu estava em Taranto, fazendo pesquisa para o meu próximo filme, fiquei impressionado com as crianças daquele lugar, que é marcado pela presença da usina siderúrgica e pelo impacto ambiental que ela trouxe para a cidade. Em 'Bangarang', eu quis explorar a infância local com um olhar carinhoso, sem moralizar. Não há adultos no filme; apenas as crianças e seus movimentos, suas emoções. Elas dividem espaço com animais que remetem ao imaginário infantil – golfinhos, cavalos, flamingos – trazendo ao documentário uma visão quase de conto de fadas.
Como foi o processo de pesquisa do documentário?
Taranto se tornou uma segunda casa para mim. Desenvolvi uma ligação profunda com os moradores, pessoas resistentes, fortes. Durante as semanas que passei ali, observando as crianças da cidade, fiquei cativado pela energia delas. Não procurei um protagonista específico, a energia coletiva e a alma de uma geração foram o que mais me tocaram. Eu observava o contraste entre a infância delas, que vêem a cidade como um parque de diversões ao ar livre, e a proximidade da siderúrgica, que representa um perigo constante e está sempre presente no cenário urbano, assim como o céu e o mar.
Você enxerga parelelos entre as crianças brasileiras e tarentinas? Como foi viajar para a Mostra de Cinema de São Paulo?
É uma grande honra e privilégio trazer o filme para a Mostra. A realidade das crianças de Taranto se assemelha à de outras periferias no mundo, inclusive no Brasil. Esse filme se torna universal, ainda que trate de um episódio específico da história italiana. 'Bangarang' é político, é um testemunho do desastre ambiental e social de Taranto. As instituições frequentemente falham em garantir um futuro sustentável para as novas gerações, e isso é um problema global.
'Bangarang' é um termo de origem jamaicana, significa tumulto, desordem ou caos. No documentário, as crianças de Taranto são retratadas em suas atividades diárias, com a liberdade e energia típicas da infância, que contrastam com a grave situação ambiental da cidade. Como explicou o diretor, "as crianças parecem alheias à siderúrgica, mesmo estando tão próxima de suas casas e escolas".
O filme foi exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ainda não tem data de estreia no Brasil.