Na véspera do Ano Novo, o episódio final de Stranger Things chega à Netflix e marca o fim de uma das franquias mais icônicas da plataforma, quase uma década depois de ela ser lançada.
Em 2016, o streaming já era uma realidade que somava milhares de assinantes, mas estava longe de ser o modo predominante de televisão como é atualmente.
A empresa de dados Nielsen aponta que, em outubro de 2025, 45,7% do tempo da audiência televisiva dos Estados Unidos é gasta nesse tipo de serviço, enquanto a televisão a cabo e aberta correspondem a 22,2% e 22,9%, respectivamente. Oito anos antes, as pesquisas da Nielsen apontavam que apenas 35% dos norte-americanos eram assinantes de serviços de streaming, enquanto a maioria preferia o modelo tradicional.
No meio da década passada, produções próprias da Netflix, como House of Cards,Orange is the New Black, Narcos, Black Mirror, Sense 8 e Grace and Frankie, haviam conquistado alguns públicos e aclamação crítica. Mas a empresa ainda não havia emplacado nenhum grande sucesso para o público geral. Era a época em que mega-produções como Game of Thrones estavam no auge de audiência e os Emmys ainda eram dominados pelas emissoras tradicionais.
Mas, no meio daquele ano, a chegada de "Stranger Things" ao catálogo da Netflix mudou tudo.
Dados da Variety indicam que, no terceiro trimestre de 2016 — período em que Stranger Things estreou — a Netflix registrou um crescimento de 3,57 milhões de assinantes, dos quais 3,2 milhões estavam fora dos Estados Unidos. Já entre o fim de 2015 e o fim de 2016, o faturamento global da empresa teve alta de 41%. O desempenho da série consolidou um modelo que o setor do entretenimento tenta repetir desde então.
Para J.D. Connor, professor de cinema na University of Southern California (USC), em entrevista à EXAME, o mundo ainda não tem um "novo Stranger Things" para chamar de seu, mas existem algumas probabilidades.
Segundo ele, entre o público infanto-juvenil, animes como Demon Slayer chegam mais perto do nível de sucesso e engajamento de Stranger Things. Já entre adultos, produções internacionais como Round 6 e La Casa de Papel alcançaram patamares semelhantes de audiência e fidelização. “É provável que a próxima grande série venha da Coreia do Sul”, afirma.
'Round 6' é a série mais assistida da história da Netflix
No ranking histórico da Netflix, que considera o total de horas assistidas por série, o Top 5 é liderado pela primeira temporada de Round 6, com 1,65 bilhão de horas. Em seguida, aparecem a quarta temporada de Stranger Things (1,35 bilhão), a primeira de Wandinha (1,23 bilhão), Dahmer (856 milhões) e a parte 5 de La Casa de Papel, com 792 milhões de horas assistidas.
| Título | Ano de Lançamento | País de Origem | Horas Assistidas |
|---|
| Round 6 (Temporada 1) | 2021 | Coreia do Sul | 1,650,450,000 |
| Stranger Things (Temporada 4) | 2022 | Estados Unidos | 1,352,090,000 |
| Wandinha (Temporada 1) | 2022 | Estados Unidos | 1,237,150,000 |
| Dahmer – Um Canibal Americano | 2022 | Estados Unidos | 856,270,000 |
| La Casa de Papel (Parte 5) | 2021 | Espanha | 792,230,000 |
| Bridgerton (Temporada 2) | 2022 | Estados Unidos | 656,260,000 |
| O Agente Noturno (Temporada 1) | 2023 | Estados Unidos | 626,990,000 |
| Bridgerton (Temporada 1) | 2020 | Estados Unidos | 625,490,000 |
| La Casa de Papel (Parte 4) | 2020 | Espanha | 619,010,000 |
| Stranger Things (Temporada 3) | 2019 | Estados Unidos | 582,100,000 |
O prelúdio do sucesso
Assim como Gangnam Style em 2012 foi o vídeo mais assistido do YouTube por anos e o prelúdio da ascensão do K-Pop, Round 6 parece ser o grande case de sucesso dos K-Dramas.
As obras foram uma porta de entrada à indústria do entretenimento coreana para audiências fora do leste asiático. Desde "Round 6", outros grandes títulos coreanos entraram em rankings da Netflix. All of Us are Dead é a 12ª série mais vista da história na plataforma, The Glory é a 23ª e "Uma Advogada Extraordinária" é a 26ª no mesmo ranking.
"O sistema coreano de estúdios é tão opressivo, manipulador e tirânico quanto a Hollywood clássica. Porém, é capaz de criar uma imagem jovial da Coreia, com alto potencial de audiência e marketing internacionalmente, apesar do fato de que é um país em envelhecimento com baixas taxas de natalidade", diz Connor.
Os Estados Unidos, na opinião dele, perderam um pouco da capacidade de atrair a atenção de jovens, dando espaço a países como Coreia, Japão e Turquia, que produzem mídia com esse foco.
"Há um certo distanciamento da zona de soft power que nós havíamos, e que conseguia gerar interesse internacional. James Dean nos anos 1950, os thrillers da década de 1970 e o grunge dos anos 1990. Todas essas eram coisas universalmente legais. Agora, parecemos um país menos 'cool' para os jovens", afirmou.
Cenário em 2024
A Netflix disponibiliza semestral e anualmente, desde 2023, um relatório com os seus títulos mais assistidos.
Em 2024, apenas uma posição do Top 5 foi ocupada por uma série norte-americana: "Bridgerton", em segundo lugar. Três eram do Reino Unido e uma, "Round 6", era coreana.
| Título | Ano de Lançamento | País de Origem | Horas Assistidas |
|---|
| Não Me Engane (Temporada 1) | 2024 | Reino Unido | 778,300,000 |
| Bridgerton (Temporada 3) | 2024 | Estados Unidos | 907,100,000 |
| Baby Reindeer (Temporada 1) | 2024 | Reino Unido | 381,900,000 |
| Os Cavalheiros (Temporada 1) | 2024 | Reino Unido | 603,700,000 |
| Round 6 (Temporada 2) | 2024 | Coreia do Sul | 619,900,000 |
| Avatar: O Último Mestre do Ar (Temporada 1) | 2024 | Estados Unidos | 586,300,000 |
| Griselda (Temporada 1) | 2024 | Estados Unidos | 416,300,000 |
| O Casal Perfeito (Temporada 1) | 2024 | Estados Unidos | 383,100,000 |
| Monstros: A História de Lyle e Erik Menendez (Temporada 1) | 2024 | Estados Unidos | 550,400,000 |
| Pânico Americano (Temporada 1) | 2024 | Estados Unidos | 141,200,000 |
No relatório do primeiro semestre de 2025, o fenômeno se repetiu. Apenas "Dia Zero" é norte-americana.
| Título | Ano de Lançamento | País de Origem | Horas Assistidas |
|---|
| Adolescência | 2025 | Reino Unido | 555.100.000 |
| Round 6 – Temporada 2 | 2024 | Coreia do Sul | 840.300.000 |
| Round 6 – Temporada 3 | 2025 | Coreia do Sul | 438.600.000 |
| Dia Zero | 2025 | Estados Unidos | 315.800.000 |
| Missing You | 2025 | Reino Unido | 218.600.000 |
| American Murder: Gabby Petito | 2025 | Estados Unidos | 120.600.000 |
| Ms. Rachel | 2025 | Estados Unidos | 162.100.000 |
| Sirens | 2025 | Estados Unidos | 252.300.000 |
| The Night Agent – Temporada 2 | 2025 | Estados Unidos | 457.800.000 |
| Ginny & Georgia – Temporada 3 | 2025 | Estados Unidos | 508.200.000 |
Além da dobradinha de Round 6, é notável que boa parte dos maiores hits da plataforma são séries britânicas. Adolescência e Bebê Rena, por exemplo, se destacaram nas redes sociais por trazerem questões pouco discutidas na sociedade às telinhas.
Essa força das produções do Reino Unido na Netflix não é novidade. Alguns dos títulos mais célebres desde o início do serviço de streaming, como Black Mirror, Heartstopper, The Crown e Sex Education, são britânicos.
Aliás, o status hollywoodiano de Bridgerton não é integral. A série é feita pela divisão estadunidense da Netflix, porém, a produção é majoritariamente realizada no Reino Unido, e os atores são, em sua maioria, também britânicos ou irlandeses.
Isso é uma tendência crescente na indústria. Incentivos fiscais oferecidos por países como a Hungria, Romênia e Escócia e os custos de produção menores fora dos Estados Unidos atraem grandes produções, como Wandinha e Frankenstein, para novos destinos.
"Tomando como exemplo os filmes de 'A Barraca do Beijo', que são extremamente populares, as filmagens foram na África do Sul, apesar da história se passar na costa da Califórnia. Eu falei com o diretor dos filmes e ele me disse: 'nós diminuímos o orçamento em US$ 5 milhões ao gravar no exterior'", conta Connor. "A questão agora é se os Estados Unidos irão adotar esquemas de subsídio como os da África do Sul e da Hungria."
A Europa, com o sucesso das séries britânicas e dos diversos programas de subsídios, pode ser o berço da nova série-fenômeno da Netflix.
"Eu acho que a empresa irá continuar produzindo entretenimento para o público geral, com a esperança de que o modelo irá funcionar em outros lugares. De vez em quando, a Netflix tira a sorte grande e algo da Espanha, da Coreia ou de qualquer outro lugar, conquista as massas. Não há nenhum motivo para 'La Casa de Papel' ser um caso único", afirma Connor.
É o fim de Hollywood? Provavelmente não
No momento, os grandes sucessos de audiência na Netflix tendem a não ser norte-americanos. Isso significa que Hollywood não terá mais relevância cultural? Provavelmente não.
A indústria está se recuperando dos efeitos da greve geral de 2023, o que é um dos fatores por trás do aparente atraso dos Estados Unidos frente a outras regiões.
"No último ano, após a greve, as grandes estrelas com apelo comercial decidiram fazer projetos menores, menos comerciais. Projetos mais próprios. Acabamos com uma seleção estranha de lançamentos originais menores, com alguns projetos gigantes de animação tendo muito sucesso", diz Connor. "No próximo ano, podemos esperar, com certeza, um próximo ciclo de grandes lançamentos de alto apelo comercial por parte dessas estrelas."
Nos próprios rankings da Netflix, séries americanas ocupam a maior parte do Top 10, apesar de não dominarem o topo da lista. Ou seja, Hollywood tem mantido o sucesso no streaming com alta volumetria de obras que agradam o espectador médio.
Se o objetivo for produzir algo com o sucesso de Stranger Things, existem alguns desafios internos da indústria que precisam ser examinados. O primeiro é a fadiga de franquias.
O fenômeno pode ser entendido como de duas formas. A primeira, é a fadiga interna da própria franquia, que ocorre naturalmente dentro de uma mesma saga.
Já a segunda, é uma fadiga do modelo de franquias.
Nos últimos anos, lançamentos da Marvel, da saga Star Wars e de Game of Thrones têm tido menos sucesso do que tinham na década passada. O faturamento de filmes da Marvel, por exemplo caiu US$ 619 milhões desde 2023, de acordo com a Forbes. As séries de Star Wars no streaming também têm apresentado desempenho abaixo do esperado, com Solo se tornando famosa em 2018 pelo prejuízo financeiro que trouxe à Disney.
Há uma busca por ideias novas que podem se tornar franquias ou séries longevas, como Stranger Things era em 2016. A Netflix tenta encontrá-las e investe nelas. J.D. Connor conta que, em 2020, a compra de Entre Facas e Segredos pelo serviço por cerca de US$ 400 milhões, parecia incompreensível.
"Durante uma aula minha, o Ted Sarandos (CEO da Netflix) apareceu. Eu perguntei para ele qual era a ideia por trás da compra. Ele respondeu: 'é quase impossível encontrar uma franquia solta no mundo. Quando você encontra uma, precisa adquiri-la, independentemente do valor real dela'", diz Connor. "Quando a Warner Brothers foi à venda eu já pensei que seria de interesse da Netflix. Eles têm pelo menos uma dúzia de franquias que não sofreram fadiga."
A compra da Warner pela Netflix pode ser, daqui a alguns anos, a fonte de um novo grande sucesso.