Pior dos mundos: a estagflação voltou a ser um risco, no Brasil e lá fora
A retomada pós-coronavírus no mundo pode ser muito menos sólida do que parecia. E no Brasil, os problemas vêm em dobro
Carolina Riveira
Publicado em 4 de outubro de 2021 às 06h00.
Última atualização em 4 de outubro de 2021 às 11h12.
Nada está tão ruim que não possa piorar. O ditado popular foi usado pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada, ao falar sobre os preços do dólar e da gasolina. Pois um grupo grande de economistas já começa a apostar que o que está ruim pode mesmo piorar: o Brasil corre o risco de ingressar em um cenário de estagflação , a combinação perversa entre estagnação do crescimento econômico, desemprego e inflação alta.
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Por ora, é apenas um risco. O cenário atual é ruim, mas não chega perto dos anos 1970, que tiveram a última crise oficial de estagflação globalmente — abrindo caminho para a “década perdida” e a hiperinflação nos anos 1980 no Brasil. Mas a deterioração das expectativas é uma realidade.
“Os sinais correntes ainda são de recuperação, mas só porque o tombo de 2020 foi muito grande. Todas as projeções já estão caminhando para baixo”, diz o economista André Biancarelli, diretor do Instituto de Economia da Unicamp.
Além da inflação na casa dos 10%, já se projeta que o Produto Interno Bruto (PIB), após cair 0,1% no segundo trimestre, pode ficar novamente perto de zero no terceiro. No ano, a mediana dos analistas do boletim Focus estima alta do PIB em cerca de 5%, após queda de 4,1% em 2020. Para 2022, a projeção caiu para 2%, mas uma série de bancos e casas de análise já apostam em crescimento em menos de 1%.
O termo estagflação foi cunhado em 1965, citado primeiro pelo ex-ministro britânico Iain Macleod, do Partido Conservador. Em um discurso no Parlamento, Mcleod estreou a palavra em inglês stagflation. “Temos agora o pior dos dois mundos: não só inflação de um lado ou estagnação do outro, mas os dois juntos”, disse.
Consolidava-se ali um dos primeiros questionamentos a uma posição até então tradicional da teoria econômica, a de que não haveria inflação alta em cenário de atividade fraca. Se ninguém está comprando tanto por falta de renda, como podem os preços estar subindo?
Mesmo hoje, manuais de economia ainda reforçam a existência de um chamado tradeoff, uma escolha, entre emprego e inflação: quando o desemprego está baixo, pode haver uma alta indesejada da inflação.
O problema, para o Reino Unido de Macleod ou para o Brasil de 2021, é que a inflação começou a aparecer mesmo com a atividade econômica não tão aquecida quanto se gostaria.
No Brasil, com fatores como a crise hídrica e o dólar alto, a inflação voltou oficialmente a dois dígitos e o país teve o pior mês de setembro desde 1994, ano de lançamento do Plano Real.
A expectativa para 2022 é que a inflação volte a cair diante da combinação entre atividade econômica fraca e alta dos juros promovida pelo Banco Central — com a taxa Selic podendo fechar o ano em mais de 8%, após ter começado 2021 em 2,25%. Mas um cenário nebuloso, e não impossível, seria de crescimento perto de zero no ano que vem e a inflação não caindo na velocidade esperada.
Um desafio é o câmbio, um dos principais responsáveis pela inflação brasileira. O dólar deve seguir acima de 5 reais (ou mais) em 2022, elevando os custos de produção em quase todos os setores e o preço para o consumidor.
A cereja do bolo para um potencial risco de estagflação é o desemprego, que chegou a recorde de 15% durante a pandemia. Embora a taxa tenha começado a cair com alguma retomada nas vagas informais e possa ficar abaixo de 13% no ano que vem, não há sinais de que irá além disso tão cedo.
A crise atual é diferente da de 2015, quando a inflação também chegou aos dois dígitos, mas com desemprego menor. Nos anos seguintes, quando o desemprego subiu e a economia desacelerou, a inflação também caiu, seguindo uma trajetória mais natural, ao contrário do que ocorre agora.
“A expectativa é que a inflação arrefeça no ano que vem. Mas o desemprego não deve sair dos dois dígitos antes de 2023 ou 2024”, afirma João Leal, da gestora de investimentos Rio Bravo. O economista não acredita, no entanto, que o Brasil e o mundo já estejam perto de estagflação. "Ainda estamos em um cenário um pouco distante dos dois termos que a palavra diz."
Estagflação global?
O Brasil tem características particulares e uma inflação que muitas vezes foge às regras tradicionais. Mas parte desse debate acontece também no resto do mundo pós-pandemia. Em meio ao choque de oferta com a covid-19 e os pacotes de estímulo governamentais, a estagflação voltou ao vocabulário dos economistas lá fora.
A inflação nos EUA superou 5% neste ano, em vez dos 2% de antes da pandemia. Na Europa, preços avançam em setores como alimentos e energia, ao mesmo tempo em que os problemas de oferta ficam escancarados nas imagens de prateleiras vazias que viraram rotina no Reino Unido.
É um cenário diferente do brasileiro porque o desemprego está relativamente baixo nos países desenvolvidos – embora não ainda no patamar de "emprego pleno" que países como os EUA viviam em 2019.
O choque de oferta gerado pela covid-19, no entanto, é também um clássico nos períodos de estagflação. Os semicondutores usados em eletrônicos, por exemplo, são grandes vilões da vez. Primeiro, houve uma disrupção na cadeia de suprimentos com a pandemia. Mas mesmo com a oferta voltando a subir, os preços não caíram.
"Fica mais fácil dizer hoje que temos alguma coisa estrutural acontecendo que tenha aumentando a demanda por esses componentes. Isso cria uma persistência inflacionária nesses itens", disse em setembro o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em evento do banco BTG Pacutal (do grupo que controla a EXAME ).
Assim, o risco é que a inflação seja mais duradoura do que o previsto inicialmente. O cenário fez o ex-economista-chefe do Morgan Stanley, Stephen S. Roach, afirmar à rede de televisão CNBC nesta semana que o mundo está a “uma falha de abastecimento de distância” de entrar em estagflação. Também preocupam os sinais vindos da China, responsável por grande parte da cadeia de suprimentos global.
Nos anos 1970, a estagflação foi gerada sobretudo pelo choque de oferta do petróleo com as guerras no Oriente Médio. A inflação nos EUA chegou a impensáveis 20% na ocasião. Economistas apontam que o período de estagflação nas principais economias durou uma década, de 1973 até 1982.
Desta vez, a energia é novamente problema em todo o mundo, com a alta do preço do petróleo no mercado e países como a própria China tentando reduzir a dependência de carvão. (No Brasil, há ainda o agravante da crise hídrica que atrapalha a geração nas hidrelétricas, responsáveis por dois terços da energia elétrica brasileira).
Por enquanto, ainda é esperado que a economia global avance quase 6% em 2021, com as reaberturas e a vacinação. Mas pode haver uma marcha à ré nesse processo, neste e nos próximos anos.
"A 'estag' do termo é uma possibilidade séria, embora eu esteja menos preocupado com a parte da inflação”, diz Barry Eichengreen, do Departamento de Economia da Universidade de Berkeley, na Califórnia.
“Continuo acreditando que os bancos centrais estão preparados para responder de forma brusca a sinais de inflação persistentes e que estejam muito acima da meta, aumentando as taxas e reduzindo os gastos.” Ele acredita que o principal risco segue sendo uma nova variante do coronavírus.
Ainda que a estagflação global não se prove verdadeira, para o Brasil, uma ação mais severa dos bancos centrais no exterior poderia reduzir as perspectivas de fluxo de dólares.
Com a inflação voltando a aparecer globalmente, o Fed, banco central americano, pode subir os juros (que atualmente estão entre zero e 0,25%) e apertar a política monetária a partir do ano que vem. Essa expectativa também tem feito o dólar seguir valorizado apesar dos pacotes de incentivos amplos dos EUA, de mais de 4,5 trilhões de dólares entre os governos Donald Trump e Joe Biden.
A grande dúvida é com que intensidade essa alta de juros ocorrerá. “Os investidores de mercados emergentes estão preparados para um aumento muito gradual nas taxas dos bancos centrais. Se, em vez disso, o Fed e outros responderem de forma mais agressiva, as condições dos mercados emergentes podem se tornar mais turbulentas”, diz Eichengreen.
A crise eterna do Brasil
Um cenário de ações mais enérgicas do Fed contra a inflação global encontraria o câmbio brasileiro e de outros latino-americanos já muito pressionado.
O breve ciclo das commodities do qual os exportadores brasileiros se beneficiaram durante a pandemia não foi suficiente para resolver a questão cambial, com o dólar seguindo alto apesar da balança comercial positiva.
De quebra, sem medidas como estoques reguladores de preços, a exportação das commodities reduziu a oferta de alimentos internamente e impactou diretamente os preços ao consumidor. Os alimentos subiram na casa dos 10% em 12 meses no IPCA, e a cesta básica para uma família em São Paulo já empata com o salário mínimo. Tudo somado, o Brasil deve ter voltado ao Mapa da Fome das Nações Unidas.
Além da disrupção na oferta interna de alimentos, a alta recente nos preços da energia e dos combustíveis fará os custos de produção seguirem elevados em todos os setores, em um ciclo longe de virtuoso.
Biancarelli, da Unicamp, reforça que países como a Argentina, que têm dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em dólar e inflação de 40%, estão em situação pior do que o Brasil, que não deve mais para o FMI e tem reservas internacionais. Esse avanço, em sua visão, faz com que ainda não seja possível comparar a situação de hoje com crises anteriores.
“Mas o dólar alto mostra como a demanda externa raramente vai puxar uma economia como a do Brasil e resolver sozinha o câmbio. Em algumas conjunturas pode ajudar, mas para nível de atividade e emprego, não é o suficiente”, diz.
Na prática, o Brasil entrou na pandemia muito pior do que parte do mundo, colhendo os cacos da crise de 2015. O dólar, que estava abaixo de 4 reais em 2018, não tem previsão de voltar a esses patamares. O risco político previsto para 2022 com as eleições torna o cenário ainda mais volátil.
“Há, de fato, essa espécie de pausa em todas as discussões até as eleições”, diz Leal, da Rio Bravo. “Não vejo espaço para o câmbio arrefecer antes disso. E depois, vai depender das sinalizações de quem for eleito.”
Além de todos os problemas, o Brasil do pós-pandemia terá ainda de lidar com desafios próprios, como a reconstrução do mercado interno, níveis de pobreza elevados e infraestrutura atrasada. Em relatório sobre a economia brasileira no ano passado, o FMI também alertou que um desafio para o país é que parte dos empregos que se foram não voltarão devido à digitalização acelerada na pandemia.
“O Brasil tem essa dificuldade adicional de estar há muito tempo sem um ciclo de crescimento sustentado”, diz Biancarelli.
“O cenário externo é um risco, pode ser sinal de que a recuperação pós-covid talvez seja muito mais cheia de solavancos para os países abaixo da linha do Equador. Mas para além disso, há muitas outras camadas de dificuldade para o Brasil crescer.”
Em crise há quase uma década, o Brasil precisa encontrar seu rumo para o pós-pandemia. Mas a má notícia é que isso não deve ser discutido antes de outubro de 2022.
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