Revista Exame

Palavras importam, e a inteligência artificial pode auxiliar para um ambiente mais inclusivo

Empresas lançam mão de tecnologia para escalar uma linguagem inclusiva, além de adotarem ações com colaboradores para criar um ambiente diverso no dia a dia

Lukas Kahwe Smith, CTO e cofundador da Witty Works: missão de tornar o mundo mais inclusivo por meio da linguagem (Divulgação/Divulgação)

Lukas Kahwe Smith, CTO e cofundador da Witty Works: missão de tornar o mundo mais inclusivo por meio da linguagem (Divulgação/Divulgação)

Tarcisio Alves
Tarcisio Alves

Colaborador

Publicado em 5 de outubro de 2023 às 06h00.

A criação de um ambiente mais inclusivo envolve uma série de mudanças ­— a começar pela linguagem. Foi apostando nisso que nasceu, em 2018, a startup Witty Works. Com sede em Zurique, na Suíça, a empresa, que surgiu como consultoria de diversidade e inclusão, criou um aplicativo para apoiar as áreas de recrutamento e seleção a escreverem anúncios sem nenhum tipo de viés inconsciente.

“Acredito fortemente que a linguagem é o nosso melhor caminho para uma sociedade inclusiva”, diz Lukas Kahwe Smith, CTO e cofundador da Witty Works.

O passo seguinte foi ampliar a solução com um assistente de escrita que funciona como uma extensão de navegadores de internet. Com base em inteligência artificial (IA), ele identifica e sugere substitutos para potenciais termos preconceituosos (ou não inclusivos) em e-mails, postagens nas redes sociais, anúncios de emprego, entre outras peças de comunicação. Tudo de forma automática e interativa, para que as pessoas possam não só corrigir o que estão escrevendo mas, principalmente, aprender em tempo real com o app. A ideia é que os colaboradores tomem consciência de seus preconceitos de uma forma não ofensiva e possam, assim, mudar o comportamento no dia a dia, palavra por palavra.

Passados cinco anos, a ferramenta, aprimorada por meio de machine learning (“aprendizado de máquina”) com base em aspectos de etnia, gênero, idade, classe social, crença religiosa e acessibilidade, entre outros recortes, é usada por diferentes organizações ao redor do mundo. Uma delas é a Salesforce. O gigante de softwares baseado em São Francisco, na Califórnia (Estados Unidos), substituiu termos considerados não inclusivos em todos os seus produtos e introduziu novos campos para pronomes e identidades de gênero.

A empresa de CRM também criou uma força-tarefa de Linguagem de Produto Inclusiva com o objetivo de revisar conteúdos e códigos, e inaugurou um Escritório de Uso Ético e Humano da Tecnologia, com um Conselho Consultivo de Linguagem Inclusiva, que ajuda a acelerar tais mudanças. “É nossa responsabilidade garantir que a forma como construímos as ferramentas que são usadas pelos nossos clientes (e pelos clientes dos nossos clientes) seja intencional e cuidadosamente pensada para que todos tenham a capacidade de utilizar o software, a fim de tornar o mundo um lugar mais aberto e inclusivo”, diz Paula Goldman, a liderança à frente do escritório da Salesforce.

IA na produção de conteúdo

No Brasil, é possível observar outros exemplos interessantes de uso da linguagem inclusiva tendo a tecnologia como facilitadora. “Ainda é algo em construção, mas as empresas têm de fazer, seja por convicção, seja por conveniência”, avalia Andréa Migliori, fundadora e CEO da Workhub, solução de intranet presente em 21 países e que conta com mais de 240.000 usuários e clientes, como Monte Bravo Investimentos, BRK, Eletromidia e Hospital Sírio-Libanês. “Essa é uma pauta importante e recorrente, principalmente entre as empresas que estão listadas na B3”, afirma Andréa.

A empresa oferece uma ferramenta de geração de conteúdo por inteligência artificial para intranet que considera a perspectiva de uma linguagem mais neutra. Sobre o uso da linguagem inclusiva, Andréa destaca: “Você consegue falar ou escrever qualquer coisa sem pender para nenhum lado. Porém, dá um pouco mais de trabalho, porque a língua portuguesa não ajuda muito”.

Para não gerar um sentimento de exclusão em determinados grupos, a executiva sugere atenção à estrutura das frases. Um exemplo nesse sentido seria o uso da expressão “todas as pessoas”, em lugar de “todes”. Ou a utilização de nomes coletivos sem demarcação de gênero, como “pe­ssoal”. Essa linha seria também uma boa “porta de entrada” para empresas que desejam ingressar no universo da linguagem inclusiva. Basta ter cuidado na hora de escrever.

Paula Goldman, Chief Ethical and Humane Use Officer & EVP da Salesforce: responsabilidade de garantir a construção de ferramentas mais inclusivas (Ronny Knight/Divulgação)

Neutro ou inclusivo? Eis a questão

As diferenças entre linguagem neutra e inclusiva têm suscitado debates acalorados, principalmente por questões linguísticas, já que o português (diferentemente do inglês) usa o masculino como genérico, enquanto a linguagem neutra é não-binária. Sendo assim, na linguagem neutra, por exemplo, pode-se substituir o “e” por um “x” ou “@”, mas isso abre espaço para o capacitismo (discriminação contra pessoas com deficiência), pois dificulta o uso dos leitores de tela, que transformam informação visual em fala e não conseguem identificar o som desses caracteres, tampouco reconhecer as palavras.

Para resolver esse impasse, o que mais tem sido usado em termos de linguagem neutra é a substituição tanto do artigo masculino quanto do feminino pelo “e”, gerando, por exemplo, a palavra “todes” (em vez de “todos” ou “todas”). O uso do termo “todes”, inclusive, esteve presente em pelo menos seis cerimônias de posse de novos ministros e ministras do governo Lula, no início do ano.

Outro traço importante é o uso dos pronomes, com a substituição do “a” ou do “e” pelo “u”. Assim, temos “elu” (em vez de “ele” ou “ela”) e “delu” (no lugar de “dele”/”dela”). Ou, ainda, “ile” e “dile” (o equivalente a “they” e “them”, na língua inglesa, para pessoas não-binárias).

Mudanças exigem “olhar atento” das pessoas

Com uma equipe multidisciplinar de mulheres empreendedoras, a Integra rea­liza consultorias, assessorias e revisões de material interno e externo, sempre com o viés da linguagem inclusiva. “São demandas que têm crescido de forma contínua”, diz Alessandra Assis, consultora de Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento e coordenadora de projetos na companhia.

As empresas estão percebendo — muitas vezes pela dor —, diz ela, que, se quiserem ser relevantes no mercado, vão ter de levar em consideração essas questões. “Se a gente começar a olhar para as pessoas só como uma coisa, a gente acaba eliminando um monte de coisas que as pessoas podem ser”, comenta Alessandra.

Assim como Andréa Migliori, da Workhub, Alessandra entende que essa mudança não precisa “atropelar” a linguagem formal. “O importante é começar”, incentiva.

Assim, em vez de dizer “funcionário” (substantivo masculino), por exemplo, pode-se falar “pessoa funcionária” (ou “pessoa colaboradora”). Em vez de “diretor” ou “diretora”, “diretoria”. E por aí vai. “Primeiramente, é preciso treinar pessoas colaboradoras para terem um olhar atento para esse tipo de comunicação. E isso inclui também o público externo”, sugere.

Time da Integra: reduzir as pessoas a uma única coisa elimina outras tantas que elas podem ser (Divulgação/Divulgação)

Ações afirmativas

Algumas organizações estão bastante alinhadas com essa visão. A petroquímica Braskem, por exemplo, está pela terceira vez no Índice Bloomberg de Igualdade de Gênero, que avalia as práticas e políticas relacionadas a gênero de 620 empresas de capital aberto. Neste ano, das 484 empresas do mundo todo que integram o Bloomberg Gender-Equality Index, apenas 16 são brasileiras. “Queremos proporcionar aos nossos colaboradores a confiança de que, na Braskem, eles serão respeitados, acolhidos e tratados de maneira igualitária. Isso inclui uma série de ações afirmativas para que a companhia garanta a presença feminina nos mais variados cargos”, afirma Camila Fossati, diretora de desenvolvimento organizacional da Braskem.

O desafio está lançado

Os dicionários mostram que linguagem é um sistema de comunicação entre pessoas. Serve para expressar ideias e pensamentos, mas também sentimentos e emoções. Em suma, para além da função primordial de comunicar, a linguagem tem poder. Pode esclarecer, capacitar, unir pessoas. Da mesma forma, pode confundir, deseducar, dividir — e reforçar preconceitos.

Dentro de um contexto mais amplo, a linguagem está intimamente ligada à cultura, à história e à identidade das pessoas. É por isso que palavras importam, e todos temos a responsabilidade de garantir que elas sejam empregadas de forma respeitosa, inclusiva e livre de preconceitos.

Longe de ser um mero “modismo”, a questão da linguagem inclusiva tem sido um importante instrumento para promover diversidade e inclusão no dia a dia das organizações, buscando minimizar diferenças em prol de um ambiente de trabalho (e de uma sociedade) que não exclua ninguém. E a tecnologia, sem dúvida, terá cada vez mais o papel de ajudar nesse desafio.


Sob a lente da diversidade

Alguns bancos de imagens gratuitos têm como foco o olhar para a inclusão. O Nappy e o Young Gifted and Black, por exemplo, trazem só pessoas pretas; o Tem que Ter, gente da comunidade LGBTQIAP+; o AllGo, plus size; enquanto o Brasil com S e o Projeto Mulheres -(In)Visíveis, da Adobe, defendem a representatividade e a quebra de estereótipos, principalmente na publicidade.

Atenção!

Muita gente pensa que o recurso de texto alternativo em sites e redes sociais serve apenas para colocar legenda e créditos da fotografia, ou mesmo o nome do arquivo. Mas não é nada disso. Também encontrado como “alt tag” ou “descrição alt”, esse é um espaço destinado à descrição dos elementos de uma imagem. Ela é lida por softwares de leitores de tela, usados principalmente por pessoas cegas ou com baixa visão para transformar uma informação visual em fala.

Mais uma dica!

O simples fato de incluir legendas em fotos e vídeos é uma importante iniciativa para a acessibilidade. Isso porque, além de incluir pessoas surdas oralizadas e pessoas com deficiência auditiva oralizadas, as legendas permitem que muitos outros se beneficiem, inclusive indivíduos sem deficiência que, por alguma razão, não queiram ou não possam assistir a vídeos com som, o que tende a aumentar o alcance do conteúdo.

Hoje em dia, não é preciso baixar softwares sofisticados no computador para incluir as legendas. Basta baixar no smartphone aplicativos de edição que contenham o recurso de legendagem, como CapCut, Clips, AutoCap e VideoShow. Nesses aplicativos, a legendagem ocorre de forma automática. Só é preciso revisar e corrigir algumas palavras antes de salvar o vídeo no dispositivo.


Design acessível

Uma boa comunicação depende de a mensagem ser compreendida por todas as pessoas, sobretudo aquelas com baixa visão, daltônicas, com mais de 50 anos e neurodiversas. Nem todo design estará acessível para todas as pessoas, mas existem recursos para garantir que a maioria delas possa acessar e entender os designs por meio do uso de fontes (tipos de letra), cores e ícones.

Além disso, é preciso verificar se o público que se deseja atingir tem algum requisito específico de acessibilidade. E onde é possível encontrar as regras desse jogo? As Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web (WCAG 2.1) trazem todos os protocolos de acessibilidade web de forma simples e prática, no site https://guia-wcag.com – um projeto criado pelo Todos por Acessibilidade.



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