(Melina Mara-Pool/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 30 de abril de 2021 às 06h00.
Última atualização em 30 de abril de 2021 às 07h41.
Se havia uma palavra resumindo as expectativas para o governo do presidente americano, Joe Biden, esta era moderação. Com três décadas de experiência no Senado e tendo papel de importante articulação como vice no governo Barack Obama, Biden era um político conhecido e previsível. O mesmo pode ser dito de seu gabinete, com nomes tradicionais em Washington — da secretária do Tesouro, Janet Yellen, saudada pelo mercado financeiro quando anunciada, ao secretário de Estado, Antony Blinken, e o “czar” do clima, John Kerry.
Antes de seus 100 dias de mandato, completados oficialmente nesta sexta-feira, 30, poucos apostariam no veterano democrata como sendo o presidente a inaugurar uma nova era no capitalismo americano. Mas para parte dos analistas mundo afora, é exatamente isso o que a gestão Biden vem fazendo — ou tentando.
“A expectativa durante a campanha era de que Biden seria um presidente de transição. Mas ele tem usado seu poder político para se tornar um presidente transformacional”, resume o cientista político William Galston, especialista em governança no instituto de pesquisa Brookings e colunista do jornal Wall Street Journal.
A marca dos 100 dias costuma ser relevante para dar o tom do que pode ser o resto do mandato em novos governos. Para os dois presidentes americanos recentes, foi especialmente cheia de eventos: Barack Obama lidou com a crise de 2008 e Donald Trump chegou tentando mudar tudo para fazer a América great again.
Esperava-se de Biden, é claro, muitas políticas desfazendo algumas das medidas do antecessor, e ações na pauta de costumes, tema caro à nova leva de jovens eleitores democratas. Era aguardado também um tom de seriedade no combate à pandemia, tentativas de conciliação com parte da oposição e alguns estímulos generosos para a retomada econômica. E só.
Mas em seus primeiros meses, Biden mostra que deseja ir além. Já anunciou até agora três pacotes de investimento trilionários. Na prática, só o primeiro deles era tido como certeza durante a campanha — o plano de 1,9 trilhão de dólares para recuperação imediata da economia, que incluiu cheques diretos de 1.400 dólares enviados a mais de 160 milhões de americanos, quase metade da população.
Os outros dois não dizem respeito só ao momento atual, mas a uma reconstrução profunda para os próximos dez, 20 ou 30 anos. Foram apresentados nas últimas semanas um plano de infraestrutura e geração de empregos (de 2,25 trilhões de dólares) e o recém-anunciado plano para as famílias (1,8 trilhão de dólares). Incluem investimentos como melhoria da infraestrutura e reestruturação da economia americana para um modelo mais produtivo, moderno e sustentável. No plano das famílias, estão ainda demandas históricas de alas mais progressistas do Partido Democrata, como opções de educação superior gratuita.
Para arcar com tudo isso, anunciou que planeja um aumento de 21% para 28% da carga tributária das empresas. Também quer aumentar impostos pagos por americanos que ganhem mais de 400.000 dólares por ano. Do outro lado, no plano das famílias, propõe isenção de impostos a classes médias e baixas. "Wall Street não construiu este país", disse Biden no mês passado para justificar seu plano tributário.
O receituário de aumento dos gastos públicos bancado por alta de impostos quase poderia ter saído dos sonhos do senador Bernie Sanders ou da deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, tidos como vozes mais radicais nos EUA. Tudo que os analistas do mercado, antes da eleição, diziam temer. Em outras circunstâncias, as ações de Biden vistas até agora seriam recebidas com desconfiança. Mas não é o caso desta vez. O S&P 500, que reúne as principais empresas dos EUA, atingiu nos primeiros 100 dias de Biden seu maior crescimento no começo da gestão de um novo presidente desde os anos 50.
Parte significativa dessa alta diz respeito ao que Arthur Mota, economista da Exame Invest Pro, chama de “tese da reabertura”. Sob Biden, os EUA conseguiram fazer chegar em tempo recorde aos braços dos americanos as vacinas contra a covid-19 que começaram a ser produzidas e financiadas ainda no governo Trump. A população vacinada com a primeira dose passou de 40%, e com a segunda, chega a 30%. "São faróis que sustentam a perspectiva de uma reabertura em breve, e setores específicos da bolsa se beneficiam desse movimento", diz Mota.
Com os cheques de 1.400 dólares induzindo o consumo, o otimismo já é visto em diversos setores da economia. O produto interno bruto do primeiro trimestre, divulgado nesta quinta-feira, cresceu 6,4% na taxa anualizada — notícia considerada positiva pelo mercado mesmo com a base de comparação baixa, após recessão no ano passado. Enquanto isso, a geração de emprego em março foi a maior desde agosto.
A confiança reside na projeção de que, no segundo semestre, mais de 70% da população americana estará vacinada. A promessa de Biden era aplicar 100 milhões de doses nos primeiros 100 dias de mandato. No meio do caminho, dobrou a meta — alcançada com folga neste mês. "A despeito de qualquer pacote trilionário, sem o avanço da vacinação, seria tudo um pouco em vão", argumenta Mota. "A contratação das doses foi feita na gestão passada, mas o crédito à equipe de Biden é ter conseguido cumprir o planejado e até surpreender no cronograma de vacinação.”
Assim, da pandemia aos impostos, a intensa lista de demandas internas têm roubado a cena: apesar de alguns acenos a países aliados no exterior, embates com a China e reuniões indiretas com o Irã, a principal medida de Biden na política externa só veio mesmo na questão climática, em meio à Cúpula do Clima realizada na semana passada com 40 líderes globais. "O que Biden parece estar fazendo neste momento é um movimento de olhar para as questões internas, como a economia e a pandemia, sem grandes movimentações na política externa", diz o professor de Relações Internacionais Juliano Cortinhas, da Universidade de Brasília.
Mas há desafios novos também nesta seara, como no Afeganistão, de onde Biden antecipou a retirada das tropas americanas para setembro. Encerrar guerras no exterior tem sido uma promessa de vários governos, mas a realidade é mais complexa. "A retirada impõe um risco bastante grave de que o Oriente Médio possa novamente entrar em ebulição, o que pode trazer um desafio grande ao governo Biden", diz Cortinhas.
Dentro dos Estados Unidos, não é pela economia ou política externa, mas exatamente pelo sucesso com a logística das vacinas, que Biden vem sendo reconhecido.
A frente melhor avaliada do presidente é a resposta à pandemia, com 65% de aprovação (ante 38% de Trump no fim do mandato), segundo pesquisa Reuters/Ipsos. A taxa é maior do que a aprovação geral do governo Biden, de 55%. É um número melhor do que o de Trump no mesmo período, mas pior do que quase todos os presidentes pós-Segunda Guerra.
O grande desafio no momento é na imigração, onde a aprovação beira os 40%, fatia baixa para um começo de mandato. Os EUA têm enfrentado uma nova onda migratória na pandemia, sobretudo com a deterioração econômica na América Central. As políticas na fronteira com o México são amplamente criticadas pela ala mais progressista do eleitorado por terem quase nenhuma mudança em comparação ao governo Trump.
Biden foi eleito com a promessa de “curar as feridas do país”, mas a tarefa será difícil. Pesquisa do Washington Post/ABC, por exemplo, mostrou que, dos 120 milhões de americanos que ainda não se vacinaram, metade não pretende fazê-lo — a maioria republicanos, sinal dos resquícios fortes da divisão partidária mesmo passada a eleição.
A polarização ficou explícita também na primeira batalha de Biden no Congresso. O estímulo de 1,9 trilhão de dólares foi aprovado por maioria simples, mas sem nenhum voto republicano no Senado. O governo seguirá tendo os mesmos problemas para aprovar os novos pacotes, e a tendência é que parte dos planos seja reduzido na barganha com os republicanos.
Outro prognóstico que assombra os democratas é o de perder a frágil maioria no Congresso nas eleições legislativas de meio de mandato do ano que vem — as chamadas midterms. É relativamente comum que o presidente eleito com maioria no Congresso a perca na sequência. Obama e Trump perderam a Câmara logo nas eleições seguintes depois de chegarem ao cargo. Obama também perdeu o Senado mais tarde, em 2015, tornando seu fim de mandato amplamente instável. Bill Clinton perdeu ambos em 1995 e governou como minoria por seis anos.
Pesquisas até agora mostram que Biden, apesar da aprovação relativamente positiva, pode perder a maioria até mesmo na Câmara (e com ela o importante cargo de presidente da Casa, hoje de Nancy Pelosi). Este é parte do motivo pelo qual o novo governo tem se esforçado para tirar do papel as promessas de campanha logo no começo do mandato.
Perder o Congresso pode fazer Biden se aproximar exatamente do que não deseja: um segundo governo Obama. Repetidas vezes, seus auxiliares, muitos oriundos da gestão do ex-presidente, disseram que não queriam fazer um “governo Obama 2.0”. Após as medidas imediatas para conter a crise de 2008, ao perder a maioria no Congresso, Obama passou parte de seus oito anos se defendendo das investidas republicanas contra projetos tidos como mais reformistas.
Como Biden, o colega democrata assumia o país com a missão de tirá-lo de uma crise. Com plano que envolveu socorro sobretudo a bancos e montadoras, é consenso que Obama foi bem-sucedido na frente econômica e, anos depois, os EUA foram da crise para uma situação de pleno emprego. Mas o remédio escolhido foi bastante diferente — e até hoje o primeiro presidente negro dos EUA é criticado por não ter feito mais para “dividir o bolo” na hora da recuperação.
As medidas de maior participação do Estado são tradicionais nos governos democratas. Mas, se cumpridos, os planos anunciados por Biden até agora traçam uma diferença mais clara com os primeiros anos de Obama.
“Muitas pessoas sênior na gestão Biden acreditam que Obama não demandou estímulos suficientes para a economia e foi menos ousado do que poderia. Esse grupo está determinado a não repetir o que considera essa insuficiência da era Obama", diz Galston.
No cenário atípico do coronavírus, o uso da máquina pública para induzir a retomada econômica em alguma medida tem sido visto como necessário até pelos especialistas mais ortodoxos. Mas são os planos estruturais, para além do estímulo imediato, a parte relativamente surpreendente do que vem sendo chamado de “Bidenomics” — oposição ao “Reaganomics” do republicano Ronald Reagan nos anos 80, com corte de gastos e redução do tamanho do Estado, abrindo caminho para políticas neoliberais em todo o mundo desde então.
"Eu diria que o principal destaque do governo Biden na frente econômica é ter deixado muito evidente a pretensão de colocar os EUA como grandes vencedores do século 21”, diz o professor Marco Antônio Rocha, do Instituto de Economia da Unicamp. E isso significa, a partir de agora, dar a largada oficial em uma disputa tecnológica com a China — uma das “heranças” do governo Donald Trump e frente na qual Biden parece não estar disposto a retroceder. "Fica claro que Biden está, de certa forma, reestruturando o capitalismo americano para enfrentar o chinês”, afirma Rocha.
Especialista em desenvolvimento da indústria e tecnologia, Rocha aponta que essa mudança de rota americana deve respingar em todo o mundo. Para ele, juntos, China e EUA vão “reorganizar a estrutura física do capitalismo”, com investimentos que busquem mais produtividade, melhorias logísticas e novas tecnologias na indústria 4.0, como automação crescente e energias verdes. Para impedir que os dois gigantes não se distanciem muito do resto, outras potências industriais, como Alemanha e Japão, devem também colocar o pé no acelerador.
O risco, na outra ponta, está no excesso de gastos públicos gerado pelos planos econômicos. Se tudo der certo, o crescimento compensará os investimentos. Se der errado, a pressão inflacionária e aumento da dívida podem sair do controle pós-covid. Já é esperado que os EUA e outras economias desenvolvidas enfrentem alguma inflação neste ano. Mas o risco de que essa tênue balança fiscal saia do controle — mesmo para a maior economia do mundo — segue existindo. Investir na retomada é necessário, mas quanto gasto é gasto demais? “Esse é o grande debate na economia global neste momento”, diz Mota, da Exame Invest Pro.
Em discurso no Congresso nesta quarta-feira, 28, para marcar os 100 dias de mandato, Biden disse que esses são investimentos feitos “uma vez a cada geração”. O objetivo — diz ele com frequência — é construir os EUA “do futuro”.
"Ninguém espera ousadia de seu governo, o que é a maneira mais segura de obtê-la", escreveu o colunista e editor Janan Ganesh no jornal britânico Financial Times, sobre o início de Biden. "Nunca se sabe, mas suspeito que ele está gastando mais do que um presidente Bernie Sanders ou uma Elizabeth Warren poderiam ter gastado como esquerdistas de carteirinha."
Talvez Biden seja, por caminhos tortos, a forma mais eficiente para os reformistas democratas de implementar a “ousadia” que críticos dizem ter faltado em Obama. Enquanto isso, seu governo terá de lidar com a concorrência com a China, o sucesso de seus pacotes dentro de casa, a imigração, a polarização intensa e, até mesmo, com o risco de novas variantes pelo mundo podendo minar seu maior sucesso concreto até agora — a reabertura com a vacinação. Galston, da Brookings, assim define o clima no começo do governo Biden: “majoritariamente ensolarado, mas com chances crescentes de nuvens e tempestades mais tarde”.