Merkel: "Em tempos de globalização, quando se persegue uma política nacional, há que se pensar na interconexão global" (Hannibal Hanschke/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 26 de janeiro de 2021 às 10h42.
Última atualização em 28 de janeiro de 2021 às 22h32.
Após fala do presidente chinês Xi Jinping abrindo o Fórum Econômico Mundial e pedindo maior "cooperação" entre os países, a chanceler alemã Angela Merkel também defendeu a necessidade de medidas globais no segundo dia do evento, na manhã desta terça-feira, 26.
Na fala, Merkel disse que a pandemia "mostrou de forma muito clara o quanto estamos interconectados" e que está é a "era do multilateralismo". Mas não sem regras: a chanceler pediu competição no mundo tecnológico e, citando o discurso de Xi no dia anterior, afirmou que não acredita que o caminho a seguir seja uma divisão do mundo entre China e EUA.
Merkel afirma que a pandemia testou "a resiliência de nossos sistemas e sociedades" e que "nossa vulnerabilidade ficou óbvia". A alemã usou como exemplo o fato de a pandemia possivelmente ter começado em animais e se espalhado para humanos -- mostrando como o ser humano também é parte da natureza, independentemente dos avanços tecnológicos.
Perguntada sobre o discurso de Xi Jinping, Merkel disse que concorda com o chinês sobre a importância do multilateralismo mas disse que não há concordância "imediata" quando o debate se volta aos "sistemas sociais diferentes" entre os países -- em crítica à falta de democracia na China. "A China se comprometeu ao quadro das Nações Unidas, e a dignidade do indivíduo tem um papel nesse quadro, então... temos de discutir essa questão, não importa de qual sistema social viemos", disse, defendendo também que as relações comerciais exigem transparência.
Apesar das críticas ao modelo político chinês, Merkel também comentou indiretamente a guerra comercial entre China e EUA, deixando claro que a Europa não deve, neste momento, ter um lado claro no confronto. "Eu gostaria muito de evitar a construção de blocos, não acho que faria justiça a muitas sociedades se disséssemos: aqui estão os EUA, e lá está a China, e estamos nos agrupando com um ou outro. Não é meu entendimento de como as coisas devem ser."
No fim do ano passado, União Europeia e China assinaram um histórico acordo de investimentos que mostra uma posição de maior independência europeia, segundo especialistas, após anos de distanciamento com os EUA no governo Donald Trump. Uma reaproximação com a Europa deve estar entre as principais medidas do novo governo de Joe Biden.
Em diversos momentos da fala, Merkel também citou uma preocupação com "processos de concentração" nas empresas, que, segundo ela "têm de ser parados caso se tornem muito poderosos".
Citando o governo novo governo Biden, a chanceler disse que tem esperança de que, "especialmente com a nova administração americana", a OCDE (grupo de economias desenvolvidas) possa continuar um trabalho de discussão sobre taxação, em especial a empresas digitais.
"Estamos em uma posição melhor para olhar a importância global de leis de competição de modo a prevenir monopólios. Porque nós de fato temos essas tendências, em todo o mundo. E temos que endereçar isso", disse, sem citar companhias específicas, mas em claro recado às grandes empresas de tecnologia americanas, como Google, Facebook, Amazon e Apple.
A falta de concorrência no setor vem sendo questionada especialmente na Europa nos últimos anos, mas também dentro dos EUA. Merkel afirma que, se esse desafio não for enfrentado -- ou se o for "de forma insuficiente" --, o mundo terá monopólios e muitos problemas.
Questionada sobre o papel do Estado e o capitalismo de stakeholder, que defende a geração de valor a todas as partes interessadas no negócio -- um dos principais temas deste ano em Davos --, Merkel disse que é preciso encontrar "um balanço certo" entre as ações dos Estados e das empresas, de modo a não minar o empreendedorismo e a criatividade.
Disse, no entanto, que o Estado seguirá sendo crucial na busca por soluções -- e frisou que essas medidas devem levar em conta o contexto do mundo, não só de seu próprio país. "Em tempos de globalização, quando se persegue uma política nacional, há que se pensar na interconexão global", disse. Dentre os exemplos de medidas que cabem aos governos em todo o mundo, ela voltou a citar ações contra a concentração empresarial.
Merkel também comparou o capitalismo de stakeholder à chamada social market economy (economia de mercado social), o modelo que predominou na Europa pós-Segunda Guerra e que busca combinar um mercado capitalista livre com políticas sociais que estabeleçam competição justa e um estado de bem-estar social, com acesso a saúde, educação e outros direitos básicos. "Acredito que o capitalismo de stakeholder e a economia de mercado social são idênticas", disse.
Sobre os temas ambientais, disse que é preciso que os países tenham "a mente aberta" para as novas tecnologias e que o mundo deve mudar suas políticas energéticas, avançando para frentes como carros elétricos e energias renováveis. Defendeu também que os governos devem colocar preços nas emissões de poluentes. "E isso tem de ser obrigatório, pois não acredito que nenhuma empresa individualmente faria isso por si mesma, ou o faria de forma rápida o suficiente -- ao menos, não a totalidade das empresas", disse.
Merkel disse que a Alemanha defende que União Europeia, em seu plano de recuperação, não diminua o investimento na cooperação com países mais pobres, mas que "faça mais".
"Estamos em um perigo presente claro que depois da pandemia nos termos mais voltados para dentro: industrializemos países, concentremos em nossas próprias políticas, e não nos importemos com os países em desenvolvimento. É algo que temos que evitar a todo custo", disse.
O tema deve ser crucial nos pós-pandemia da UE e de outros países desenvolvidos. Ao mesmo tempo em que os países do bloco enfrentam recessão e defendem recursos para a recuperação interna, o fantasma do aumento da imigração, sobretudo após a Primavera Árabe na década de 2010, ainda assombra o continente e pode se intensificar com a crise pós-covid.
A União Europeia e os países ricos também tem sido criticados por concentrar a compra de vacinas contra o coronavírus, enquanto a vacinação ainda engatinha nos países em desenvolvimento.