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O Brasil e um debate: tirar as patentes pode acelerar a vacinação da covid-19?
Ao se posicionar a favor das patentes para o coronavírus, Brasil foi na contramão da posição histórica que levou o país ao pioneirismo mundial nos genéricos. O tema volta à tona com as vacinas
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Vacinação no Cristo Redentor: sem apoio do Brasil, bloco dos países em desenvolvimento argumenta que quebra de patentes poderia agilizar produção de vacinas (Ricardo Moraes/Reuters)
Publicado em 24 de janeiro de 2021 às, 08h01.
Última atualização em 24 de janeiro de 2021 às, 12h05.
Uma discussão que passou quase despercebida na política externa brasileira voltou aos holofotes nesta semana. Em outubro, Índia e África do Sul propuseram à Organização Mundial do Comércio (OMC) que não houvesse sanções comerciais aos países membros que quebrassem patentes de medicamentos e vacinas contra a covid-19.
A iniciativa acontecia no momento em que chegavam os resultados das primeiras vacinas contra o vírus que assolou a saúde da humanidade e desgastou economias. A ideia era aumentar a capacidade produtiva: a produção nas fabricantes originais era limitada e dificilmente seria suficiente para as nações desenvolvidas, menos ainda para os países pobres. Com a quebra da patente esperava-se que, no médio prazo, laboratórios e institutos de biotecnologia ao redor do mundo pudessem ganhar alguma escala e ajudar na imunização da população global.
A proposta, que citava as “circunstâncias excepcionais” causadas pelo coronavírus, colocava na mesa uma trégua temporária contra a imposição de regras de patentes, segredos comerciais e monopólios farmacêuticos. Foi apoiada por mais de 100 nações, segundo cálculos da organização Médicos Sem Fronteiras.
Mas houve um bloco notório de países contrários à medida, que precisariam concordar, já que a OMC funciona com base em consensos. Entre essas nações estavam sedes de grandes indústrias farmacêuticas, como Estados Unidos, a União Europeia, Suíça, Noruega, Canadá, Japão, Austrália. Mas um país destoou de sua postura tradicional em relação a patentes e se alinhou ao bloco dos desenvolvidos na discussão: o Brasil.
Em reuniões fechadas da OMC em outubro e nos meses seguintes, o Brasil se opôs repetidas vezes à quebra de patente para as vacinas. Foi o único entre os principais emergentes a se posicionar dessa forma. Mesmo a China, que tem até agora duas vacinas nacionais contra a covid-19, não se opôs à medida e disse que está aberta à análise. As discussões ocorreram no conselho TRIPs — que trata das propriedades intelectuais dos membros — e ainda não chegaram a votação no conselho geral.
Nas reuniões, a delegação brasileira tem defendido que uma renúncia às patentes “dificilmente seria uma solução global” para a falta de vacinas e que o melhor caminho são os acordos de licenciamento direto com as fabricantes.
A postura do Brasil chamou atenção. O país, afinal, tem um histórico próximo da produção de genéricos e da quebra de patentes. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, no início dos anos 2000, o Ministério da Saúde (do então ministro José Serra) ameaçou quebrar patentes de medicamentos contra o HIV e conseguiu preços melhores junto às farmacêuticas, culminando num programa de tratamento da doença que se tornaria referência. Desde então, o Brasil é um dos pioneiros mundiais nessa frente, posição que se manteve nos governos seguintes.
A lei de genéricos, da mesma época, trouxe economia ao bolso dos consumidores e foi fundamental para ampliação do acesso aos medicamentos no SUS, afirmam especialistas. Segundo dados da associação PróGenéricos, a economia nos 20 anos da lei chegou a 132 bilhões de reais. Em 2020, a venda dos medicamentos genéricos cresceu 7% durante a pandemia.
Vacinação em São Paulo: delegação brasileira na OMC se posicionou contra a quebra de patente de vacinas e medicamentos para covid-19
As medicações estimularam o desenvolvimento científico no setor farmacêutico do país, já que precisam de aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e são submetidos a rigorosos testes.
De acordo com Cristina Castro-Lucas, professora de empreendedorismo, inovação, marcas e patentes no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília, houve ainda um efeito econômico secundário, com impacto na indústria farmacêutica de médio porte.
Enquanto laboratórios grandes conseguem investir mais em pesquisa e desenvolvimento de novas fórmulas, os de menor porte ganharam competitividade com capacidade de inovar, trabalhando com fórmulas de patentes que até então eram exclusivas. “Laboratórios médios inovam gerando incremento em uma determinada fórmula e trazendo novas soluções para a sociedade”, disse.
Para ela, as ações brasileiras com os genéricos geraram acesso à população, principalmente de baixa renda, que não poderia acessar antes medicações patenteadas para doenças como diabetes, HIV ou cardiopatias.
Por isso, para além das vacinas, a mudança de postura do Brasil na OMC em relação às patentes, se colocando contrário à quebra delas para desenvolvimento de medicamentos essenciais, traz ainda preocupação a especialistas: a possibilidade de que a posição continue em outros momentos, prejudicando não só o combate direto à pandemia de covid-19, mas futuros medicamentos para outras doenças e sequelas deixadas pelo coronavírus, que gera problemas pulmonares, cardíacos e renais em muitos pacientes.
Fantasma do outubro passado
Após as discussões na OMC desde outubro, houve nesta semana uma nova tentativa de consenso sobre o tema das patentes, novamente sem sucesso. Mas, desta vez, o Brasil se absteve e não votou com os países desenvolvidos. O debate na terça-feira, 18, aconteceu em meio à dificuldade do Brasil em conseguir as doses de vacinas necessárias e à urgência em melhorar as relações diplomáticas com países dos Brics, como a Índia, autora da proposta. O Brasil esperava, até aquele momento, receber 2 milhões de doses de vacina de AstraZeneca/Oxford vindas da Índia — que chegaram nesta sexta-feira, 22.
“A votação do Brasil com os países desenvolvidos foi fora da curva, na contramão do histórico brasileiro”, diz Soraya Smaili, reitora da Universidade Federal Paulista (Unifesp) e professora do Departamento de Farmacologia. “As patentes têm a ver com uma questão industrial muito forte, ao mesmo tempo em que se argumenta que deveriam ser um bem público", diz.
Além dos entraves diplomáticos gerados, o impasse na OMC também deixou claro o baixo investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil: para proteger patentes é preciso desenvolvê-las.
Smaili aponta que é o investimento feito historicamente que faz com que o Brasil não esteja tão atrás quanto poderia na corrida pela vacina. Mas mais é necessário, diz a professora. "Esta crise, infelizmente, não será a primeira. E a pandemia deixou claro que o Brasil precisa investir para se preparar para os próximos desafios. Não é o que estamos vendo na realidade."
Em todo o mundo, parte do investimento de inovação e tecnologia é, invariavelmente, governamental, porque somente governos arcam com alguns dos riscos envolvidos. No Brasil, muitas pesquisas pioneiras são notoriamente feitas em institutos públicos, como Butantan e Fiocruz, e nos laboratórios de universidades, de onde saem algumas das primeiras inovações que depois poderão ganhar escala.
Centro de distribuição da Pfizer no Mississippi, nos EUA: a maior parte das patentes em saúde está nos países desenvolvidos
O investimento público fez parte do desenvolvimento de vacinas mundo afora, o que é outro dos argumentos dos que defendem a quebra das patentes. A vacina da americana Moderna, por exemplo, recebeu 2,5 bilhões de dinheiro público nos EUA e teve parte de sua pesquisa realizada por órgãos nacionais.
A da também americana Pfizer com a alemã BioNTech, mesmo sendo uma das vacinas que mais usou recursos exclusivamente privados, ganhou 455 milhões de dólares do governo alemão, além de um compromisso de compra de 6 bilhões de dólares de Estados Unidos e União Europeia. O imunizante da sueco-britânica AstraZeneca com a Universidade de Oxford contou com os cofres públicos do Reino Unido. O governo americano investiu ainda na vacina da Johnson & Johnson, uma das mais aguardadas para este ano por possivelmente necessitar de somente uma dose.
O Brasil tem uma série de vacinas em estágios iniciais de desenvolvimento, mas que sofrem com gargalos no financiamento. O baixo investimento na vacina brasileira é um retrato da atual situação da ciência nacional. Em 2017, o Brasil destinava 0,8% do produto interno bruto (PIB) — na época na casa dos 2 trilhões de dólares — para pesquisa e desenvolvimento. Nos Estados Unidos, um dos países que lideram o ranking mundial de investimento em ciência, foram 2,8% dos 19,4 trilhões de dólares do PIB no mesmo ano. Fundos e programas de desenvolvimento científico e apoio a pesquisadores no Brasil também tiveram sucessivos cortes nos últimos anos.
Quebra de patentes não teriam impacto no curto prazo
Apesar da discussão sobre a quebra das patentes, o resultado desse processo não resolveria a escassez dos imunizantes no curto prazo. Para especialistas, a medida proposta na OMC não teria impacto imediato porque o principal gargalo ainda é a capacidade de produção. O resultado seria daqui a alguns meses ou mesmo anos, quando mais países, em especial os mais pobres, tivessem alinhado suas produções internas.
Há ainda o argumento de que as vacinas foram aprovadas e desenvolvidas em tempo recorde, e uma quebra de patente que permitisse a produção sem autorização direta poderia prejudicar a qualidade e segurança dos insumos. Na própria Anvisa, os interessados na fabricação de uma vacina de patente quebrada teriam de provar que elas são seguras, possivelmente fazendo mais testes clínicos como os feitos pelas fabricantes originais. É o que já acontece com os genéricos.
"Ainda que a tecnologia das vacinas de covid-19 estivesse liberada, é difícil garantir que a produção seria segura sem fazer novos testes que levariam tempo. E ter vacinas inseguras seria o pior cenário", diz a professora Patricia Danzon, especialista em economia da saúde na Universidade da Pensilvânia e que estuda o preço de medicamentos.
Uma alternativa à quebra de patentes são os acordos de transferência de tecnologia. O Brasil garantiu o direito de fabricar nacionalmente a vacina da de AstraZeneca/Oxford — que será produzidas na Fundação Oswaldo Cruz — e a Coronavac, da chinesa Sinovac — feita no Instituto Butantan.
"É muito mais eficiente pegar as vacinas que já foram autorizadas e aprovar contratos de licenciamento, como os que o Brasil fez", diz Danzon.
Em ambos os casos, o Brasil pagou para ter o direito de produzir as vacinas internamente, o que não é uma quebra de patente. Mas ainda organiza as fábricas de Fiocruz e Butantan para poder fabricar os insumos necessários. Por isso a necessidade, neste momento, de comprar doses prontas ou de trazer o princípio ativo das duas vacinas (o chamado IFA, sigla para insumo farmacêutico ativo) da China, que precisa somente ser envasado no Brasil -- como o Butantan já vem fazendo com a Coronavac.
Linha de produção da Coronavac no Butantan: sem investimento histórico em institutos como Butantan e Fiocruz, o Brasil poderia estar ainda mais atrás na vacinação
Organizar a produção interna leva tempo. Um dos exemplos mais comemorados no Brasil e referência mundial, a produção de vacinas da gripe pelo Butantan, envolveu um processo de transferência de tecnologia com a Sanofi Pasteur que durou mais de uma década, começando com envase do produto a partir de 1999 até a produção própria a partir de 2011. É um processo parecido ao que vem sendo feito com as vacinas do coronavírus neste momento — mas em um espaço de tempo que precisa ser muito menor.
Apesar do pouco impacto imediato e da possibilidade de acordos, um dos argumentos que têm sido usados na OMC pelos países e organizações humanitárias que defendem a quebra das patentes é de que os acordos das fabricantes têm sido pouco transparentes.
Nem todas as fabricantes ingressaram, por exemplo, na Covax Facility, iniciativa da Organização Mundial da Saúde para garantir acesso às vacinas aos países mais pobres — a Pfizer entrou na aliança somente nesta semana. Enquanto isso, países de alta renda já garantiram 85% da vacina da Pfizer e todas da Moderna, segundo a empresa de pesquisa Airfinity, com sede em Londres.
"Desde o início da pandemia, as corporações farmacêuticas têm mantido a sua prática padrão de controle rígido sobre os direitos de propriedade intelectual, enquanto prosseguem com acordos comerciais secretos e monopolistas que excluem muitos países em desenvolvimento de se beneficiarem", disse no ano passado o diretor executivo da campanha de acesso a remédios do Médicos Sem Fronteira, Sidney Wong. Wong apontou na ocasião que, com exceção de uma empresa, "nenhum dos criadores da vacina se comprometeu a tratar a propriedade intelectual de forma diferente do status quo".
A “exceção” à qual Wong se refere é a AstraZeneca, que terminou por ter uma das maiores iniciativas de distribuição de vacinas da covid-19 ao fazer licenciamentos como o feito com a Fiocruz e com o Instituto Serum, da Índia (o responsável por enviar as primeiras duas milhões de doses prontas da vacina da AstraZeneca ao Brasil).
Os contrários às patentes apontam ainda que as farmacêuticas têm a prerrogativa de encerrar os direitos de produção concedidos a países como o Brasil. Isso geraria uma preocupação no futuro, caso o coronavírus exija, por exemplo, vacinações anuais ou periódicas.
A indústria argumenta que investe bilhões de dólares e corre riscos na produção de novas vacinas ou medicamentos, que poderiam não ter sido aprovados. Embora as farmacêuticas afirmem que não têm buscado lucrar com as primeiras levas de vacinas, é a existência de patentes e da possibilidade de maximizar os lucros no futuro que faz com que as empresas invistam em pesquisa e desenvolvimento, segundo argumenta a indústria.
Nos EUA, onde os medicamentos estão entre os mais caros do mundo, um argumento comum é que este cenário possibilita com que as farmacêuticas do país tenham 70% do lucro do setor entre países desenvolvidos, mas também 60% das patentes de alto valor.
No Brasil, onde não há uma pujante indústria farmacêutica própria, o investimento em ciência e a quebra das patentes para prover saúde à população seguirão sendo temas para 2021.