(Luis Robayo/AFP)
Editor de Macroeconomia
Publicado em 22 de outubro de 2023 às 12h55.
Última atualização em 22 de outubro de 2023 às 16h00.
A Argentina se prepara para suas eleições presidenciais. À frente das — muitas — pesquisas está o nome do economista Javier Milei, um ultraliberal que tem em sua essência ser um outsider (leia aqui o perfil do candidato). É cedo para dizer, mas uma possível vitória de Milei mostra que a insatisfação popular é o tema central da disputa e confirmaria uma tendência cada vez mais cristalina na América Latina: candidatos à presidência que não conseguem se reeleger ou eleger seus sucessores.
Desde 2015, a situação ganhou apenas sete das 33 eleições presidenciais ocorridas na região - os dados não incluem votações consideradas injustas na Venezuela e Nicarágua. A informação consta de um estudo de Carlos Malamud e Rogelio Núñez Castellano, pesquisadores do Real Instituto Elcano.
Em um paper de abril— antes, portanto, das eleições de Paraguai e Equador —, eles destacaram que o triênio de 2022 a 2024 redesenharia o mapa político latino-americano.
Sobretudo, eles questionavam se a "Onda Rosa", como ficou conhecido o fenômeno de partidos de esquerda ou centro-esquerda voltando ao poder, seguiria. Ou se, na verdade, a região vive uma tendência de "voto de castigo" aos que estão no poder.
A EXAME já havia ressaltado essa tendência na edição de agosta da revista. Em uma entrevista, o pesquisador Oliver Stuenkel avaliava que a Onda Rosa caminhava para o fim. “A gente já está vendo os primeiros sinais do fim da Onda Rosa com as eleições da Argentina, onde é muito provável que a direita ganhe. O pêndulo está se movendo rapidamente porque poucos governos conseguem atingir alta taxa de aprovação”, disse.
ENTREVISTA: Milei na Argentina: O fim da 'Onda Rosa' na América Latina?
Na mesma toada, Malamud e Castellano argumentam que, de maneira geral, "tudo indica que haverá uma mudança e se confirmará que desde 2015 há um constante voto de rejeição ao partido no poder e não uma virada para a direita (2015-2020) ou para a esquerda (2021-2022)".
"Desde 2018, por exemplo, a oposição venceu em 76% das eleições (presidenciais, legislativas, estaduais e locais). Durante este período de cinco anos (2018-2022), em eleições justas (ao contrário do que aconteceu na Venezuela em 2018 e na Nicarágua em 2021), nenhum candidato do partido no poder, com exceção do Paraguai há cinco anos, conquistou a presidência", destacam.
Mais que uma onda rosa, como notou o articulista do El País Carlos Granés, o que parece avançar é "tsunami de insatisfação". "Os cidadãos querem mudanças e é isso o que oferecem os políticos que agora estão no poder", escreveu na publicação espanhola.
Malamud e Castellano argumentam que essa tendência de votos de castigo vem desde 2015.
De 2015 a 2018, oito em 13 eleições sagraram vitoriosa a oposição. "Pela sua própria natureza, o voto de castigo, relacionado com o declínio do contexto socioeconômico desde 2013 (a nova Década Perdida), encurta cada vez mais os períodos de hegemonia de um partido ou presidente", observam os pesquisadores.
A chamada "década dourada" da região, de 2003 a 2013, levou ao predomínio de partidos ou movimentos políticos pela América Latina. No Brasil, onde o PT governou por 14 anos; na Argentina, onde o kirchnerismo dominou por 13 anos, Bolívia, onde o evismo se manteve no poder por 13 anos, ou na República Dominicana, com a manutenção do Partido da Liberação Dominicana (PLD) seguiu à frente do país por 16 anos.
"As atuais mudanças políticas (de direita entre 2015 e 2020 e agora de esquerda) são intensas, mas de curta duração. Os eleitores expressam seu descontentamento e frustração com as expectativas diante de um cenário de deterioração social, econômica e de segurança, punindo aqueles que estão no poder", argumentam os pesquisadores.
É neste o contexto em que os argentinos votam neste domingo, 22.
Enfrentam-se ali três posições antagônicas: a situação peronista/kirchnerista, representada por Sergio Massa - e cujas medidas econômicas recentes formam uma longa lista - e a oposição tradicional, que aposta na figura linha dura de Patricia Bullrich para fazer valer sua tradicional visão antiperonista.
EXCLUSIVO: Os detalhes da estratégia da oposição argentina para enfrentar Javier Milei
Bebendo da fonte da onda antissistema que reina na América Latina, está Javier Milei, cujos destaques eleitorais são propostas radicais para a economia e a polarização com a classe política tradicional.
Nesse contexto, lembram Malamud e Castellano, ele se posiciona como a ruptura ao regime de 1983, em referência ao processo de redemocratização após a ditadura militar.
Benjamin Gudon, diretor do programa para a América Latina do Wilson Center, um think tank americano, avalia que a Argentina reúne hoje todos os elementos que permitiram candidatos antissistema se sagrarem vitoriosos em eleições recentes na região. No país vizinho, porém, a situação econômica, em especial, é mais extrema.
"Não foram apenas um ou dois anos ruins, mas uma década, não só inflação elevada, mas três dígitos de inflação, crescimento negativo, aumento da pobreza, escândalos de corrupção. É uma longa lista de explicações.", disse Gudon ao podcast Globalist da revista Monocle. "É semelhante a outros países na região, mas, novamente, muito mais exagerado."
Não se pode esquecer que a América Latina segue como a região do mundo com maiores índices de desigualdade social e econômica, além de ser, disparada, a mais violenta, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).
E o cenário que se desenha aponta para mais instabilidade e menor capacidade de governabilidade à medida que novos entrantes chegam com alianças políticas menos institucionalizadas - e muitas vezes forjadas por ocasião eleitoral.
"A polarização e a fragmentação complicam a governabilidade e dificultam a gestão de governos com pouco espaço político e econômico para manobra. Os cidadãos, desiludidos em suas expectativas, reduzem sua confiança no sistema e recorrem ao voto de protesto contra o partido no poder, apoiam candidatos externos ao sistema ou até mesmo contrários a ele, participam de mobilizações sociais e protestos", analisam os pesquisadores do Real Instituto Elcano.
Além disso, é preciso observar como essa possível onda de insatisfação se desdobrará na economia. Em suma, a América Latina registra há décadas baixas taxas de crescimento - especialmente na produtividade das economias - na comparação com outras regiões do mundo.
A situação política inspira uma vigilância para entender se o crescimento econômico seguirá aquém do necessário, em uma região imersa em uma nova "Década Perdida", e se a falta de reformas estruturais na região está impedindo uma verdadeira transformação produtiva.
Por fim, como argumentam em artigo recente na revista Foreign Affairs Will Freeman, pesquisador do think tank Council on Foreign Relations (CFR), e Ryan Berg, do think tank Center for Strategic and International Studies (CSIS), o contexto político pode também ajudar a entender se a América Latina seguirá como "a terra que a geopolítica esqueceu".
Os pesquisadores do Real Instituto Elcano adicionam se os países latino-americanos seguirão numa trajetória "periférica" ou se tentarão se tornar internacionalmente relevantes, com novas alianças estratégicas, como com a União Europeia (UE).
"Tudo indica que a América Latina será o cenário renovado de um grande jogo geopolítico entre as grandes potências mundiais. Os Estados Unidos, China, a UE e a Rússia estão de olho em uma região rica em energias renováveis e matérias-primas (lítio, hidrogênio verde, cobre e terras raras)", escreveram.
EXAME mostrou na edição de maio deste ano como a América Latina está particularmente bem-posicionada para ser a maior fonte de minérios essenciais à transição energética. Estima-se, por exemplo, que Argentina e Bolívia somem 40% das reservas mundiais de lítio. O desafio será transformar recursos naturais em riqueza para atrair investidores.
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"A transição verde na economia global significa que a próxima década deve ser o momento de destaque da América Latina: a região é rica em fontes de energia limpa e minerais críticos, tem uma população relativamente jovem e se beneficia da proximidade com os Estados Unidos", argumentam Freeman e Bergen, na Foreign Affairs.
Em meio a isso, o fato de "estar de costas" para a geopolítica global pode ser mais uma vantagem do que uma desvantagem. Como China e EUA focaram suas tensões em outros temas e regiões, e têm questões mais urgentes a lidar como a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e Hamas, os presidentes latino-americanos terão algum caminho livre para transitar no meio dessa disputa.
Se os novos presidentes que, ao que tudo indica virão de quadros da oposição, tiverem calma e posicionarem a região como um local seguro para investimentos, a região pode sair ganhando. Em 2024, por exemplo, México, El Salvador, Panamá, República Dominicana e Uruguai terão eleições - e possivelmente até a Venezuela.
O desafio é entender se, uma vez no poder, esses novos atores políticos eleitos com a retórica antissistema darão um passo atrás para fortalecer a institucionalidade e o sistema que prometeram combater em suas campanhas.
A eleição na Argentina é mais uma peça desse intricado quebra-cabeça.