Desigualdade social torna o combate à COVID-19 ainda mais difícil
Pesquisa mapeou a cidade de São Paulo em oito tipo de agrupamentos urbanos, a partir do grau de vulnerabilidade ao coronavírus
Victor Sena
Publicado em 16 de abril de 2020 às 13h17.
Última atualização em 11 de maio de 2020 às 18h45.
Em uma megalópole complexa como São Paulo, com enormes desigualdades econômicas , sociais e culturais, a definição de estratégias de ação e a eficácia de medidas de combate à pandemia da COVID-19 constituem um formidável desafio.
As diferenças que distinguem grupos sociais em uma cidade de mais de 12 milhões de habitantes ficam evidentes no estudo “Os padrões urbano-demográficos da capital paulista”, produzido por Marcelo Nery, Altay de Souza e Sérgio Adorno.
A pesquisa, que teve apoio da FAPESP, foi realizada no âmbito do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela Fundação.
“Enfrentar a pandemia em São Paulo é algo extremamente desafiador devido à heterogeneidade. Não existe um único corte, entre centro e periferia ou entre ricos e pobres, mas uma situação muito mais complexa”, diz Adorno à Agência FAPESP. Professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ele é o coordenador científico do NEV-USP.
Adorno cita como exemplo a alta concentração de pessoas em moradias precárias. “Por mais necessário que seja o confinamento, é muito difícil que ele seja cumprido à risca nos agrupamentos urbanos onde predominam trabalhadores de baixa renda e escolaridade, e elevada densidade demográfica por cômodo de residência, o que dificulta o isolamento social.
Além do mais, a maior parte das pessoas passa o dia em atividades fora de casa, o que intensifica o contato interpessoal. Grande parte dos trabalhadores informais depende de sair à rua diariamente para se sustentar. A pandemia ressalta, de maneira dramática, toda a escandalosa desigualdade social do país”, diz.
Agrupamentos urbanos distintos
O artigo publicado por Adorno e outros pesquisadores é parte de um grande survey longitudinal (método de pesquisa que analisa a evolução das mesmas variáveis nos mesmos grupos de indivíduos ao longo de um largo período de tempo) iniciado em 2013.
A pesquisa identificou oito agrupamentos urbanos, muito diferentes uns dos outros, que se constituíram ao longo do processo histórico de urbanização e expansão da cidade. “Não são agrupamentos urbanos definidos por um recorte espacial preciso, mas por 19 variáveis econômicas, sociais e culturais, submetidas à análise fatorial”, explica Adorno.
Para identificar esse mosaico que compõe a cidade, o estudo levou em conta dados habitacionais, populacionais e de condições sanitárias e de higiene dos últimos quatro censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (1980, 1991, 2000 e 2010), pesquisa origem destino do Metrô de São Paulo de 2007, informações da prefeitura do município de São Paulo e da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) para compor um conjunto de 19 indicadores sobre condições ambientais, habitacionais, sanitárias e de higiene, mobilidade urbana, padrões criminais, perfil populacional, dados habitacionais, entre outros.
A análise desses dados revelou uma São Paulo dividida em oito agrupamentos. O grupo A se concentra na área central da cidade – inclui as regiões da avenida Paulista e da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, por exemplo –, tem bons índices de condições sanitárias e higiene, possui a mais alta variação de domicílios particulares permanentes e a maior proporção de verticalização, com alta proporção de chefes de família alfabetizados (99,3%) e de alta renda (8,6%) e vários setores sem registro de homicídios dolosos.
O grupo B, também localizado na região central, se assemelha ao grupo A no que se refere às condições sanitárias e de higiene e de domicílios particulares permanentes, mas tem maior proporção de domicílios improvisados, baixa densidade demográfica e maior proporção de população masculina jovem.
Com reduzido número de aglomerados subnormais (ocupações irregulares) e boas condições sanitárias e de higiene, também o grupo C se destaca pela grande proporção de chefes de família alfabetizados (98,9%) e de alta renda (5,5%). Já o grupo D, tem índice de verticalização baixo, baixa proporção de domicílios com instalação sanitária e infraestrutura menos adequada, em comparação aos grupos A, B e C.
O grupo E se caracteriza por aglomerados subnormais (25,5%), domicílios improvisados e menor índice de chefes de família com renda alta. As análises indicam que o grupo está entre os mais atingidos por migrações e demanda por habitações nos anos 1950, registra saturação viária e formação de cortiços e favelas.
Nos limites extremos da cidade, em zona de proteção aos mananciais e em áreas de risco, a pesquisa identifica o grupo F, com baixa variação relativa do crescimento populacional e de domicílios particulares permanentes.
O grupo G é resultado da urbanização desordenada e do processo de favelização, caracterizando-se como área particularmente vulnerável, marcada pela insegurança habitacional e má qualidade dos serviços públicos. Nas “franjas da Serra da Cantareira”, nos subúrbios de São Paulo, a pesquisa identificou o grupo H, instalado em área de risco, com os piores índices de atendimento de água, esgoto e coleta de lixo, alta taxa de homicídios e atividade agrícola consolidada.
“As análises descritas neste trabalho salientam com clareza o fato de que o espaço urbano é heterogêneo”, afirmam os autores, sublinhando que a dicotomia centro-periferia não dá conta de explicar a diversidade social, econômica e os usos do tecido urbano da cidade de São Paulo.
Eles concluem que a “identificação do conjunto de padrões urbanos coloca-se como estratégia para pesquisa e intervenções” e sublinham que esses padrões “podem formar a base de uma administração pública melhor embasada na estrutura do município, promovendo assim políticas públicas melhor fundamentadas e efetivas”.
“O Estado está defasado em relação à dinâmica social. Mesmo em São Paulo, a cidade mais desenvolvida do país, a divisão político-administrativa não corresponde à cidade real. E beneficia uns em detrimento dos outros”, conclui o Adorno.
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