Onda de calor e dress code: pode trabalhar de chinelo?
O dress code corporativo está mais informal, isso é fato. A questão agora é entender até onde vai a flexibilização da vestimenta no escritório em meio às altas temperaturas
Redação Exame
Publicado em 16 de novembro de 2023 às 12h02.
A onda de calor que atinge a maior parte do país desde a semana passada tem levantado discussões em torno do dress code no ambiente de trabalho. Havia um tempo em que era muito fácil entender as regras de vestimenta do mundo corporativo. Para as mulheres, terninho e sapato de bico fino baixo. Para os homens, costume completo. Nos altos escalões, quem queria impressionar apelava para grifes mais caras. Para elas, tailleur Yves Saint Laurent e escarpim Chanel. Para eles, terno Brioni, gravata Hermès e loafer Ferragamo.
Mas acontece que aquele tempo, para muita gente, estava conjugado no pretérito imperfeito. No presente do indicativo - e diante de altas temperaturas -, esses códigos já não são imperativos. Novos valores vêm sendo ditados pela geração dos jovens empreendedores do Vale do Silício. O símbolo de status, hoje, não passa mais necessariamente por um belo nó Windsor. Quase tudo está em xeque e é passível de questionamento. Na base de tudo, ainda parecendo resistir, estão os pés. Melhor dizendo, os dedos de fora.
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Chinelos podem ser considerados a última fronteira do dress code nas empresas, principalmente entre os homens. Camisetas, calças de moletom e até bermudas já são toleradas, dependendo do segmento. Sandálias, dificilmente.
A Havaianas, que é sinônimo de categoria, já realizou campanhas para convencer as companhias a liberar o uso do chinelo. O exemplo vem de dentro. A Alpargatas, claro, autoriza o uso do chinelo para os cerca de 500 funcionários em sua sede no bairro do Morumbi, em São Paulo. À medida que as temperaturas sobem, inclusive, a procura pela marca cresce expressivamente. O verão é o principal momento de vendas devido à sazonalidade.
Assim como a Havaianas, a SAP também permite o uso de chinelos no escritório. Na empresa de tecnologia, os funcionários podem se vestir da forma que quiserem. A flexibilização acompanha uma mudança importante dentro da companhia, que passou a atender clientes menores ou da nova economia, como Nubank e iFood. A fabricante de celulose Klabin e a empresa de educação Kroton também aderiram à campanha iniciada pela Havaianas, assim como a startup Gupy, de recrutamento e seleção com uso de inteligência artificial.
Não é uma missão simples, como sugere um passeio pela Brigadeiro Faria Lima, epicentro da cultura corporativa de São Paulo. Pela avenida, circulam muitos barbudos de camiseta e tênis, egressos das mais de 20 startups e dos coworkers instalados nas proximidades. Mas boa parte da frequência ainda é de executivos de camisa azul, calça cinza de alfaiataria e sapatos fechados tipo oxford ou derby.
A liberação do dress code varia de acordo com o segmento. Mas mesmo na área financeira, uma das mais tradicionais, a discussão está na ordem do dia. Bradesco e Itaú já aboliram o uso da gravata. Na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, o traje casual permite até shorts — os vetos são apenas para camiseta regata e de time de futebol.
Há alguns anos, a direção do Goldman Sachs enviou uma diretriz a todos os seus escritórios com a seguinte mensagem: “Dado que os locais de trabalho estão indo para um caminho de ambientes mais casuais, este é o momento certo de mudarmos para um código de vestimenta mais flexível”. Fez, porém, uma ressalva: “Queremos que os clientes se sintam confortáveis e confiantes em nossa equipe. Vista-se de maneira consistente com suas expectativas”.
Nos meses de verão, o JP Morgan baixa uma norma parecida, mas encontra resistência dos próprios funcionários. “Aqui na City todos se vestem de maneira muito alinhada, gravata ou gravata-borboleta, lenço no bolso. Parece um editorial de moda”, diz uma advogada que trabalha no escritório do banco em Londres. “No calor as pessoas dispensam a gravata, mas vão de camisa. Camisa polo, só na sexta-feira.”
Inspiração na ficção
No mundo da ficção, grandes investidores usam até camiseta de banda de heavy metal e tênis Puma de camurça. Estamos falando de Bobby Axelrod, protagonista de Billions. Eric Daman, diretor de figurino da série, visitou escritórios de fundos de hedge para montar o personagem. “Vi sócios circulando de jeans e camiseta. O clima é casual, poucos usam terno”, disse Daman ao The Wall Street Journal.
O contraponto de Bobby é o procurador Charles Rhoades Jr., sempre em ternos bem cortados. Apesar da diferença no visual, os trajes dos dois adversários podem custar cifras semelhantes. Um dos agasalhos usados por Bobby era, na verdade, um cashmere da Loro Piana de 2 300 dólares, como revelou o figurinista. É um sinal de status, mas para entendidos.
Billions pode se tornar o espelho de uma geração movida a propósito e quebra com a forma como o mundo corporativo sempre foi apresentado nas telas. A série Mad Men retratou o rigor com que os publicitários se exibiam nos anos 50. Gordon Gekko, impecavelmente vestido em Wall Street, representava a essência da cultura materialista dos yuppies da década de 80. O filme A Grande Aposta mostrou os responsáveis pela crise financeira de 2008. E como eles se vestiam? De terno e gravata, claro.
Os trajes refletem os valores de cada época. Isso vale para homens e para mulheres. Se na primeira metade do século passado Coco Chanel desenhou peças para ser usadas sem espartilho e com liberdade, Yves Saint Laurent proporcionou poder ao criar o smoking feminino nos anos 60. No atual questionamento do dress code corporativo, sobrou até para o salto alto, símbolo maior de feminilidade.
A atriz Yumi Ishikawa lançou, em 2019, uma campanha no Japão contra o uso do salto. Muitas empresas japonesas, como a funerária em que ela trabalhava, preveem a obrigatoriedade desse tipo de sapato para as mulheres. Yumi publicou um post com fotos dos pés machucados e reclamando da dor causada por calçados pouco confortáveis. Em um dos inúmeros compartilhamentos, alguém inventou a hashtag #KuToo, inspirada no movimento #MeToo (em japonês, kutsu é “sapato” e kutsuu é “dor”). Yumi então recolheu 30 000 assinaturas contra a exigência do salto e enviou uma petição ao Ministério do Trabalho pelo fim da norma. Por enquanto, o conservadorismo falou mais alto: inicialmente o ministro japonês se manifestou contrário à ideia. Imagine se elas estivessem pedindo para usar chinelos.
O que diz a legislação
O empregador tem o poder de determinar o modo como o trabalho deve ser executado por seus empregados, podendo impor regras a serem seguidas dentro da empresa. Assim, pode exigir de seus funcionários que se apresentem de determinada forma definida por ela, como por exemplo respeitando um dress code, ou exigir o uso de uniformes, que servem tanto para passar certo tipo de imagem a terceiros como para seguir um padrão de higiene ou segurança.
A espécie de vestimenta exigida pela empresa, porém, em algumas situações pode gerar desconforto aos trabalhadores por ser inadequada a condições climáticas de maior frio ou calor.
A legislação trabalhista estabelece limites de exposição ao frio e ao calor , conforme a atividade, o tempo de exposição e o tipo de vestimenta utilizada pelo trabalhador.
- Por exemplo, trabalhadores que exercem suas atividades sentados e com esforços leves com as mãos podem estar expostos a até aproximadamente 32ºC no ambiente de trabalho;
- Outras atividades possuem limites inferiores;
- Quem executa serviço em pé com esforços pesados com os dois braços não deve trabalhar em um ambiente cuja temperatura ultrapasse cerca de 28ºC;
- Além disso, a depender da vestimenta exigida esse limite máximo pode ser reduzido.
Em situações em que o limite de calor é ultrapassado a empresa deve tomar medidas para mitigar o desconforto térmico, como adaptação dos locais e postos de trabalho, utilização de barreiras para o calor radiante e adequação do sistema de ventilação e da temperatura e umidade relativa do ar.
Também, a empresa está obrigada a fornecer vestimentas de trabalho adaptadas ao grau de exposição e à natureza da atividade.