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OPINIÃO: Na lama da tragédia, qual política devemos construir?

Eduardo Vieira, sócio do SoftBank na América Latina, analisa a resposta ao desastre climático do Rio Grande do Sul sobre a ótica da política pública. Para ele, infelizmente, falta quem garanta o mínimo de previsibilidade e de continuidade das políticas públicas essenciais

Enchente no centro de Porto Alegre: "Mesmo diante de uma realidade tão cruel, até quando vamos achar que o que estamos vivendo é uma ficção?", pergunta Eduardo Vieira, do SoftBank Latin America (Anselmo Cunha/AFP)
Da Redação

Redação Exame

Publicado em 17 de maio de 2024 às 16h06.

Última atualização em 20 de maio de 2024 às 16h06.

negócios em luta

Eduardo Vieira

No último dia 21 de março, uma parte de Porto Alegre estava fervendo. Pelo menos um terço da Faria Lima e outras 20 mil pessoas de todos os cantos estavam reunidas à beira do Guaíba para participar do South Summit, um dos principais eventos de inovação do Brasil. Mas os participantes não foram surpreendidos somente pelos ótimos painéis, pelo networking de alto nível ou pela organização digna dos melhores festivais do mundo.

Quem apareceu de surpresa foi o calor. Aquele dia foi o mais quente do ano na cidade, com os termômetros marcando 37,1ºC e a sensação térmica chegando a 41ºC, segundo dados oficiais do Inmet. Não havia um ser humano que não pingasse de suor durante o evento, a ponto de todos evitarem os costumeiros abraços e cumprimentos com beijinhos.

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À noite, o tempo virou. Uma tempestade forte atingiu a cidade e a temperatura despencou. Mais de um terço de Porto Alegre ficou sem energia elétrica da madrugada até o fim da manhã do dia seguinte. A cidade amanheceu caótica. Muitas ativações foram canceladas e o South Summit atrasou seu início em mais de uma hora, por conta dos estragos causados por um vendaval.

Não é preciso relembrar os eventos da semana passada na mesma Porto Alegre para constatar que estamos vivendo, na realidade, os piores cenários dos filmes-catástrofe de Hollywood. Há quem compare os acontecimentos recentes com os estragos do furacão Katrina . Parecem ser piores, equivalentes a “2012”, “O Dia Depois de Amanhã” e “Tempestade: Planeta em Fúria”.

As tragédias reais não são poucas. A Serra Fluminense sofre há anos com as chuvas no começo do ano, mesma situação do litoral norte de São Paulo ( ou você já esqueceu o que aconteceu no Carnaval do ano passado? ). No último verão, uma parte considerável da cidade de São Paulo ficou sem eletricidade durante dias, pois a concessionária de energia simplesmente não deu conta do pico de aparelhos de ar-condicionado ligados simultaneamente.

A própria tragédia do Rio Grande do Sul está longe de terminar. Mais regiões seguem inundadas e o nível da água não voltou ao normal. Quase 70% da população está sem água. O comunicado informando o fechamento do Salgado Filho pelo menos até 30 de maio (há quem diga que não reabrirá antes de setembro) não tem precedentes : não há notícia de um aeroporto fechado numa cidade do tamanho (e da riqueza) da capital gaúcha por tanto tempo.

Mesmo assim, parece que ainda insistimos na fantasia. A imagem que mais circulou na Internet nos últimos dias foi a de uma montagem, feita com Inteligência Artificial, mostrando como seria se a situação de Porto Alegre acontecesse na Marginal Pinheiros, na altura da Ponte Estaiada.

Mesmo diante de uma realidade tão cruel, até quando vamos achar que o que estamos vivendo é uma ficção?

Agora, imagine por um instante que o meme fosse real – e a tragédia acontecesse em São Paulo. A cidade tem um plano de contingência pronto? Alguma estratégia de evacuação? Um cenário previsto caso Congonhas feche por tempo indeterminado?

No Rio? Em Belo Horizonte?

“Ah, vira essa boca para lá”, será a reação de muitos. E continuaremos culpando a chuva pelo que está acontecendo.

Conversa séria sobre o assunto

Se as mudanças climáticas são uma realidade incontestável, a incompetência das autoridades públicas também é. Li recentemente um comentário na rede social de um grande empresário dizendo ser “injusto” culpar os governos federal, estadual ou municipal diante de tanta chuva, algo que “não tem solução”.

Será? É razoável pensar que uma cidade rica e sofisticada como Porto Alegre, em pleno ano de 2024, tenha como maior proteção a enchentes um muro de arrimo cuja obra terminou em 1974 – há 50 anos?

Me perdoem. Esqueço que pensar em políticas de urbanização e tecnologia habitacionais condizentes com o Século XXI não é algo que dê muitos votos, não é mesmo? Afinal, não são as autoridades públicas que deveriam encorajar a redução de CO2. Nem reduzir o desmatamento, investir em florestas ou acelerar a transição para as energias limpas, correto?

Quando teremos uma conversa minimamente séria sobre o assunto?

Há alguém pensando, por exemplo, em quais tecnologias podem ser usadas imediatamente para minimizar os estragos no Rio Grande do Sul? Ou em quais são as soluções que precisam ser implementadas para que isso não aconteça novamente?

Ou ainda como evitar que estragos maiores aconteçam quando a próxima tragédia eclodir em outro lugar? Há alguma alma em algum governo brasileiro concretizando um planejamento para nos adaptarmos às mudanças climáticas?

Não adianta mais rezar para a chuva não cair. Ou para que ela seja menos intensa da próxima vez. Porque sabemos que ela vai cair novamente, em breve e mais forte, em cidades que serão destruídas e pagarão um preço altíssimo – em vidas, dor e dinheiro.

E nossa classe política está discutindo o quê? Tomando quais providências reais, além de esperar que a próxima tragédia aconteça para vestir o colete salva-vidas e dar uma voltinha de helicóptero?

“Ah, mas agora a situação é de emergência e estão todos de mangas arregaçadas para socorrer as vítimas”, será a resposta de muitos. E continuaremos culpando a chuva pelo que está acontecendo.

Arthur Vandenberg, o famoso político americano que aprovou a criação da OTAN e do Plano Marshall no Senado americano, tem uma frase emblemática: “Politics stops at the water’s edge”. Numa tradução livre, “a política deve parar à beira d’água”.

Uma metáfora que significa que um país pode ter os debates internos mais amargos possíveis – direita x esquerda, Republicanos x Democratas, Trump x Biden –, mas quando se trata do interesse comum da Nação, deve haver um consenso acima das questões políticas que garanta o mínimo de previsibilidade e de continuidade das políticas públicas essenciais.

No Brasil, infelizmente as políticas públicas essenciais não existem. E a política não para à beira d’agua. Nem com os corpos embaixo da lama.

Negócios em Luta

A série de reportagensNegócios em Lutaé uma iniciativa da EXAME para dar visibilidade ao empreendedorismo do Rio Grande do Sul num dos momentos mais desafiadores na história do estado. Cerca de 700 mil micro e pequenas empresas gaúchas foram impactadas pelas enchentes que assolam o estado desde o fim de abril.

São negócios de todos os setores que, de um dia para o outro, viram a água das chuvas inundar projetos de uma vida inteira. As cheias atingiram 80% da atividade econômica do estado, de acordo com estimativa da Fiergs, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul.

Os textos doNegócios em Lutamostram como os negócios gaúchos foram impactados pela enchente histórica e, mais do que isso, de que forma eles serão uma força vital na reconstrução do Rio Grande do Sul daqui para frente.

Tem uma história? Mande paranegociosemluta@exame.com.

Eduardo Vieira é sócio do SoftBank Latin America Funds

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