Os israelenses comparam a invasão e a morte de milhares de cidadãos, com o 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, inclusive pelo número de vítimas e a surpresa do ataque (AFP/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 24 de outubro de 2023 às 06h44.
Última atualização em 24 de outubro de 2023 às 06h45.
O repentino e inesperado ataque terrorista do Hamas contra Israel foi um evento histórico singular e um golpe esmagador em pressupostos que definiram até então o conflito Israel-Palestina.
Os israelenses comparam a invasão e a morte de milhares de cidadãos, com o 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, inclusive pelo número de vítimas e a surpresa do ataque. Este último aspecto também os remete à Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando as forças do país não estavam preparadas para o ataque árabe liderado pelo Egito e pela Síria, que igualmente implodiu certezas da época. Veja então quatro desses paradigmas que viraram ruínas desde o 7 de Outubro:
Por muitos anos, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, executou estratégia destinada a dividir os palestinos na Cisjordânia e em Gaza. Ele trabalhou para enfraquecer o poder da Autoridade Nacional Palestina, liderada pelo presidente Mahmoud Abbas, ao permitir que o Hamas mantivesse o controle sobre Gaza.
A teoria era a de que o Hamas, apoiado financeiramente pelo Catar, se concentraria mais em governar o enclave e poderia se tornar paulatinamente mais moderado, incapaz e menos interessado em atingir Israel com tanta força, para não gerar uma resposta militar que minaria a sua posição de liderança. A ideia era permitir que os habitantes de Gaza "vivessem melhor "e, assim, incentivar o Hamas a manter uma "calma relativa".
Na prática, isso significa que Israel permitiu que o Catar financiasse o governo do Hamas, ao mesmo tempo em que fornecia eletricidade gratuita e água, alimentos e medicamentos suficientes para a sobrevivência dos palestinos. Também permitiu que um pequeno número de habitantes de Gaza trabalhasse em Israel, mas, com o Egito, que fechou a fronteira sul, manteve a maior parte da população da Faixa de Gaza trancada no que muitos chamaram de "prisão a céu aberto”.
— Toda esta estratégia tem um objetivo — disse Noa Shusterman Dvir, analista da MIND Israel, empresa de consultoria sem fins lucrativos para instituições de segurança nacional israelenses. — O enfraquecimento da Autoridade Palestina e o fortalecimento do Hamas foram concebidos para dificultar os esforços de paz e impedir o estabelecimento de um Estado palestino.
Agora, com o ataque terrorista do Hamas, disse Shusterman Dvir, este conceito de gestão de conflito foi quebrado.
Israel possui o que é amplamente considerada a melhor e mais sofisticada força militar no Oriente Médio, e conta com o compromisso dos Estados Unidos de mantê-la mais avançada tecnologicamente que qualquer de seus adversários. Com a maior preocupação em uma potencial guerra com o Irã, os israelenses estavam convencidos de que estavam seguros com a inteligência sobre o Hamas na pequena Gaza e, com ajuda americana, também mantinham controle sobre as movimentações do Irã e do Hezbollah.
Mas tal como os Estados Unidos no 11 de setembro, um adversário com muito menos recursos realizou um ataque jamais imaginado e conseguiu assim a vantagem da grande surpresa estratégica.
Embora o aparato militar do Hamas seja de tecnologia relativamente baixa, o grupo utilizou drones e sua própria inteligência para atravessar a fronteira supostamente intransponível de Israel, repleta de câmeras sofisticadas, sensores e armas automáticas. O excesso de confiança, a complacência e a excessiva dependência de Israel à tecnologia, bem como o fato de 7 de outubro ser um feriado judaico, foram fundamentais para o sucesso da invasão.
E a capacidade do Hamas de manter os seus planos em segredo, apesar das várias centenas de combatentes que devem ter sido informados, foi um duro golpe para o orgulho israelense sobre sua inteligência em Gaza.
— Após o colapso surpreendente dos exércitos árabes em 1967, Israel desenvolveu uma concepção de que seus vizinhos não eram capazes de enfrentá-los, sem imaginar que poderiam melhorar um dia — disse Gershom Gorenberg, um historiador israelense. — Portanto, Israel foi surpreendido pelo ataque de 1973 [tal como foi surpreendido em 7 de outubro pelo Hamas].
— Havia a preconcepção de que poderíamos isolar Gaza, de que as medidas que tomamos impediriam suficientemente a entrada de armas — disse ele. — Mas o problema em aplicar uma solução técnica para um grande problema militar é que o outro lado se adapta.
Quando o Hamas disparava foguetes, Israel aprendeu a abater a maioria deles. Quando o Hamas se concentrou na construção de túneis, Israel desenvolveu meios para os descobrir suas localizações e destruí-los, e acreditou que o problema estava suficientemente resolvido.
— Mas não pensamos que o Hamas atacaria as câmeras ou usaria parapente e asa-delta — disse Gorenberg.
Com a credibilidade militar israelense subitamente questionada, aumentaram as preocupações sobre o tamanho da ajuda do Irã ao Hezbollah, no sul do Líbano.
Netanyahu foi elogiado por sua aproximação do mundo árabe, que partilha as profundas preocupações de Israel sobre o Irã – incluindo seu programa nuclear, o patrocínio de grupos terroristas como o Hamas e o Hezbollah, e as ambições de ser força regional hegemônica.
Com o apoio e mediação dos Estados Unidos, Netanyahu assinou os Acordos de Abraão, em 2020, com o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos, normalizando as relações. Marrocos e Sudão também assinaram termos semelhantes posteriormente.
De forma mais ambiciosa, Israel e os Estados Unidos têm negociado a normalização das relações israelenses com a Arábia Saudita, país árabe chave, em troca de um tratado de defesa mútua com Washington e assistência em tecnologia nuclear civil.
Mas o que os palestinos receberiam em troca nunca ficou claro. Em Israel, presumia-se que estes Estados árabes reconheceriam agora Israel como uma realidade permanente na região. E, claro, uma fonte de negócios, tecnologia e comércio, com a situação dos palestinos deixando de ser um obstáculo.
As autoridades sauditas expressaram frustração pelo fato de Israel não parecer disposto a oferecer mais concessões, especialmente à medida que aumentavam as tensões na Cisjordânia ocupada devido ao aumento dos assentamentos israelenses e ao tratamento dispensado aos palestinos. Mas o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, afirmou em setembro: “Todos os dias nos aproximamos”.
Não mais. Com o Irã afirmando agora que Teerã, com os seus parceiros do Hamas, Hezbollah e Jihad Islâmica, criaram um “eixo de resistência”, e que é o "verdadeiro escolhido" dos palestinos como aliado central, as conversas saudi-israelenses foram suspensas, e a Arábia Saudita está novamente conversando com Teerã.
Embora os países árabes sunitas não tenham qualquer amor pelo Hamas, pelo radicalismo islâmico ou pelo Irã, a reação popular local às mortes de palestinos em Gaza e na Cisjordânia suspendeu qualquer normalização com Israel, pelo menos durante algum tempo. Sempre houve tensão entre o apoio público à causa palestina, por vezes utilizado pelos líderes árabes para desviar críticas internas, e o julgamento mais frio de que os militantes islâmicos palestinos apoiados pelo Irã, como o Hamas, eram ameaças aos seus próprios governos, e que relações incrementadas com Israel eram mais importantes.
O Hamas queria trazer a questão palestina de volta à mesa, e o fez com vingança, provocando o tipo de enormes manifestações pró-palestinos em cidades árabes que não se viam há pelo menos uma década.
— A guerra trouxe o conflito Israel-Palestina de volta ao primeiro plano — disse Nir Boms, pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv que estuda cooperação regional. — A última coisa que os países do Golfo querem é que o Hamas vença. No entanto, observe as reações. Eles fazem o que fazem porque são influenciados pela opinião pública.
Há muitos anos que os Estados Unidos têm defendido, da boca para fora, o seu compromisso com uma solução de dois Estados e uma condenação do crescimento dos assentamentos israelenses na Cisjordânia ocupada. Ajudou a mediar os Acordos de Abraão no governo Donald Trump e concentrou-se na Arábia Saudita e no Golfo, mas os palestinos foram considerados "uma questão secundária".
Muito mais importantes para Washington têm sido a China e o Indo-Pacífico e, há dois anos, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a necessidade de mobilizar a Otan contra Moscou.
Mas o presidente americano, Joe Biden, voltou agora à região com apoio total a Israel e anunciou seu esforço para manter a boa-fé dos países árabes ameaçados pelo Irã e aliados. E, no rescaldo da guerra, sempre que ela ocorrer, os EUA são vistos como a única potência capaz de proporcionar um novo paradigma para a paz.
— Uma dessas narrativas destruídas é que os EUA podem voltar a sua atenção para questões reais em outros lugares e abandonar o Oriente Médio — disse Gorenberg. — Sinto muito, EUA, mas o Oriente Médio ainda não se cansou de você. Os fatos geopolíticos não podem ser ignorados — disse ele, observando que Irã, Egito e Rússia têm interesses no Mediterrâneo há séculos.
Com o apoio a Israel e a dissuasão ao Irã, “Biden tem agora a legitimidade para apresentar um plano para o futuro”, argumentou o veterano analista e jornalista isralense Akiva Eldar. “Netanyahu precisa que os EUA liderem".
Em ambicioso discurso após seu regresso a Washington, Biden afirmou que “a liderança americana é o que mantém o mundo unido”. E acrescentou: “Colocar tudo isso em risco se virarmos as costas à Ucrânia, se nos afastarmos de Israel – simplesmente não vale a pena”.
Só Washington, que tem agora prestígio moral sem precedentes em Israel, é capaz de juntar as peças desta guerra, disse Bernard Avishai, americano-israelense que lecionou na Universidade Dartmouth e na Universidade Hebraica.
– Só os Estados Unidos podem proporcionar algum grau de esperança – reafirmou ele, argumentando que um novo paradigma será estabelecido, no qual a autodeterminação palestina será finalmente abordada.
As declarações americanas sobre uma solução de dois Estados e os assentamentos “foram vistas como banalidades” nas útimas décadas, acrescentou:
– Mas não é tarde demais para fazer algo concreto agora — disse