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Como a China se recuperou do coronavírus

Com poucas exceções, o resto do mundo continua prejudicado pela pandemia. Mas a economia chinesa cresceu 2,3% no ano passado, apesar de ter perdido muitas semanas para o lockdown

Fábrica em Changmingzhen: primeiro epicentro do coronavírus, China conseguiu controlar o contágio da covid-19 (Keith Bradsher/The New York Times)

Fábrica em Changmingzhen: primeiro epicentro do coronavírus, China conseguiu controlar o contágio da covid-19 (Keith Bradsher/The New York Times)

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Carolina Riveira

Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 06h01.

Última atualização em 3 de fevereiro de 2021 às 01h41.

O odor salgado e pungente se espalha pelas ruas recém-pavimentadas nos arredores de uma nova fábrica.

A fábrica pertence a uma empresa chamada Laoganma, que produz um molho picante de soja famoso em toda a China por dar água na boca. Num momento de pandemia, em que os empregos da classe trabalhadora do mundo todo estão em risco, os odores da fábrica são um sinal de oportunidade.

Desde que abriu as portas em março, quando a China ainda era dominada pela Covid-19, a fábrica tem dificuldades para encontrar operadores de máquina e técnicos de controle de qualidade. Agora, os trabalhadores estão invadindo Changmingzhen, cidade agrícola que já foi tranquila, cercada de montanhas verdejantes e campos de arroz, de onde as pessoas costumavam fugir em busca de trabalho em outros lugares.

Changmingzhen é prova do renascimento da China depois do coronavírus, ressurgência alimentada pelas mãos calejadas dos trabalhadores das fábricas e da construção civil. Com poucas exceções, o resto do mundo continua prejudicado pela pandemia. Mas a economia chinesa cresceu 2,3% no ano passado, apesar de ter perdido muitas semanas para o lockdown.

Em uma noite recente, os trabalhadores cheios de dinheiro saíram da fábrica ao fim do turno e encheram as bancas do mercado próximo em busca de macarrão artesanal, banana e tangerina. A empresa familiar paga aos trabalhadores da linha de produção até US$ 1.200 ao mês. "Nada mau para um trabalhador da nossa idade", disse Wang Mingyan, funcionária que estava terminando o turno de trabalho.

A trabalhadora de 50 anos contou que vive em um apartamento funcional e tem acesso a refeições gratuitas e outros benefícios, já que a Laoganma concorre com outras empresas pelos funcionários. Ela nem sempre gosta do cardápio, mas isso é só um detalhe. "Quando você está longe de casa, o importante é encher a barriga", comentou Wang, que se mudou de sua cidade natal, a mais de duas horas de distância.

(Keith Bradsher/The New York Times)

A China congelou uma economia de US$ 15 trilhões de dólares em fevereiro do ano passado. O país usou a força bruta para isolar cidades e províncias e forçar as pessoas a fazer quarentena.

Pequim contou com as mesmas ferramentas para retomar a economia. O governo obrigou as fábricas a reabrir as portas e os bancos estatais a abrir linhas de crédito.

Agora, a economia está caminhando para a frente. Subsídios do governo estão alimentando a construção de novas linhas ferroviárias e fábricas. Uma empresa estatal que deseja concorrer com a Boeing e a Airbus divulgou que vai investir US$ 3 bilhões em 22 projetos de construção de grande escala.

A participação do governo faz com que o retorno da China seja especialmente centrado na classe trabalhadora. As medidas do Estado são mais eficazes quando se trata de reabrir grandes fábricas ou grandes projetos de construção. O país se concentra há muito tempo em manter a classe trabalhadora feliz, para evitar os conflitos políticos que têm afetado os EUA e a Europa.

Pequim tem mais dificuldade para resolver outros problemas. Os clientes ainda estão longe das lojas e podem se afastar ainda mais, uma vez que o vírus tem ressurgido em diversas cidades nos últimos tempos. A economia nacional ainda depende menos da inovação e dos serviços do que da fabricação de bens. Legiões de pessoas formadas no ensino superior ainda têm dificuldade para encontrar trabalho.

Cerca de 80 quilômetros acima de Changmingzhen, em Guiyang, a capital da província, a Laoganma ofereceu vagas em uma feira de empregos. Mas o trabalho continua a não atrair trabalhadores jovens.

"Dá para encontrar se você procurar, mas não foi isso que imaginei para mim; não é o tipo de trabalho que vai realizar meus sonhos e permitir que eu alcance meus objetivos", disse Grace Cai, que está se formando em Gestão de Turismo na Universidade de Guiyang.

(Keith Bradsher/The New York Times)

Cai fez estágio como garçonete no restaurante de um hotel no ano passado e não faz ideia de como encontrar um trabalho em tempo integral: "Existem muitos estudantes universitários agora e, por causa da epidemia, ficou mais difícil arranjar trabalho."

Os habitantes de Changmingzhen talvez não concordem. A cidade se localiza no sudoeste da China, na província de Guizhou, região que era tão pobre há cinco anos que se tornou alvo preferencial da campanha chinesa de combate à pobreza.

Mesmo antes do coronavírus, as autoridades se dedicavam a colocar as mãos ociosas para trabalhar. O governo acabou de construir uma via expressa ultramoderna e um trem-bala que conecta Guizhou a uma província vizinha. A Laoganma e outras empresas chegaram na sequência. Agora, a cidade está repleta de trabalhadores da construção civil construindo apartamentos para os novos funcionários.

"Todas as fábricas têm dificuldade para encontrar trabalhadores – todos os da cidade já foram recrutados. O trabalho no campo é muito pesado, e as pessoas da região não querem mais fazer isso", afirmou Zhou Xin, que era agricultor, mas abriu mão dos campos de arroz para que a Laoganma pudesse construir a fábrica.

Sua filha estudou em Xangai e ficou para trabalhar em uma empresa de design industrial. Agora, ele é dono de uma lanchonete em frente à fábrica e ainda pesca no rio que fica nos arredores. A única coisa que ele acha ruim é o barulho constante da fábrica. "Não importa se nos acostumamos com esse som. Investiram bilhões de renminbis aqui", comentou.

A fábrica deveria ter aberto as portas em fevereiro do ano passado, mas a pandemia ficou no caminho.

As ruas ficaram vazias. As pessoas fizeram barricadas nas entradas da cidade e começaram a checar a temperatura de todo mundo. Uma mistura de medo e camaradagem manteve todos dentro de casa por seis semanas.

Com os pais, Yang Xiaozhen é dona de um restaurante em Changmingzhen e cobra US$ 1,50 por um prato de bolinhos. Eles fecharam as portas, os pais ficaram em casa e Yang praticamente não saiu. "Tentamos manter a mente alerta, porque nós chineses somos muito unidos e muito conscientes", comentou.

Contudo, o vírus nunca chegou a Changmingzhen. No fim de fevereiro, com a economia ainda parada, as autoridades locais e os gerentes da Laoganma entraram em ação. (A empresa não respondeu aos pedidos de entrevista.)

Autoridades da região foram orientadas a encontrar trabalhadores desempregados para a fábrica. Os trabalhadores do município fizeram muitas horas extras para terminar de pavimentar as estradas. Até mesmo os jardineiros correram para plantar as mudas nas cercas da fábrica.

(Keith Bradsher/The New York Times)

Wen Wei foi uma das primeiras trabalhadoras. Ela carrega os temperos para a linha de produção e recebe US$ 620 por mês. Seu marido, que frita pimentas, ganha US$ 1.200 por mês.

O emprego para os dois na Laoganma os atraiu para Changmingzhen. A empresa ofereceu um apartamento funcional gratuito para o casal e os dois filhos, além de refeições gratuitas no refeitório da empresa. Eles pagam apenas a conta de luz e de água. "Não dá para encontrar um salário tão alto em outros lugares", disse Wei.

A alguns quarteirões da fábrica da Laoganma, Zhu Haihua dirige caminhões para uma siderúrgica que produz torres para turbinas eólicas. Seu salário de US$ 2.300 não inclui alimentação nem moradia.

Isso é apenas metade do que um caminhoneiro recebe nos EUA. O dinheiro, porém, rende muito mais em um vilarejo nas montanhas da China. A construção frenética dos últimos anos e a falta de regras de zoneamento resultaram em um grande número de prédios residenciais. Isso permite que Zhu alugue um apartamento de três quartos por apenas US$ 175 ao mês. "O aluguel aqui é muito barato", comentou.

Por enquanto, o som do maquinário e das construções abafa o piado dos pássaros nos bordos chineses que cercam a cidade. Mas os sinais de fraqueza não estão muito longe dali. O restaurante de Yang nunca se recuperou completamente.

Embora a fábrica da Laoganma continue a liberar o odor de tempero no ar, os projetos de construção financiados pelo governo podem acabar. As equipes de construção da linha do trem-bala estão saindo da cidade e voltam cada vez menos para gastar dinheiro.

Cai Liuzhong, dono de uma loja de produtos para escavação ao lado do restaurante de Yang, está se preparando para mudar a loja para a próxima cidade que estiver crescendo rapidamente: "Seguimos o trabalho."

Yang Faxue, cliente regular do restaurante, sente que sempre terá trabalho. O trabalhador da construção civil de 36 anos já está na estrada há quase duas décadas, tendo deixado sua cidade natal a duas horas de Changmingzhen para trabalhar inicialmente na cidade de Nanjing. A esposa e, com o tempo, os três filhos do casal ficaram em casa.

Yang ficou feliz por encontrar uma vaga de trabalho em Changmingzhen, mais perto de casa. E o trabalho praticamente não parou durante a pandemia. "As casas ainda precisam ser construídas. Trabalho é trabalho", concluiu.

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