Aborto nos EUA: o que é Roe vs. Wade, decisão na mira da Suprema Corte
O caso Roe vs. Wade embasa o direito ao aborto nos EUA desde 1973. Nova maioria conservadora da Suprema Corte tenta reverter a jurisprudência
Carolina Riveira
Publicado em 3 de maio de 2022 às 11h36.
Última atualização em 3 de maio de 2022 às 12h31.
Como outros países desenvolvidos, os Estados Unidos têm o direito ao aborto concedido há quase meio século. Embora as regras variem de estado a estado, as definições centrais são embasadas até hoje na decisão do caso Roevs. Wade pela Suprema Corte, em 1973.
Mas a decisão de 50 anos atrás tem sido cada vez mais questionada por conservadores nos Estados Unidos.
O tema voltou ao debate com força nesta terça-feira, 3, depois que o site Político vazou um rascunho que aponta que a maioria da Corte já se decidiu por derrubar a decisão de 1973.
A jurisprudência pode agora ser revertida diante da composição atual da Suprema Corte. O tribunal tem desde 2020 maioria conservadora de seis juízes, contra três liberais ou progressistas.
Nos últimos meses, uma série de estados tem passado leis mais restritivas sobre direito ao aborto. Os juízes terão de decidir, na prática, se leis locais restringindo o acesso ao aborto no início da gestação são constitucionais.
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Atualmente, pelo menos oito estados têm leis proibitivas que serão implementadas se a Suprema Corte autorizar, e outros, como Texas e Oklahoma, reduziram os prazos em que uma mulher pode procurar aborto legal.
Assim, a Suprema Corte terá de decidir se essas leis locais restringindo o acesso ao aborto no início da gestão são constitucionais, o que, na prática, manterá ou derrubará a jurisprudência do Roe vs. Wade.
O que foi a decisão Roe vs. Wade
Nos anos 1970, muitos estados americanos consideravam o aborto crime na legislação penal. O caso Roe vs. Wade começou em um desses estados, o Texas, após uma ação judicial movida por uma mãe solteira, Jane Roe (pseudônimo de Norma McCorvey).
Roe estava grávida pela terceira vez em 1969, e atacou a constitucionalidade da lei do Texas. A mulher terminou abrindo um recurso contra o promotor de Dallas, Henry Wade, e o caso chegou à Suprema Corte.
A Corte votaria três anos depois, em 1973. Os juízes na ocasião votaram por 7-2 a favor do caso de Jane Roe.
Com a decisão, caiu por terra a lei antiaborto no Texas e em uma série de outros estados que, à época, tratavam aborto como crime.
O entendimento dos juízes à época foi de que a Constituição dos Estados Unidos protege o direito de uma mulher de decidir, sem intervenção excessiva do Estado, sobre levar adiante uma gravidez recém-descoberta. A exceção seria para estágios avançados da gravidez, quando o direito da mulher à privacidade não seria absoluto, segundo entendimento da Corte.
Além do embate entre Roe e Wade, o tema se somou à demanda de um casal, John e Mary Doe (também pseudônimo), e do médico James Hallford, contra as leis antiaborto na Geórgia.
O casal abriu ação contra o procurador da Geórgia Arthur K. Bolton, dando origem ao caso Doe vs. Bolton, julgado no mesmo dia do Roe vs. Wade e que consolidou a jurisprudência sobre aborto nos EUA.
Pensamento liberal embasou decisão
Desde então, com base na jurisprudência de 1973 que classifica o direito ao aborto como constitucional, estados não podem passar leis que sejam contrárias a este entendimento.
O Roe vs. Wade veio em um momento específico, de ampliação do pensamento liberal, tanto econômico quanto político, e de oposição ao amplo controle governamental em meio à guerra fria.
Pensadores ícones do liberalismo, como John Rawls, defendiam que o Estado não interferisse na vida dos cidadãos, com exceção do que fosse necessário para prover direitos e oportunidades iguais na base.
A leitura de um Estado liberal se expandiu para os costumes, com a visão de que o direito ao respeito à vida privada, garantida pela Constituição dos EUA, se aplicava ao direito da mulher em decidir sobre ter ou não um filho — caso a decisão fosse tomada ainda no início da gravidez.
A Corte decretou, assim, que “o direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição (...), é suficientemente amplo para ser aplicado à decisão de uma mulher de interromper, ou não, sua gravidez".
"Uma lei como a do Texas, que faz do aborto um crime, salvo quando a vida da mãe está em perigo, sem levar em conta o estado da gravidez, ou outros interesses em jogo, viola a 14ª Emenda da Constituição."
Aborto em países desenvolvidos e no Brasil
O mesmo entendimento ocorreu em países europeus, que já viviam debates sobre o tema paralelamente ao Roe vs. Wade e começaram a legislar sobre direito ao aborto a partir dos anos 1970.
Antes disso, o aborto havia sido autorizado na União Soviética em 1920, revogado em 1936 e novamente autorizado nas repúblicas soviéticas a partir dos anos 1950.
Nos anos seguintes, o aborto seria autorizado em quase todos os países da Europa Ocidental e no Canadá:
- A Dinamarca concedeu o direito ao aborto em 1973;
- Suécia em 1974;
- França e Áustria em 1975;
- Itália em 1978;
- Noruega em 1979;
- Holanda em 1984;
- Canadá em 1988;
- Bélgica em 1990;
- Alemanha em 1992.
Países de maior influência católica, como Portugal, Espanha e Irlanda, demoraram mais a passar regras menos restritivas contra o aborto legal. Portugal só autorizaria o direito ao aborto em 2007, a Espanha, em 2010, e a Irlanda, em 2019.
Na América Latina, uma série de países têm mudado a legislação nos últimos anos. O primeiro país a descriminalizar o aborto foi Cuba (1965). Recentemente, o Uruguai descriminalizou o aborto em 2012, seguido anos depois por Argentina (2021), Colômbia (2022) e partes do México (2022).
No Brasil, realizar um aborto pode render às mulheres pena de um a até três anos de prisão, em um arcabouço que, no geral, data do Código Penal de 1940.
O procedimento só é permitido em três casos: estupro, gravidez que oferece risco à vida da mulher e, segundo decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, em casos de anencefalia, quando há malformação do cérebro do feto.
Maioria conservadora na Suprema Corte
A Suprema Corte era até 2020 quase dividida entre conservadores e politicamente liberais ou progressistas, o que tornava decisões mais imprevisíveis.
O cenário mudou durante o fim do governo Barack Obama, em 2016, e no mandato de Donald Trump, a partir de 2017.
No fim de seu mandato, Obama teve a indicação de um juiz negada pelo Congresso, que defendeu que as eleições estavam próximas e a indicação deveria ficar a cargo do próximo presidente.
Ao assumir, então, Donald Trump nomeou o conservador Neil M. Gorsuch logo no início de seu mandato, em 2017. A nomeação levando os conservadores a uma ligeira maioria de 5-4, mas ainda com alguns empates em decisões.
A maioria viraria de vez em 2020, em uma situação polêmica. A juíza Ruth Bader Ginsburg, conhecida como RBG e vista como um ícone liberal e dos direitos das mulheres, faleceu em setembro de 2020, aos 87 anos.
Então presidente, Trumpnomeou para a vaga a conservadora Amy Coney Barrett , que teve a indicação aprovada no Senado, de maioria republicana.
Mas a indicação é até hoje questionada, porque a morte de RBG ocorreu dois meses antes das eleições presidenciais daquele ano — período ainda mais curto do que o visto quando Obama foi proibido de nomear um substituto.
Com a chegada de Barrett em 2020, a Suprema Corte consolidou a maioria de 6-3 para juízes conservadores, chamada de "supermaioria". A nomeação de Ketanji Brown Jackson pelo atual presidente, Joe Biden, não muda a composição de 6 a 3. Jackson já afirmou que votará a favor da manutenção do Roevs. Wade.