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Como a inflação transformou os hábitos de consumo dos brasileiros

De compras do mês, estoques de alimentos ao consumo de marcas mais baratas, a relação histórica dos brasileiros com a inflação molda alguns dos seus hábitos de compra até hoje

Inflação: promoções de produtos perto do vencimento (os chamados “vencidinhos”) também têm ganhado mais espaço nos supermercados (Paulo Whitaker/Reuters)
Thaís Cancian

Copywriter

Publicado em 13 de agosto de 2022 às 08h03.

Última atualização em 24 de setembro de 2024 às 17h29.

Desde a independência, em 1822, o Brasil já passou por nove trocas de padrão monetário e sete moedas oficiais diferentes. Dos réis ao real, a principal responsável por tantas mudanças foi a inflação, cujos picos mais conhecidos marcaram as décadas de 1980 e 1990, período de hiperinflação e sucessivas trocas de planos monetários - no ano de 1989, a taxa chegou a ultrapassar 1.900%.

Foi apenas há 28 anos, com a criação do Plano Real - o único capaz de barrar os avanços da hiperinflação no país -, que as reformas monetárias se encerraram, e o real, desde então, tem vigorado como moeda nacional.

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No decorrer da história, a relação com a inflação transformou a forma como os brasileiros lidam com o dinheiro, seu poder de compra e hábitos de consumo, com parte deles perdurando até os dias de hoje. Quem nunca fez uma “ compra do mês ”? A origem desse hábito de consumo dos brasileiros remonta aos tempos de hiperinflação.

Considerando o atual cenário de inflação em alta, juros elevados, guerra na Ucrânia, pandemia e economia global beirando a recessão, como os brasileiros têm comprado? E como faziam compras nas décadas de 1980 e 1990? Entenda a seguir:

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Como os brasileiros faziam compras nos anos 1980 e 1990?

Ao final da década de 1980 e nos primeiros anos de 1990, o Brasil viveu um período sombrio de hiperinflação, resultado de uma série de fatores históricos, como crise mundial, desequilíbrio da balança comercial, dívidas externas e internas, endividamento público e mais - questões que culminaram no recorde de 2.400% de inflação ao ano no início da década de 1990. O cenário também foi fruto de uma sucessão de planos monetários que, na tentativa de resolver o problema, acabaram o agravando ainda mais.

Diante disso, de um dia para o outro, o dinheiro poderia se desvalorizar bruscamente, já que os preços de produtos mudavam de forma radical “da noite para o dia”. Nessa época, então, a dinâmica de estocar alimentos era bastante comum, e se tornou um hábito entre os consumidores fazer compras uma vez por mês. Assim que recebiam seus salários, muitas famílias corriam para os supermercados para encher o carrinho com tudo que seria necessário para os próximos 30 dias, com medo dos preços aumentarem demais nos dias seguintes.

“Era um período muito cruel para muitas famílias, porque a inflação altíssima penalizava o salário ao longo do mês. A variação era quase diária e corroía o poder de compra da renda das famílias. Esse cenário levou os consumidores a desenvolver certas estratégias, como estocar itens e fazer compras em maior quantidade e de forma conjunta com outras pessoas nos atacadistas para reduzir o custo unitário”, explica Julia Braga, economista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Não à toa, fazer compras durava um dia inteiro. Etiquetas remarcando preços eram empilhadas umas sobre as outras, atestando as oscilações diárias, e a disputa por produtos deixava os comércios com prateleiras vazias em pouquíssimo tempo. Nos supermercados e postos de combustíveis, filas gigantes eram formadas.

A venda racionada também era frequente entre os comerciantes: para dar conta de atender a todos, cada um só podia levar uma garrafa de leite, por exemplo. Quando o governo determinava congelamento de preços, diversos itens desapareciam das prateleiras de supermercados, numa tentativa de forçar o descongelamento.

“A inflação chegava a algo em torno de 2 a 3% ao dia, e a maioria dos supermercados não aceitavam cartão de crédito, só durante a madrugada”, conta Roberto Kanter, professor de MBAs na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e diretor da Canal Vertical.

Foi só com a implementação do Plano Real, em 1994, que o Brasil gradualmente passou a tomar conta da inflação galopante a partir de meados dos anos 90, equilibrando as contas públicas, desindexando a economia e abrindo o país economicamente. Em 1999, a inflação encerrou o ano em 9%.

Com a taxa sob controle, o consumidor passou a fazer mais compras de reposição. Os preços mais controlados substituíram os grandes carrinhos pelas cestinhas, com compras menores, mais frequentes, mais rápidas e bem selecionadas. Nos últimos 20 anos, a renda média do brasileiro também cresceu, o que proporcionou acesso a produtos até então nunca consumidos por muitas famílias.

Inflação e preços altos: como os brasileiros têm comprado hoje?

Nos últimos anos, porém, o crescimento da inflação tem se tornado mais uma vez bastante alarmante no país. No início de julho, o Brasil atingiu o quarto lugar entre os países do G20 com maior inflação . Nos pontos de venda, os preços de itens básicos, como alimentos e produtos de higiene e limpeza, seguem aumentando, enquanto o poder de compra e o orçamento da população se retraem cada vez mais.

Com o orçamento apertado, um em cada quatro habitantes no país não consegue pagar todas as contas no fim do mês , de acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com o Instituto FSB Pesquisa. Conforme o levantamento, 68% dos brasileiros não conseguem guardar dinheiro, enquanto apenas 29% poupam.

Ainda neste ano, as cestas básicas, que contêm produtos alimentícios e de limpeza, estão 78% mais caras em comparação a 2019 , de acordo com um levantamento realizado pela Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor). A inflação sobre os preços desses bens, nos últimos 12 meses, é a segunda maior da história.

Por conta do cenário difícil, segundo outro estudo recente da Proteste, mais de 90% dos brasileiros mudaram hábitos de consumo, reduzindo despesas, recorrendo a opções mais baratas ou simplesmente cortando os gastos relacionados à energia elétrica, água, mobilidade e consumo de alimentos. Com as demandas em queda, as redes de supermercados têm trabalhado com os menores estoques dos últimos dois anos .

Diante desse cenário, muitos brasileiros têm recorrido a formas alternativas de economizar nas compras. Alguns exemplos são a preferência por feiras, onde as mercadorias custam, em média, 22% menos do que em supermercados e hortifrutis ; comprar frutas e legumes da época, por terem mais oferta e, consequentemente, menor preço; e fazer cada parte dos alimentos render uma nova refeição, sem deixar desperdícios. Mesmo depois de tantos anos, também não é raro ver famílias fazendo compras do mês - ainda que não nas mesmas proporções do período de hiperinflação.

“O hábito de fazer compras mensais continuou mesmo quando a inflação já estava mais reduzida, mas, aos poucos, foi dando lugar às compras semanais. Foi só quando o atacarejo foi retomado com força que o hábito das compras mensais voltou entre os brasileiros”, explica Kanter.

A população também tem priorizado produtos de marcas mais acessíveis. De acordo com Kanter, “como um todo, a população do Brasil tem aderido menos às marcas. Os brasileiros têm priorizado produtos mais baratos e se importado menos com o renome e tradição das marcas que até então consumiam. Desde que mantenham o consumo daquele produto, a marca não tem tanto peso na decisão de compra”.

Outro hábito antigo que voltou à tona foi pechinchar. Segundo a pesquisa da CNI em parceria com o Instituto FSB Pesquisa, 68% dos entrevistados admitiram ter tentado negociar um preço menor antes de fazer alguma compra neste ano . Um total de 51% parcelou a compra no cartão de crédito, e 31% admitiram “comprar fiado”.

Promoções de produtos perto do vencimento (os chamados “ vencidinhos ”) também têm ganhado mais espaço nos supermercados, bem como itens que estão com as embalagens amassadas, mas sem comprometer a qualidade (conhecidos como “ feinhos ”).

“Para cada classe socioeconômica, a inflação tem um impacto diferente. Cada classe vai sentir as consequências da variação inflacionária de uma forma diferente. Então, existem muitas maneiras de consumir e muitos hábitos de consumo distintos no país”, finaliza o professor.

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