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As batalhas que nos esperam

Para enfrentar as múltiplas crises que nos interpelam, precisamos resgatar aquela competência humana que nos distingue como espécie: a capacidade de colaborarmos, de termos uma linguagem comum, acreditarmos que é possível reconhecer a verdade, partilharmos valores e pactuarmos relações de confiança

Daniela Grelin
Daniela Grelin

Diretora Executiva do Instituto Avon

Publicado em 18 de setembro de 2024 às 14h12.

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Não sei se é o ar quase irrespirável de São Paulo nesta primeira semana de setembro em que nos tornamos a cidade com a pior qualidade de ar do mundo, ou a tentativa de imaginar o efeito humano dos mais de 5 mil focos de incêndio ativos no Brasil, ou ainda o desencantamento com o processo eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, que expõe os contornos próprios e absurdos da lógica perversa da polarização política e destruição da confiança, o fato é que o conceito de policrise ganhou concretude.

O entrelaçamento entre as crises que compõem a policrise torna-a ainda mais complexa e ameaçadora, agrava seus efeitos, a sensação de incerteza e instabilidade generalizada. Isto nos traz à mente as múltiplas batalhas que precisamos enfrentar simultaneamente.

Nossa espécie sempre teve a seu favor um diferencial evolutivo característico: a linguagem. Por meio de uma linguagem comum somos capazes de nos comunicar, estabelecer mecanismos de colaboração, buscar, reconhecer e relatar a verdade dos fatos, criar soluções e desbravar a nossa sobrevivência com uma potência e criatividade que são unicamente humanas. A linguagem comum, este grande catalisador da inovação e da orquestração de nossas potências precisa de um espaço para circular entre consciências. Simbolizado pela Ágora, este espaço permite que vozes diferentes sejam ouvidas, que o espírito crítico e reflexivo seja exercitado, e as boas ideias contribuam para a busca de soluções comuns. Este espaço nos escapa, quando mais precisamos dele. Resgatá-lo pode muito bem ser uma das batalhas que temos que enfrentar.

Diferente da Grécia Antiga, em que Ágora era o espaço público central em que as pessoas se encontravam, dialogavam, refletiam, filosofavam, ensinavam, aprendiam, produziam cultura, consensos e soluções, os espaços de encontro contemporâneos são onipresentes, virtuais, exacerbam a polarização, corroem a confiança e inviabilizam a construção de uma realidade compartilhada. São também espaços de produção de muita coisa boa mas seguem uma lógica inquietante: são foros monetizados em que circulam muito discurso de ódio, misoginia, falsas narrativas que movimentam a economia da atenção, regida pelos algoritmos criados para produzir engajamento.

Conscientização

Mês passado foi lançada em Brasília, pelo Ministério da Mulher, a Mobilização Permanente pelo Feminicídio Zero. Movimento intersetorial, necessário e promissor: um chamado para convergir na busca de soluções para que em nosso país nenhuma mulher seja morta por ser mulher. Muitas ações criativas de conscientização já se desdobram desta mobilização e outras ações coordenadas podem ser criadas neste espaço de cooperação.

No entanto, acredito que para avançarmos de forma potente na direção de uma sociedade que respeita e protege a vida de suas mulheres precisamos enfrentar a batalha de identificar, responsabilizar e coibir os mecanismos bilionários de criação, distribuição e multiplicação de conteúdos misóginos. Isso implica em uma trajetória de conflito com a inércia das grandes plataformas de mídia social em implementar mecanismos de regulação e responsabilização de distribuição de conteúdo.

É necessário propor avanços legislativos. Estes, por sua vez, precisam de apoio popular e o consenso público que seria forjado nas mesmas plataformas que têm um interesse claro em evitar qualquer regulamentação. Neste conflito de interesses, qualquer tentativa de responsabilização por práticas danosas como a distribuição de discurso de ódio, a misoginia, a disseminação de notícias, etc., é confundida como um ataque à liberdade de expressão.

Por mais complexo que seja endereçar esta questão, desistir dela não é uma opção, exatamente porque restaurar espaços de diálogo democrático e a construção de entendimentos comuns com base em valores compartilhados são nossas melhores apostas no uso do potencial humano para superarmos a policrise.

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