No novo mundo dos uísques, a Austrália tenta se destacar
A Austrália é o quarto maior mercado de exportação de bourbon do mundo
Guilherme Dearo
Publicado em 17 de dezembro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 17 de dezembro de 2019 às 09h00.
O mundo do uísque está ficando mais parecido com o mundo do vinho?
Hoje, não só todos os estados dos EUA têm uma destilaria – alguém quer um single malt havaiano? –, mas vários países também, muito distantes do Kentucky e da Escócia: França, Alemanha, Índia, Japão e até mesmo Taiwan e Austrália têm robustas indústrias de destilação.
Isso significa, portanto, que podemos distinguir um scotch das Highlands de um single malt indiano, do mesmo modo que conseguimos diferenciar um borgonha de um pinot noir do Oregon? Será que podemos falar de uísque em âmbito regional, como fazemos com o vinho? Sim e não.
A maioria desses uísques mundiais, como são conhecidos, são clones dos escoceses, feitos com cevada maltada em um alambique. Só porque há uísque feito em Taiwan, isso não significa que há um estilo chamado "uísque taiwanês". E muitos destiladores aceitam isso: as pessoas em Kavalan, ao sul de Taipei, se orgulham de fazer um uísque praticamente indistinguível da bebida de Speyside em gosto e qualidade.
Mas, em outros lugares, estilos regionais estão de fato surgindo. Destiladores na França, por exemplo, se inspiraram em tradições locais associadas ao conhaque e à eaux de vie para produzir o que é sem dúvida um estilo distinto (com seus próprios subestilos) de uísque francês. Evoluções semelhantes estão sendo vistas na Alemanha e na Áustria.
Em nenhum lugar, porém, essa tentativa de desenvolver um estilo local é mais aparente que na Austrália. Lar de mais de 40 destilarias de uísque, a Austrália não é conhecida como uma nação produtora da bebida. A maioria de suas destilarias é pequena e quase toda a sua produção é consumida internamente; a Starward, em Melbourne, é hoje a única a exportar regularmente em volume significativo para os Estados Unidos.
A situação começa a mudar. E, com isso, os destiladores do país se perguntam: quem somos nós? Sua busca por uma resposta está entre as histórias mais interessantes do uísque no momento.
Embora os australianos produzam uísque desde meados do século XIX, a indústria moderna começou apenas no início da década de 1990, quando um agrimensor chamado Bill Lark, inspirado por single malts escoceses, fez lobby, com sucesso, contra uma lei que efetivamente proibia microdestilarias.
Após alguns anos, a Lark Distillery e algumas outras, principalmente na ilha da Tasmânia, estavam produzindo pequenas quantidades de uísque, quase exclusivamente para bebedores locais e turistas ocasionais.
Críticos e fãs adoraram esses uísques, em parte porque imitavam cuidadosamente seus primos escoceses. "Se você tirar o rótulo, diria que eles poderiam ter vindo de qualquer lugar", disse Robin Robinson, autor de "The Complete Whiskey Course", lançado em outubro pela Sterling Publishing.
Mas, com o tempo, surgiram certas características que diferenciam essas destilarias das tradições escocesas, como o uso de malte de cerveja e o envelhecimento em barris menores, que afeta o sabor do uísque.
"Eu gostaria de pensar que há algo em comum no uísque australiano. Estamos recebendo maltes ricos, diferentes dos usados no scotch típico", disse Lark.
Então, em 2014, um single malt da Sullivans Cove, destilaria no centro de Hobart, na Tasmânia, levou o prêmio máximo da World Whiskies Awards, competição constantemente dominada pelo scotch. O reconhecimento trouxe o uísque australiano para a consciência do consumidor global, desencadeando um renascimento na destilação de uísque do país – e uma maneira diferente de pensar o ofício.
Essa nova geração de destiladores rejeitou a ideia de fazer mais um single malt. "O que existia, bourbon e scotch, não nos atraía. Queríamos criar um uísque moderno e progressivo, que tivesse a ver com o lugar em que é feito", disse David Vitale, fundador da Starward.
Felizmente, as regras australianas de destilação, estabelecidas pelo governo, são significativamente mais relaxadas que as da Escócia ou as dos Estados Unidos. "Dá para fazer muita coisa com nossos regulamentos", disse Vitale. Contanto que seja destilado de grãos e passe dois anos envelhecendo em um barril, é uísque. Isso dá às destilarias australianas a liberdade de misturar e combinar outros estilos de muitos lugares além da Escócia.
A Austrália é o quarto maior mercado de exportação de bourbon do mundo e várias novas destilarias introduziram produtos influenciados pelo uísque americano, com grandes quantidades de milho, centeio e trigo. A Gospel Distillers, em Melbourne, lançou recentemente um uísque cem por cento rye, estilo raramente encontrado fora dos Estados Unidos.
Outras destilarias, acenando para a robusta indústria vinícola da Austrália, envelhecem seu uísque em barris que já foram de vinho. O Nova, feito pela Starward, é envelhecido exclusivamente em barris de vinho tinto, produzindo um uísque mais frutado e tânico, com menos notas de baunilha e caramelo que os mantidos em barris de bourbon, frequentemente usados para envelhecer o scotch.
E, enquanto muitos produtores de uísque ao redor do mundo importam sua cevada maltada da Escócia, as destilarias australianas geralmente recebem a sua de agricultores locais e casas de malte, o que, segundo elas, cria um perfil de sabor diferente. O mesmo acontece com o clima: enquanto a Tasmânia se assemelha à fria e consistente Escócia, as oscilações extremas de temperatura no continente, mais como as do Kentucky, ajudam a acelerar o processo de envelhecimento.
"Eles não estão tentando fazer scotch na Austrália, mas sim um uísque que tem a ver com o lugar", disse Joshua Wortman, executivo da Distill Ventures, o braço de capital de risco da gigante de bebidas Diageo, que recentemente investiu uma quantia não revelada na Starward.
Graças a esse investimento, a Starward se expandiu rapidamente nos EUA. Ela agora está disponível em 35 estados, muito mais do que qualquer outra marca australiana – por enquanto. De acordo com uma pesquisa recente da Associação Australiana de Destiladores, 24 empresas estão planejando exportar para os Estados Unidos nos próximos anos.
"Não há limite para o número de marcas que querem vir para os Estados Unidos", disse Raj Sabharwal, sócio fundador da Glass Revolution, que está em negociações para importar várias delas.
Pode ser muito cedo para falar de um estilo australiano distinto; a mesma atmosfera não regulamentada que promove a inovação também promove a diversidade, beirando a incoerência. Há um projeto em andamento para criar uma definição mais rigorosa de uísque da Tasmânia, mas, até que toda a indústria adote regulamentos igualmente rígidos, "você não vai ter um estilo regional", disse Sabharwal.
Não é difícil imaginar essa mudança em breve. Da mesma forma que as regiões vinícolas e os países produtores de vinho há muito tempo reconheceram a vantagem de marketing de um estilo distinto, os fabricantes de uísque têm um enorme incentivo para determinar um conjunto claro de definições e regras que os diferenciem de todos os outros.
E não é apenas a Austrália que tenta chamar a atenção global com algo distinto. Daqui a uma década, os bebedores americanos podem estar ignorando as garrafas de scotch para conferir o mais recente rye holandês ou o single malt alemão.
"Qual região será a primeira a ter sucesso? Essa é uma disputa acirrada", disse Robinson.