'Retratos Fantasmas': filme estreou no Festival de Cannes em 2023. (Kleber Mendonça/Divulgação)
Repórter de POP
Publicado em 29 de setembro de 2023 às 07h01.
Última atualização em 16 de dezembro de 2024 às 11h13.
Desde que "Central do Brasil" (1999), obra nacional assinada por Walter Salles, o Brasil não recebe uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional. São, ao todo, 24 anos sem sequer participar da lista de indicados, e 96 anos — o tempo de existência da premiação mais antiga e importante do cinema — sem levar uma estatueta para casa. Mas isso pode estar próximo de mudar, graças à mais recente obra do cineasta Kleber Mendonça Filho.
Autor de grandes produções nacionais, como "Aquarius" (2016) e"Bacurau" (2019) — este, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, em 2019 —, Mendonça caminha agora para uma vaga no Oscar 2024 com "Retratos Fantasmas" (2023), uma produção que mistura autobiografia com a história dos cinemas de rua de Recife. O filme foi o escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil na premiação e, caso seja bem avaliado pela Academia, tem chance de receber uma indicação na categoria de Melhor Filme Internacional.
"Retratos Fantasmas" é a 19ª produção de Kleber Mendonça, e teve sua estreia no Festival de Cannes deste ano. "Abrir em Cannes foi algo que me deixou muito feliz, porque é um filme muito sobre cinema mesmo, sobre arquivo. Eu inicialmente achei que, se eles tivessem interesse, o filme iria para o Cannes Classics, que é uma sessão dedicada filme de arquivo, mas ele ganhou o Special Screanings, que é um espaço até bem maior. Foi uma surpresa", disse o diretor em entrevista à EXAME.
Se de fato for indicado à categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar, o longa-metragem, com menos de duas horas de duração, pode ser pioneiro na nova fase de reposicionamento da indústria audiovisual brasileira, que há anos almeja sua primeira estatueta. E pode fazer da conquista um feito histórico; posto que o filme traz um verdadeiro arquivo da história dos cinemas de rua de Recife.
"Retratos Fantasmas" foi dirigido, escrito e produzido por Kleber Mendonça. O cineasta também está no longa, em filmagens de infância e também em takes mais atuais, o que por si só poderia classificá-lo como uma autobiografia. Mas a produção vai além da história do diretor; o filme é dividido em três atos: um mais voltado à forma como o cinema permeou a vida de Kleber Mendonça, outro que evidencia a importância dos cinemas de rua para a história do Recife, e um terceiro relacionado à história da indústria brasileira do audiovisual como um todo, e como, ao longo dos anos, ela foi se transformando.
Pela diversidade de temas, de estrutura e até mesmo de filmagem, fica difícil rotular um gênero para "Retratos Fantasmas". Mas esse era mesmo um dos objetivos de Mendonça. "Eu adoro ser escorregadio no sentido de alguém ter uma dificuldade, sabe? Se questionar 'qual é a caixa onde eu coloco esse filme'. Eu nunca pensei nele como documentário, por exemplo, embora eu suspeitasse que talvez a caixinha mais próxima seria a desse gênero. Mas eu gosto muito de ter uma sequência de ficção, que acontece ao final do filme, essa parte de arquivo também. Em geral, eu tenho um certo prazer de ver o filme nesse cenário mais escorregadio", diz o cineasta.
Esse mesmo traço, tão exposto pelo diretor, pode ser um grande trunfo para o Oscar. O filme aborda uma extensa gama documental que revela não só a origem dos cinemas de rua de Recife, como sua contribuição para a história da capital de Pernambuco. E os especialistas bem sabem o quanto a Academia gosta de uma boa e velha metalinguagem. "Em Cannes, o filme foi bem recebido, e eu me senti em casa apresentando essa produção. É uma parte de mim, uma parte de Recife, uma parte de cinema, uma mistura de tudo isso, e o público, eu acho, pareceu gostar", completa ele.
Embora não seja possível encaixar "Retratos Fantasmas" em um único gênero, é um fato que o filme segue uma cronologia baseada em arquivos — tanto da cidade de Recife quanto da própria vida de Kleber Mendonça. É por isso que o final do filme é tão distinto: ele arremata o longa, construído por fatos lógicos e realistas, com uma sequência de ficção.
Os últimos takes mostram uma conversa inusitada com um motorista por aplicativo e uma sequência de filmagens de incontáveis farmácias ao longo de uma avenida, em um filme que mostra apenas três cinemas de rua em uma capital inteira."Eu sempre quis terminar esse filme com essa sequência. Porque a coisa das farmácias eu sempre achei muito poderoso", ressalta ele, mas sem ir além sobre o real significado da sequência.
"Só que veja só que coisa curiosa, sobre o diálogo, a gente se organizou para fazer a sequência e, no dia da filmagem, eu comecei a ficar nervoso, porque eu não tinha escrito o roteiro dessa parte", inciou ele. "Então, eu sentei para escrever rapidinho e, quando eu sentei para escrever, me ocorreu que o motorista poderia ter um superpoder. Quando eu falei para os outros membros da produção, eles tiveram outras ideias muito diferentes, e eu soube aí, eu reconheci que era mesmo uma boa ideia", completou.
Ele destaca, ainda, que o final é uma condensação do exato sentimento de estar imerso em uma sala de cinema.
"Quando eu estava filmando, eu me senti num lugar muito especial, que é o seguinte: sabe a experiência de você sair de uma sala daquelas antigas no centro da cidade, depois de passar duas horas em um filme de grande fantasia, com a música maravilhosa que só existe no cinema? E, quando o filme acaba, você vai abre a porta e, ainda ouvindo a música do filme, você já sente a claridade do final da tarde, e põe o pé na calçada de pedra portuguesa, como é no cinema São Luiz, em Recife", indagou ele. "E naquele momento você diz 'eu estou saindo desse cenário e agora estou no centro da cidade'. Eu senti isso quando estava filmando aquela sequência: estava entre o a realidade e o cinema, porque estava num carro com câmeras, equipamento e o Rubens (ator), em um diálogo que começa prosaico e depois toma uma forma mais fantasiosa. No fim, é isso: uma mistura entre as duas coisas", finaliza ele.
"Retratos Fantasmas" está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil, com sessões sobretudo nos cinemas de rua de Recife (São Luiz e os dois cinemas da Fundação Joaquim Nabuco) e São Paulo (Cine Marquise, Cinessala, Cine Bijou, e Espaço Itaú de Cinema).