Urna eletrônica (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
Mariana Martucci
Publicado em 20 de novembro de 2020 às 07h00.
Última atualização em 20 de novembro de 2020 às 08h10.
No clássico “Os Donos do Poder – A Formação do Patronato Brasileiro”, o grande jurista Raimundo Faoro descreveu os chamados estamentos que historicamente exercem o poder no Brasil e que resultaram na realidade que consolida condutas: o patrimonialismo; a troca de favores como fator de estabilidade de quem é eleito; a ideia generalizada de que o Estado trabalha para atender aos seus próprios interesses, afastando – se da condição de prestador de serviços; o apego aos meios, sem foco nos fins; a força do corporativismo que resiste às mudanças que afetem seus “direitos”. Enfim, demonstrações de que os interesses da sociedade não são compreendidos pelo Estado que sustenta, traduzindo em distanciamento, como se não houvesse uma relação entre eleitores e eleitos para governar. Parece até que o sinal que a urna eletrônica emite ao final da votação teria um efeito hipnótico: o eleitor esquece em quem votou e os eleitos esquecem por que foram escolhidos.
Na prática, a defesa do bem comum fica em segundo plano, restrita aos livros de direito constitucional e aos juramentos de posse. Não obstante os discursos de campanha eleitoral afirmarem o contrário, a formação de coalizões resulta no loteamento de cargos, não importando a capacitação técnica de quem vier a exercê-los ou a busca de resultados. O relevante é ter acesso aos recursos do erário. Assim, aumentar as despesas públicas, sem a definição de metas ou processos de controle, torna-se equivocadamente aceitável, afastando o Estado da eficácia, da efetiva entrega de serviços aos cidadãos, especialmente aos mais necessitados.
Deturpando conceitos com argumentos que não se sustentam, há quem afirme que o equilíbrio dos gastos públicos ocasionaria a retirada de recursos para as causas sociais ou seria afetado o poder da administração pública na atuação do governo.
A estrutura que suporta os governos, apontada por Faoro, estimularam a ineficiência e o desperdício de recursos públicos. Um singelo exemplo: o tempo que se leva para prestar um serviço não é considerado, assim, é comum a demora de meses para um simples registro de alteração de uma empresa, impactando na geração de novos investimentos e empregos. Essa é uma demonstração, entre tantas, de que a definição de metas a serem alcançadas pelo serviço público não é prioridade.
Por outro lado, é fácil identificar na execução orçamentária de qualquer ente federativo que o volume mais expressivo de recursos sustenta a máquina administrativa em prejuízo da atividade fim, que é atender o cidadão. Há órgãos públicos com uma rede de escritórios sem necessidade, e muitos gestores sequer perguntam o porquê e, sem a pergunta, não se encontra a resposta.
Não bastasse essa estrutura disfuncional histórica do Estado brasileiro, ainda sofremos com o crescimento da corrupção que se arraigou e interfere diretamente na administração pública.
E, para piorar, se constata o avanço da ação de organizações criminosas que vão deixando as chamadas “franjas” da sociedade e procuram não só influenciar as decisões políticas mas exercê-las diretamente, dominando territórios, se financiando com o mercado ilegal e procurando assumir o poder político. Essas eleições municipais demonstraram, como nenhuma outra, a luta política exercida de modo violento por milícias e organizações criminosas para garantir a eleição de seus cooptados.
Temos assim outros candidatos a “donos do poder”, que se entrelaçam, ameaçando o Estado Democrático de Direito e influenciando nossos destinos sem qualquer preocupação com valores e princípios da cidadania. O ideal republicano fica distante, a defesa do interesse nacional parece uma utopia, e a garantia de privilégios é o objetivo.
Para enfrentar essas ameaças, algumas ações podem ser apontadas. São iniciativas urgentes a retomada da esquecida reforma política e uma reforma administrativa significativa, acrescidas do combate à impunidade e fortalecimento dos programas de integridade. Em verdade, a sociedade civil e os setores produtivos devem se articular na defesa de propostas e na cobrança de atitudes por parte dos poderes da República que realinhem o Estado, pois é certo que, com a régua e compasso tortos que estamos usando, nos afastamos cada vez mais do rumo do desenvolvimento.
*Edson Vismona é advogado, presidente do Instituto ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial) e do FNCP (Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade). Foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.
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