Não existe valet de porta-aviões
Coluna semanal do analista Márcio de Freitas comenta os temas mais debatidos entre os poderes em Brasília
Mariana Martucci
Publicado em 23 de outubro de 2020 às 07h00.
Imagine-se estacionando um porta-aviões em um porto. Ou se sabe o que fazer, ou não haverá valet para te ajudar na manobra. Certo tipo de embarcação tem uso restrito pelos estragos que pode provocar. Agora imagine esse imenso navio sem capitão…
O Congresso Nacional é uma imensa embarcação que transporta muitos interesses, até marítimos. Tem hoje dois comandantes respeitados, sensatos e de bom trânsito político. Mas, a partir de fevereiro, ninguém sabe quem estará no leme. Nem qual agenda virá com as trocas nas presidências de Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado) - que ainda nutre a esperança de conseguir uma releitura criativa da Constituição para ficar mais uns mandatos na cadeira.
Se houver alguma articulação para garantir uma mínima estabilidade comum e certa continuidade política, esse imenso leviatã poderá seguir um mapa de navegação tranquilo e estável. Até agora, contudo, não há nada que sinalize uma sucessão natural. Tudo é artificial e arriscado no ambiente polarizado e dividido, sem qualquer sinal de liderança para conduzir o processo político.
O cenário parlamentar atual é daqueles em que o sujeito atravessa a rua para pisar em casca de banana, durante uma chuva de canivetes. Quem tem juízo espera o estio chegar sob a marquise da inércia.
O poder exige que se cuide bem dele. Não gosta de solavancos inúteis, brigas de rompante e comportamento instável. Pede atenção integral. Aliás, como outra coisa delicada e frágil. Não falo de crianças nem das bolhas de sabão, mas do dinheiro, a moeda nacional. Esta é outra fonte de poder, da qual os governantes gostam de usar a abusar, mas que costuma dar um troco maior do que as eventuais maldades praticadas pelos gestores ineptos e desatentos. E o troco pelos maus-tratos à moeda pode ser tão grande a ponto de quebrar quem não valoriza o patrimônio público. Pode até demorar, mas o troco vem.
“Como medida de valor, a moeda nada mais é do que uma moeda - real ou imaginária”, disse o barbado Marx no seu O Capital. Real ou imaginária, foi a moeda do auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso e distribuído pela Caixa Econômica Federal do governo Jair Bolsonaro, que lastreou de fato a política brasileira nos últimos meses. O país passou pela pandemia da Covid19 com o governo batendo recordes de popularidade, enquanto mais de 150 mil vítimas foram enterradas. O valor real para a sociedade ficou com os vivos. Foram cerca de 60 milhões de brasileiros beneficiados numa primeira fase do auxílio. Alguns muito vivos, nem precisavam…só 500 mil devolveram.
O problema, e sempre existe algum problema, é que isso custou dinheiro pesado aos cofres do Tesouro Nacional. Dívida de fato, cobrada por quem de direito a especular com as fraquezas de governos em situação periclitante. E com juros acima da média do mercado mundial, além de prazos cada vez menores. Há um mês, o auxílio encolheu pela metade e acabará a partir de janeiro.
O fim do auxílio é para se poder cuidar da delicada moeda - basta lembrar que nas terras tropicais ela quase nada valia até o plano real. Como é frágil, o governo tenta colocá-la numa redoma protetora, chamada teto de gastos. Um governo popular tem força para manter essa barreira durante um tempo. Mas quanto tempo? E qual o custo?
Se o dinheiro no imaginário do povo se tornar um ausente real no cotidiano em 2021, muito da popularidade que está nas mãos presidenciais poderá virar vendaval. Vento forte de insatisfação popular não faz bem a quem cultiva o poder, ainda mais quando balança a moeda.
Outubro passa carregando tempestades inflacionárias de setembro, incertezas políticas crescentes no Congresso, falta de compromisso com agenda de reformas para embalar o transe dos investidores, pouco impulso na economia em geral e jogadas arriscadas no plano internacional.
Não há ainda vacina para imunizar nem o poder, nem a moeda de maus-tratos. Tanto um quanto outro, quando feridos, podem deixar sequelas graves. Existem outros remédios disponíveis, que têm que ser aplicados com precisão e competência. E que têm menos contraindicação que a cloroquina. O tratamento não pode demorar muito, porque o paciente é, por demais, impaciente.
*Analista Político da FSB
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