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Na era do conteúdo, TV precisou virar software

TVs começaram a cair na lista de prioridades de consumo e os aparelhos se concentraram em mudanças no hardware para voltar a chamar a atenção

TV, em breve, além de vitrine de compras, pode virar uma grande janela para nossas vidas virtuais. (Depositphotos/Reprodução)

TV, em breve, além de vitrine de compras, pode virar uma grande janela para nossas vidas virtuais. (Depositphotos/Reprodução)

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Publicado em 22 de fevereiro de 2022 às 19h10.

Por Omarson Costa*

Se você tem filhos pequenos, faça o teste. Pergunte o que ele prefere: ter um aparelho de TV novinho em folha no quarto ou um smartphone de última geração? Tenho quase certeza de que a maioria vai optar pelo segundo. Claro que a portabilidade é um fator preponderante. Os números não mentem: o mercado de TV global faturou em 2020 cerca de US$ 231 bilhões contra US$ 378 bilhões da indústria de celulares.

E olha que o faturamento do setor de TVs aumentou na pandemia cerca de 16% aqui no Brasil. Tanto que empresas que tinham desistido do segmento estão de volta ou planejando o retorno. É o caso da japonesa Toshiba, da Sharp e da Sanyo.

O brasileiro sempre teve uma relação quase umbilical com a televisão, desde que os primeiros aparelhos surgiram por aqui na década de 1960. Ele, assim como o rádio tinha sido, é praticamente onipresente no país. Cerca de 96% dos lares no Brasil possuem ao menos um aparelho de TV, segundo a pesquisa PNAD contínua do IBGE.

Aliás, a televisão sempre ocupou o epicentro das residências desde que se tornou o aparelho de lazer mais importante na maior parte do mundo. Rara uma casa que não tenha uma TV na área de convivência. O normal é ter aparelhos em mais de um cômodo.

Aqui no Brasil, por força de lei, as TVs nasceram abertas, com conteúdo gratuito, e uma das máximas da indústria era se preparar de quatro em quatro anos para um pico nas vendas de aparelhos novos. Era o efeito Copa do Mundo. A popularização da TV a cores, por exemplo, começou com as transmissões da Copa de 1974. Os primeiros aparelhos de plasma, substituindo a TV de tubo, chegaram para a Copa de 1998. Só que na época custavam o preço de um carro.

Através dos tempos, a telenovela foi uma paixão nacional, de O Bem Amado a Roque Santeiro, de Vale Tudo a Avenida Brasil, de Gabriela a Caminho das Índias.

A TV a cabo chegou bem mais tarde, em meados dos anos 1990 e com um custo de instalação alto para conseguir a abrangência da TV aberta ou que os canais pagos tiveram nos EUA. Só que a banda larga começou a bagunçar o coreto.

Quando Reed Hastings trocou seu modelo de negócio e passou a transmitir os conteúdos pela internet em vez de disponibilizar uma mídia física para ser alugada, a noção de conteúdo para TV começou a mudar. Não bastava mais ter um aparelho de TV sem que se pudesse conectar à internet.

O que sempre acontece quando um desafiante surge em um mercado estabelecido? Ele costuma ser menosprezado ou ignorado, lembrando da célebre frase de Jeff Bewkes (CEO da Time Warner em 2010) ironizando o poder da Netflix: “O exército da Albânia irá dominar o mundo? Não creio nisso”. Ou fazem blagues ilações como a de Luiz Eduardo Baptista, CEO da Sky no Brasil, quando afirmou que poderia comprá-la se a Netflix incomodasse. Hoje, ambos são parte do passado.

O sucesso estrondoso da Netflix, do YouTube e de plataformas de vídeos curtos como o TikTok mudou o conceito de TV. Antes você comprava um aparelho porque era a única forma de ver programação em vídeo, fosse ao vivo ou por aluguel. Hoje o que importa é o conteúdo. Você continua podendo assistir à novela, ao jogo da seleção ou à série predileta no aparelho de TV, mas também pode fazer a mesma coisa no celular, no tablet ou no notebook.

Houve duas consequências básicas: o conteúdo migrou para aplicativos proprietários (e pagos) enquanto a TV aberta, depois de entrar na era digital, está se reinventando para seguir relevante. Não é por outra razão que a Rede Globo investiu no aplicativo Globoplay.

A partir do momento em que as TVs começaram a cair na lista de prioridades de consumo, os aparelhos se concentraram em mudanças no hardware para voltar a chamar a atenção.

O primeiro passo foi tornar a arquitetura do aparelho cada vez mais fina enquanto subia a definição das telas — do plasma pro LCD e pro OLED, QLED, mini LEDs. Do Full-HD (definição padrão do YouTube, por exemplo) para o 4K e o 8K, que é uma abstração em termos de qualidade, porque consegue reproduzir um bilhão de cores, muito mais do que o olho humano é capaz de perceber.

TV Samsung Neo QLED 8K: resolução, brilho, cores e contraste em outro nível.

A tela plana tem dividido espaço com modelos de tela curva e com cada vez mais polegadas. Quase um cinema em casa.

A cada ano a Consumer Electronics Show traz alguma excentricidade para as telas de TV. No Japão inventaram um modelo em que é possível sentir sabores pela tela (pois é, já imaginou as pessoas lambendo a TV para provar alguma iguaria do Masterchef?!). Só não parece lá muito higiênico. Mas continua-se tentando ampliar a experiência para além do sentido da visão. Já há salas de cinema com olfato e vibração das cadeiras.

Outra novidade foi apresentada pela Samsung agora em 2022. Um modelo de TV que vai permitir que as pessoas busquem e comprem NFTs, os cada vez mais badalados tokens não-fungíveis.

O que a maioria dessas novidades reafirma é uma realidade muito clara: o conteúdo continua sendo o rei. As pessoas compravam as TVs para agregarem a elas dispositivos como set-top boxes (Apple TV, por exemplo), Roku, Firestick ou Chromecast. Tudo para se conectar com um conteúdo diferente do que as TVs eram capazes de ofertar.

As SmartTVs foram a resposta da indústria para as pessoas dispensarem os periféricos. Você continua navegando na TV para encontrar os Apps prediletos. Da Netflix à Disney, da HBO Max à Globoplay. O início desse mercado foi difícil.

Porque os firmwares das TVs não prezavam pela usabilidade. Lembra como era duro buscar um nome de filme no controle remoto? A experiência lembra os primeiros celulares sem teclado qwerty. Ou seja, como usabilidade, eram ruins e a TV original fez muito sucesso exatamente por ser simples de usar.

Como todo mercado novo, a tendência é melhorar com o tempo ou sumir. Além de o preço das SmartTVs se aproximar da média do mercado, os fabricantes se esforçaram para desenvolver sistemas operacionais dentro dos padrões mais modernos de interface, bem como tornaram mais fácil a atualização deles. O objetivo é se tornar a central de streaming da casa.

No mundo do software

Ao longo do ano passado, acompanhamos diversas etapas daquilo que se convencionou chamar Guerra do Streaming. A Netflix abriu o caminho e os geradores de conteúdo perceberam que poderiam monetizar seus conteúdos sem pagar pedágio - seja para o canal a cabo ou para a Netflix.

Ao longo de 2020 e 2021, vários players importantes chegaram ao mercado, com destaque para o Disney+ e o HBO Max.

Quais os resultados da batalha pela atenção e pelo seu bolso?

  1. A Netflix ainda é a rainha. Fechou o ano com 221 milhões de assinantes no mundo todo e um faturamento de US$ 7,71 bilhões (crescimento de 16%). Mas as ações despencaram porque os investidores enxergam um problema de valor. Teve de baixar os preços para competir na região da Ásia-Pacífico (leia-se Índia) e na América Latina não consegue aumentar os preços porque o consumidor tem "bolso raso" para pagar várias assinaturas. Além disso, consegue agregar cada vez menos assinantes a cada ano.
  2. O catálogo da líder do mercado sofreu baixas importantes, sobretudo com o início da operação do Disney+, que acabou o ano com algo em torno de 118 milhões de assinantes. A HBO tem cerca de 74 milhões de usuários, somando cabos e o aplicativo.
  3. Na medida em que se tornam mais onipresentes, os APPs atraem a atenção das autoridades regulatórias. A Netflix na Rússia foi obrigada por lei a transmitir cerca de 20 canais estatais.
  4. Não vamos nos esquecer do conteúdo de redes sociais, onde as pessoas gastam horas por mês. O TikTok assumiu a dianteira em tempo que as pessoas consomem na plataforma graças à forte aderência do público jovem. Não à toa, há tiktokers celebridades com um faturamento mensal que bate os contracheques de muitos altos executivos de grandes empresas.
  5. Por fim, não podemos nos esquecer da versão 2.0 do medalhão persa! Para quem não lembra são os programas de TV durante os quais se vende toda sorte de produtos, de eletrodomésticos a tapetes persas. Na era digital, eles viraram live streaming.

Durante a pandemia, houve um aumento de 450% nas buscas por lives. De acordo com pesquisas, 70% dos brasileiros conectados à internet já compraram algo que viram em algum vídeo no YouTube. Mais da metade das pessoas assistem a vídeos sobre produtos ou serviços. Com as facilidades da revolução nos meios de pagamento, via PIX, QR Codes nas telas, realidade virtual ou aumentada, a experiência de compra se torna cada vez mais fluida.

Imagina você ir a um supermercado, examinar os produtos com realidade aumentada e comprar pelo celular. Tudo na frente da TV. Será que nossa velha e boa TV está virando uma grande vitrine virtual?

E a gente ainda nem falou de Metaverso. Estamos numa fase de criação de modelos de negócio. Enquanto o Facebook apresenta sua visão do espaço virtual (que obviamente pode ser acessado pela TV), vão sendo pensados produtos para tornar a experiência mais fluida e evitar a dificuldade que os primeiros usuários tiveram com as TVs em HD, que tinham resolução diferente da dos canais transmissores, distorcendo as imagens.

A Nvidia investiu centenas de milhões de dólares em um produto chamado Omniverse, que seria uma espécie de base para permitir a conexão entre mundos virtuais, começando com simulações para engenheiros. O produto já foi baixado por cem mil pessoas. O Omniverse estaria para os futuros metaversos mais ou menos como o Windows para os PCs.

A TV, em breve, além de vitrine de compras, pode virar uma grande janela para nossas vidas virtuais. E tudo isto impulsionado por software. Deixo a seguinte pergunta para reflexão: todas as empresas de entretenimento se transformarão em empresas de tecnologia?

*Omarson Costa é diretor de negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação

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