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Márcio de Freitas: Lula e o zeitgeist

Ao dizer que a responsabilidade pela guerra entre Rússia e Ucrânia é de ambos países, Lula igualou desiguais e, se continuar, só tem a perder ainda mais

Ao falar da guerra, Lula luta contra as imagens (AFP/AFP)

Ao falar da guerra, Lula luta contra as imagens (AFP/AFP)

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Publicado em 20 de abril de 2023 às 11h49.

Por Márcio de Freitas*

A velha fábula de Chapeuzinho Vermelho registra em seu final um herói que o tempo converteu em vilão: o lenhador ou, em algumas versões, o caçador. No passado, esse desbravador dominava o meio ambiente hostil e o tornava habitável ao homem; hoje, desmatar é ato contra o futuro da própria humanidade. Ecoativistas ainda apontarão que, além de atentar contra a flora, o personagem do conto mata exemplar cada vez mais raro da fauna.

É difícil manter algumas posições do passado no presente, como se nada houvesse mudado. É preciso observar o espírito do tempo. O governo de Lula enfrenta esse desafio de aggiornamento, 12 anos após deixar o Palácio do Planalto com imenso sucesso em 2010. Sua passagem pela China demonstrou a necessidade urgente em acertar o posicionamento neste novo e complexo mundo.

Não é problema de comunicação: há fatos que exigem consideração e reflexão mais profunda para tomada de decisão e posicionamento político. É outra coisa, que muitos confundem com comunicação pela facilidade em se simplificar e responsabilizar um setor governamental – o eterno mordomo da Esplanada dos Ministérios. A comunicação pode até ajudar a resolver essa equação, ou derivar em mais cuidado nas idas e vindas das declarações diante da complexidade de uma nova geopolítica que se apresenta mais desafiadora.

É a prestidigitação diplomática que pode se virar contra o manipulador de distraídos. Se as ferramentas da internet já haviam aproximado o mundo com notícias instantâneas, as redes sociais eliminaram o tempo das reações com feedbacks muito mais rápidos. Falas ficam gravadas nas nuvens, imutáveis das redes, para serem novamente evocadas como raios sempre que um erro for constatado. E para serem expandidas ao infinito quando se veem qualquer defeito nelas – com exploração local e internacional.

Exemplo trôpego foi o desafio lançado ao ar: é fácil propor uma visita de Lula à Ucrânia, país que vai vencendo a guerra da comunicação contra a Rússia mesmo quando perde batalhas e vidas nos confrontos. As imagens não desmentem o fato: os tanques e os pelotões russos entraram em território ucraniano iniciando o conflito. Lula tentou brigar com as imagens. Se continuar, só tem a perder ainda mais.

Os ataques russos fizeram surgir uma onda migratória na Europa. Casas, prédios, escolas e hospitais foram destruídos. Por mais letais que sejam, o presidente Vladimir Putin e seu ministro do Exterior Serguei Lavrov não conseguiram destruir a cobertura da mídia mundial no território de Wolodymyr Zelensky.

Ao dizer que a responsabilidade pela guerra é de ambos países, Lula igualou desiguais. Se aliou a Putin, visto no ocidente como um político que elimina adversários por envenenamentos; usa a internet para interferir em outros países; mantém casta de privilegiados alinhados unicamente a seu juízo; controla a imprensa com mão de ferro e não hesita em prender jornalistas estrangeiros com acusações estapafúrdias. Se aliou também a Xi Jinping, líder absoluto de um país onde não existe democracia.

Lula não tem mais o frescor da novidade de um operário pobre que enfrentou uma ditadura militar e chegou ao poder no país atrasado dos trópicos. Muito aconteceu durante a hegemonia do PT como centro da política nacional. Mesmo combalida, a Operação Lava-Jato deixou desgastes enormes na imagem dos governos petistas, que já haviam sofrido moralmente com o Mensalão.

Ao se aproximar de Putin e Xi em questões controversas da guerra e criticar Estados Unidos e Europa, Lula também se afastou de valores que representava para setores da comunidade internacional, principalmente pelo histórico de defensor da democracia contra os ditadores brasileiros no início de sua carreira nos anos de 1970. Além de conflitar com sua história, ele mesmo impede que o esboçado discurso pró-democracia e pela paz seja visto como ativo crível no cenário internacional. Não amplia seu campo de ação, apenas fala a uma bolha internacional onde não é um ente natural – Jair Bolsonaro ocupava esse espaço com mais naturalidade. Ganha uns bons trocados, mas corre o risco de perder outros sem melhorar seu círculo de amizades.

A tradição brasileira é outra, e a história de Lula representa a projeção de uma imagem diferente, de enfrentamento das desigualdades sociais, de defesa da democracia. Lula faz hoje caminho inverso do que fez Nelson Mandela, um radical que usou táticas violentas na juventude e se tornou um pacifista defensor de um processo de superação das diferenças raciais na África do Sul na velhice. Em seu terceiro mandato, tudo que se espera de Lula é apenas coerência com o início de sua história, que amorteça as táticas radicais. E que não perca a essência democrática que o projetou mundialmente. Certos personagens podem se perder com o tempo, outros podem ter o tempo a seu favor. Essa escolha é que ficará na história.

*Márcio de Freitas é Analista Político da FSB Comunicação

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