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A interseção entre raça e voto nos EUA

A jornalista Cláudia Trevisan analisa as dificuldades para eleitores negros acessarem as urnas em alguns estados americanos

Os afro-americanos, que representam 13% do eleitorado, são o segmento com o maior percentual de preferência pelo Partido Democrata (NurPhoto / Colaborador/Getty Images)

Isabela Rovaroto

Publicado em 19 de outubro de 2020 às 09h57.

O grau de participação de diferentes grupos demográficos é crucial para definir o resultado das eleições nos EUA, onde o voto não é obrigatório e ganha o partido que levar mais simpatizantes às urnas. Mas o jogo não é apenas estimular sua base. Em vários estados, vigoram regras que deprimem ou suprimem a participação de segmentos da população propensos a votar no Partido Democrata, em particular negros e hispânicos.

Os afro-americanos, que representam 13% do eleitorado, são o segmento com o maior percentual de preferência pelo Partido Democrata. Na eleição de 2016, 91% dos eleitores negros votaram na democrata Hillary Clinton. Apenas 4% optaram pelo republicano Donald Trump. Entre os hispânicos, a candidata obteve 66% dos votos.

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A expectativa em 2020 é que um número ainda maior de afro-americanos votará no ex-vice-presidente Joe Biden, que contou com o apoio decisivo desse grupo demográfico para vencer as primárias do Partido Democrata. Mas milhares de eleitores negros continuar a enfrentar dificuldades ou barreiras explícitas para acessar as urnas, um século e meio depois de terem obtido o direito de voto e cinco décadas depois que o movimento pelos direitos civis tentou tornar essa promessa em realidade.

Nos EUA, as eleições são reguladas pelos 50 Estados, e não por uma lei federal, em uma colcha de retalhos na qual a facilidade do acesso às urnas varia de acordo com a geografia. A interseção entre voto e raça remonta ao período de segregação que imperou nos estados americanos do Sul depois da Guerra Civil (1861-1865). Vencido pelo Norte abolicionista, o conflito colocou fim à escravidão, mas não à discriminação.

Em 1965, o Congresso aprovou o Ato dos Direitos do Voto, que obrigou os estados do Sul a pedirem autorização ao governo federal para implementar qualquer medida que implicasse restrições ao voto. A determinação vigorou até 2013, quando foi derrubada pela Suprema Corte.

Desde então, pelo menos seis estados do Sul aprovaram leis que exigem a apresentação de documentos governamentais com fotos para votar. As medidas são consideradas restritivas por entidades de defesa dos direitos civis e  afetam de maneira desproporcional os pobres, negros e outras minorias.

Para entender como isso é possível é preciso ter em mente que o governo federal americano não emite a seus cidadãos um documento nacional de identificação como o RG no Brasil. O documento com foto mais usado no país é a carteira de motorista, mas consegui-la custa dinheiro, a habilidade de dirigir e, em geral, a propriedade de um carro.

A obtenção de outros documentos também impõe custos aos cidadãos, na forma de despesas de transporte, perda de horas trabalhadas e taxas oficiais. A American Civil Liberties Union, a principal entidade de defesa dos direitos civis nos EUA, calcula o gasto entre US$ 75 (R$ 424) e US$ 175 (R$ 989).

Estima-se que 21 milhões de americanos, o equivalente a 11% dos cidadãos, não possuem um documento de identificação emitido pelo governo. Pesquisa de 2018 do Public Religion Research Institute e da revista The Atlantic mostrou que 9% dos eleitores negros e hispânicos relataram ter sido informados que não possuíam documentos de identificação corretos para votar quando compareceram às urnas. Entre os brancos, o percentual era de 3%.

Índice ainda maior de negros e hispânicos, 16%, disse não ter conseguido se liberar do trabalho para votar, o dobro do percentual registrado entre os brancos. As eleições nos EUA não são realizadas em domingos ou feriados, mas sim em uma terça-feira de atividade comercial normal. Há votação antecipada na maioria dos estados, mas os prazos variam e nem sempre as urnas estão abertas aos domingos.

A população afro-americana, em particular os homens, também sofre de maneira desproporcional as consequências da conexão entre o direito ao voto e o sistema criminal. Os EUA são o único país desenvolvido em que condenados por crimes podem perder o direito ao voto por toda a vida. Em vários estados, eles continuam à margem do sistema eleitoral mesmo depois de cumprirem suas penas.

O Sentencing Project, uma ONG dedicada à reforma do sistema criminal, estima que 2,23 milhões de americanos que já saíram da prisão continuam sem direito de votar em 11 estados, que suspendem seus direitos políticos de maneira vitalícia. Incluindo pessoas que ainda cumprem pena, o universo dos excluídos sobre para 5,2 milhões. O Sentencing Project estima que 6,2% dos adultos negros estão impedidos de votar em razão da restrição. No restante da população, o percentual é de 1,7%.

O líder no ranking era a Flórida, um dos mais importantes estados pêndulo - aqueles que oscilam entre republicanos e democratas e acabam decidindo as eleições. Em 2018, 65% dos eleitores da Flórida votaram por eliminar a restrição e restaurar os direitos políticos dos que já haviam cumprido suas penas (com exceção dos condenados por homicídio e crimes sexuais).

A decisão não foi plenamente implementada. O governador e a Assembleia Legislativa, sob o comando do Partido Republicano, aprovaram legislação que condiciona o benefício ao pagamento de todas as multas pecuniárias pendentes. Como resultado, 900 mil cidadãos da Flórida não poderão votar em 2020.

 

* Ex-correspondente do jornal “O Estado de S.Paulo” nos EUA e na China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império”, e mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins

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