Brasil

Vozes pela Amazônia: Biodiversidade vale mais que gado e soja, diz Nobre

Para um dos maiores nomes em floresta e clima do Brasil, futuro da Amazônia depende de uma nova economia que alie biodiversidade, tecnologia e inovação

Carlos Nobre: mais de 40 anos dedicados ao estudo da floresta e do clima.  (Arquivo pessoal/Divulgação)

Carlos Nobre: mais de 40 anos dedicados ao estudo da floresta e do clima. (Arquivo pessoal/Divulgação)

Vanessa Barbosa

Vanessa Barbosa

Publicado em 15 de agosto de 2019 às 06h15.

Última atualização em 16 de agosto de 2019 às 14h02.

São Paulo – O majestoso e gigantesco manto verde que ocupa cerca de 40% do território nacional está novamente em risco. A recente alta expressiva do desmatamento, a desestruturação dos órgãos ambientais e o surgimento de propostas legislativas que reduzem a proteção da floresta parecem empurrar a Amazônia para os anos de limbo característicos da última década do século passado.

Em tempos decisivos como estes, é fundamental ampliar o conhecimento sobre as riquezas desconhecidas do bioma amazônico, seu papel fundamental na regulação do clima, das chuvas e na exportação de serviços ambientais para regiões distantes. O futuro da maior floresta tropical do mundo e de suas populações tradicionais depende de decisões tomadas pelo poder público e a coletividade com consciência e informação.

A partir deste mês, o site EXAME vai conversar com cientistas e pesquisadores consagrados no estudo da floresta, clima e biodiversidade para entender os possíveis impactos das decisões do governo federal para a pasta ambiental e discutir como é possível reverter a nova perda de floresta e desenvolver sem devastar.

O primeiro entrevistado é o professor, cientista e ex-pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Carlos Afonso Nobre. Membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Secretário Nacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) por quatro anos, Nobre é um dos maiores especialistas em mudanças climáticas globais do Brasil, tema ao qual dedicou mais de quatro décadas de pesquisa, e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

Na conversa, o cientista atribui a alta recente na perda de floresta ao discurso “agressivo e permissivo” do atual governo sobre meio ambiente, condena as propostas de lei para liberação de terras indígenas à mineração e o PL que quer acabar com o conceito de Reserva Legal na região.

Apesar de tudo, o cientista aposentado se revela um “realista otimista”. Aos 68 anos, Nobre lidera um projeto para valorização dos produtos da biodiversidade amazônica baseado em uma nova industrialização. Segundo ele, a sustentabilidade da região depende do desenvolvimento de uma bioeconomia baseada em tecnologia e inovação. “Biodiversidade vale mais que gado e soja”, diz.

Ibama combate desmatamento ilegal na região de Castelo dos Sonhos, em Altamira (PA). (Felipe Werneck/Ibama/Divulgação)

Confira a entrevista na íntegra:

Site EXAME: Há mais de 30 anos, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) monitora via satélite o desmatamento na Amazônia. Dados preliminares divulgados recentemente apontam que a floresta perdeu área equivalente a três cidades do Rio de Janeiro entre agosto de 2018 e julho de 2019, uma alta de mais de 40% em comparação ao período anterior. O que explica essa perda?

Nobre: Temos que esperar os dados consolidados do sistema Prodes, que saem em dois meses. Mas o que explica isso é uma certa sinalização governamental para aqueles que historicamente sempre buscaram e promoveram o desmatamento ilegal. A devastação da floresta tem ligação com crime organizado na Amazônia, quadrilhas internacionais interligadas ao narcotráfico, contrabando de armas, garimpo ilegal, roubo de pedras preciosas de ouro. Esses criminosos avaliam sempre o risco de serem pegos e processados. Mas quando há um discurso político de que vai haver mudança na legislação, mudança no código florestal, perdão de dividas do desmatamento do passado, tudo isso passa para os desmatadores ilegais e criminosos ambientais a sensação de impunidade. Eles avaliam que o risco é pequeno. Mesmo que o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, a Polícia Federal, as polícias estaduais e militares continuassem a coibir tudo que é ilegal, os criminosos se sentem mais livres. O desmatamento ilegal tem muito a ver com a percepção lá na ponta do sistema, na fronteira das áreas desmatadas, de que a legislação vai mudar, de que não vai haver punição e não há risco.

Site EXAME: É como se houvesse um sentimento de impunidade no ar?

Nobre: Exatamente. Quando se dissemina esse sentimento, a percepção de baixo risco tende a aumentar. Não precisa muita gente para causar um estrago na floresta. Entre milhões de fazendeiros e pecuaristas, bastam 10 mil pessoas desmatando ilegalmente para gerar índices altíssimos de perda de floresta, principalmente se o ambiente político sinaliza um risco pequeno de punição.

E mesmo que haja punição, os órgãos de fiscalização estão tão enfraquecidos e esvaziados que se tornam incapazes de fazer um trabalho eficiente. E aí ainda temos direcionamentos políticos absurdos, como aquela infeliz frase do presidente de que não é mais para destruir equipamentos que estão em operação ilegal, como determina a lei em medida de contenção de ilegalidade. E para agravar tem o projeto de lei dos senadores Flávio Bolsonaro e Márcio Bittar para acabar com reserva legal em propriedades rurais e mudar o conceito de área permanente. Todas essas mensagens contribuem para o desmatamento.

 

Site EXAME: Historicamente, a pasta ambiental tem orçamentos anuais baixos do governo federal. Em 2019, o Ibama, principal órgão de fiscalização ambiental, opera com o menor orçamento em cinco anos, além de ser alvo de críticas constantes do atual governo. Qual sua avaliação a respeito disso?

Nobre: Fiscalização é a arma contra o desmatamento. Isso demanda uma atuação firme e extensa do Ibama e da Polícia Federal. Os contraventores da floresta fazem parte de quadrilhas de crime organizado. É comum pensarmos só no fazendeiro que desmata, mas tem o madeireiro e o garimpeiro ilegais também que abastecem um mercado bilionário. Sabemos que períodos de recessão econômica acabam estimulando cortes em gastos de órgãos ambientais e na fiscalização, mas isso é um golpe direto na floresta também. Mas acima disso tudo, mesmo que a fiscalização estivesse em plena capacidade, você precisa de uma retórica governamental alinhada.

Com um discurso expansionista predatório de governo que passa a mensagem de que o crime ambiental ficará impune fica difícil proteger a floresta. Quando de 2005 a 2012, a polícia sistematicamente desbaratou várias quadrilhas de roubo de madeira, o risco começou a ficar muito grande, então os criminosos migraram para outras atividades. Não à toda, as taxas de desmatamento caíram drasticamente naquele período, mesmo diante do aumento dos preços internacionais das commodities. Mas é importante lembrar que esses fatores não são exclusivos do atual governo. A pressão dos ruralistas vem de antes, ganhou força no governo Temer com a reforma do Código Florestal e a pressão pelo projeto de lei que perdoa dívidas de ruralistas. Mas claramente, a pressão está bem mais forte agora, com projetos ainda mais absurdos.

 Site EXAME: Os dados do sistema de monitoramento de desmatamento do Inpe foram severamente questionados pelo governo Bolsonaro, levando à exoneração do presidente da entidade, o cientista Ricardo Galvão. Ao longo de toda sua carreira como pesquisador, trabalhando ao lado do governo, como o sr. recebeu esse olhar de descrédito sobre a ciência?

É muito triste e reflexo de um movimento de dogmatismo mundial em relação à ciência, um fenômeno que os sociólogos estão estudando. Há pessoas que se especializam em implantar dúvidas quanto ao conhecimento científico. Como os negacionistas do clima.

Toda a comunidade científica está percebendo esse movimento. É lógico que o nível de agressão verbal de parte da classe política se intensificou sob o atual governo. Muitos políticos se sentem confortáveis para ecoar suas convicções neste momento. Num certo sentido, tornar público uma posição facilita a transparência, agora o povo brasileiro sabe o que cada representante pensa.

Mas é lógico que esse movimento é preocupante. O crescimento de regimes autoritários populistas traz uma dose enorme de preocupação associada com o movimento global anti-ciência, presente em países tão diversos quanto os Estados Unidos de Trump e a Venezuela de Maduro. O conhecimento da ciência não é dogmático e não serve a propósitos de governos populistas, autoritários e autocráticos onde o que vale é a “verdade imutável” imposta pelo líder. Em todos esses movimentos, sejam de esquerda ou direita, a ciência é relegada a um papel marginal que não pode contestar o que o líder supremo determina.

Site EXAME: O presidente Jair Bolsonaro tem insistido que os dados sobre o desmatamento no Brasil passem primeiro por ele, antes de serem divulgados à população. Qual sua opinião sobre esse acesso prévio aos dados?

Nem sempre os dados de desmatamento foram públicos. Até 2002, o governo federal não permitia que se disponibilizasse os números do monitoramento da floresta para a população diretamente. O Inpe também não tinha permissão de mostrar os mapas dos locais com maiores perdas. Os dados eram finalizados pela entidade, entregues ao ministro do meio ambiente e então o governo decidia o dia, a semana e o mês para divulgá-los. Havia um controle político dos dados. Por exemplo, se estivéssemos às vésperas de uma convenção do clima e o governo julgasse que aquele não era um bom momento ou que poderia prejudicar a imagem do Brasil nas negociações, ele segurava esses dados. A partir de 2002 isso mudou. Eu tive a felicidade histórica de estar na reunião em que o diretor do Inpe convenceu o então ministro de Ciência e Tecnologia, o embaixador Ronaldo Mota Sardenberg, de tornar público os dados e o mapeamento do desmatamento.

Infelizmente, essa tendência de mostrar só o que é bom e esconder o que é ruim está se repetindo agora. É muito importante, principalmente após a Lei de Acesso à Informação, que cada vez mais os dados se tornem públicos. Até porque eles aumentam em muito o grau de conscientização da população. No ano passado, quando o Inpe divulgou os dados do Prodes, o então ministro do Meio Ambiente, Edson Duarte, pediu para todos os estados amazônicos levantassem se naqueles lugares em que o sistema identificou perda de floresta se havia ocorrido desmatamento ilegal ou legal. O ministro recolheu os dados de todos e anunciou publicamente em uma conferência de imprensa, em novembro, que 80% do desmatamento registrado pelo sistema do Inpe era ilegal. Quanto mais transparentes os dados, mais você traz a população para o combate à ilegalidade. Quando maior essa parceria, mais chance de sucesso. O caráter público da informação, portanto, é muito importante e deve ser respeitado.

Site EXAME: No Brasil, o setor de uso da terra é a principal causa de emissões de GEE, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), com a agropecuária e mudança de uso da terra e florestas (desmatamento). Temos o compromisso no Acordo de Paris de reduzir 43% das emissões nacionais até 2030 comparado a 2005. Na situação atual, é possível alcançar essa meta?

Nobre:  O caminho mais fácil para atingir o Acordo de Paris é reduzir o desmatamento ilegal. Para isso, teríamos que chegar à faixa de 3 a 4 mil quilômetros quadrados por ano de desmatamento no máximo. Nós prometemos alcançar isso em 2020. Mas é improvável que consigamos. No ano passado, o Prodes mostrou 7,8 mil quilômetros quadrados de floresta desmatada. Precisamos reduzir à metade. Em 2019, tudo leva a crer que o desmatamento vai passar em 20% a taxa anterior, ficando entre 9 mil e 10 mil quilômetros quadrados. Para a meta de 2030, teríamos que frear com força o desmatamento ilegal. Para ter sucesso, significa reduzir para não mais do que 2 mil quilômetros quadrados por ano. Aí, sim, na questão do desmatamento, seríamos capazes de cumprir as metas.

Com relação à agropecuária como um todo, o país também precisa caminhar para uma produção com menos emissões. Há pouco mais de três anos, estudos da Embrapa apontavam que até 2030 o Brasil tinha condição de desenvolver a chamada agricultura neutra em carbono. É muito difícil zerar as emissões de metano geradas pela digestão dos bovinos, mas é possível compensar com o plantio de pastagem que absorvesse gases de efeito estufa, como CO2. Há várias outras soluções: restauração florestal, expansão do sistema integrado lavoura-pecuária-floresta, em que você planta muitas árvores numa pastagem e elas absorvem muito carbono para crescer e de quebra geram sombreamento para os animais. Há estudos inclusive que apontam que áreas sombreadas em pastagem permitem ao gado acumular de 300 a 400 gramas de proteína animal por dia a mais, enquanto o gado leiteiro consegue aumentar a produtividade na faixa de 5 a 10%.

E aí, na integração com a lavoura, quando você prepara uma gramínea ou um pasto, e depois a substituiu com uma cultura agrícola de curto período, e depois põe outra cultura que enriquece o solo de nitrogênio, você prepara o caminho para uma pastagem mais rica lá na frente. Todos esses ciclos amplamente conhecidos e estudados pela agronomia brasileira, e em implementação, poderiam levar a agricultura brasileira a ser quase neutra em carbono por volta de 2030.

Além disso, o Brasil está mostrando que tem os preços mais baratos de energias renováveis eólica e solar. Nosso potencial de energia renovável é gigantesco. Então mesmo que as metas que o Brasil colocou em 2015 para o Acordo de Paris referentes ao setor de energia não tenham sido muito ambiciosas [prometemos ter de 42 a 43% da matriz energética renovável em 2030] poderíamos com nosso potencial chegar a 60%.

Site EXAME: O presidente Jair Bolsonaro considera a defesa do meio ambiente um entrave à expansão econômica do Brasil e principalmente da agropecuária. Como o sr. avalia essa associação?

 Nobre: No Brasil, historicamente o mercado agropecuário cresceu com base num modelo expansionista predatório, convertendo mais áreas verdes em pasto para aumentar a produção. Temos uma média nacional entre 1,3 e 1,4 cabeça de gado por hectare. Isso é muito baixo em termos de produtividade. Com baixíssimo investimento, só com melhor manejo de pastagem, é possível levar essa taxa para 3 cabeças por hectare, aumentando a lucratividade da pecuária. O maior investimento seria a vontade do pecuarista. Tenho um amigo na Empraba que cunhou o termo “bovinocultor” em vez de pecuarista. O bovinocultor é um pecuarista que quer lucro, que quer aumentar a produtividade e ele usa tecnologia para aumentar a qualidade da sua produção.

Na questão da soja, a produtividade média do Brasil é de 3,2 toneladas por hectare por ano, isso é metade da produtividade dos Estados Unidos, de 6,5 toneladas e bem menos do que da Argentina. Tem muito espaço para melhorar. Na Amazônia e no norte do Cerrado, a produtividade beira 2,9 toneladas, abaixo da média nacional. Mesmo a soja brasileira que aumentou muito em produtividade nos últimos anos ainda está muito longe do seu potencial produtivo. Mesmo que seja difícil atingir a média norte-americana, o Brasil poderia tranquilamente atingir 5 ton/hec/ ano, o que reduziria demais a necessidade de expansão da soja. É possível produzir muito mais soja em menos área. Portanto, a nossa agricultura tem que se tornar mais produtiva, fundamentalmente na pecuária, mas também nas outras culturas agrícolas de grande extensão e mercados.

Site EXAME: Em abril, o governo federal anunciou corte de mais de 40% nas despesas de investimento do MCTIC, principal financiador de projetos de pesquisa na Amazônia. E também temos o Fundo Amazônia, mais importante programa de preservação da floresta, em risco por conta de uma queda de braço entre o governo brasileiro e os países europeus doadores.  Como o senhor vê essa redução de recursos na área de pesquisa e preservação?

Nobre: A recessão econômica global de 2008 e 2009 nos deu uma lição de como dar a volta por cima. A Coreia do Sul é um ótimo exemplo.  O governo sul-coreano aumentou os investimentos em pesquisa e inovação em ciência e tecnologia. Qual a lógica? Eu vou me preparar para a próxima recessão, vou me tornar menos vulnerável, serei uma nação mais resiliente. Investir em ciência, tecnologia e inovação torna um país mais preparado e forte para lidar com momentos de choques econômicos.

Países em desenvolvimento, como o Brasil, fazem o contrário. Quando tem uma recessão ou uma estagnação econômica, o país corta muito mais os investimentos nessas áreas do que em outras. É uma atitude que nos fragiliza. O Brasil está se desindustrializando nos últimos 20 anos, virando um país de recursos naturais só, muitos não renováveis, como minérios, petróleo etc. Então e acho que essa não é uma atitude inteligente.

Outra mensagem é para o setor privado, que no Brasil investe muito pouco em ciência, tecnologia e inovação. Na Coreia do Sul, eles investem quase 4% do PIB em ciência, tecnologia e inovação. Desse total, 1% vem do governo e os outros 3% é setor privado. Já em países em desenvolvimento, quem investe mais é o governo, setor privado quase não investe. Essas mudanças estruturais são fundamentais se quisermos nos tornar uma país do século 21.

Site EXAME: Ao seu ver, como o Brasil pode virar esse jogo, preservar a floresta e ainda lucrar com sustentabilidade?

Nobre: O maior potencial da Amazônia é a biodiversidade, não é a pecuária, nem a agricultura tradicional, tampouco o minério. Por isso eu defendo o projeto Terceira Via Amazônica, que nós chamamos de Amazônia 4.0, que busca revelar o potencial da floresta por meio de uma bioeconomia baseada na riquíssima biodiversidade amazônica. Um belo exemplo desse potencial é o açaí, que já gera mais de 1 bilhão de dólares para a economia da região por ano. Mais de 250 mil toneladas de polpa de açaí são produzidas por ano, beneficiando cerca de 300 mil pessoas, principalmente no estado do Pará. E olha que a industrialização do açaí da Amazônia ainda é pequena. O grande futuro da floresta depende do desenvolvimento de uma industrialização a partir da biodiversidade, com a floresta em pé, sistemas agroflorestais, com a restauração de áreas desmatadas, com cultivo de espécies de valores econômicos, tudo associado a indústrias locais para agregar valor.

Site EXAME: Em que pé está o projeto da Terceira Via Amazônica?

Nobre: O projeto ainda está em fase conceitual. Começamos a desenvolvê-lo a partir da publicação de um artigo científico há três anos. E quando me aposentei do Inpe passei a me dedicar com mais afinco a essa proposta envolvendo bioeconomia. Agora que estou ligado ao Instituto de Estudos Avançados da USP, estou desenvolvendo com mais ímpeto esse projeto em parceria com meu irmão, Ismael Nobre.

Estamos desenhando o que nomeei de laboratórios criativos da Amazônia, que são espaços para capacitar as populações locais e alunos de universidades para as cadeias produtivas da floresta. Já fizemos o desenho de um laboratório para a cadeia do cupuaçu e o cacau, ambos com enorme potencial. Estamos desenhando uma linha agora para a castanha do Brasil.

A ideia é que esses laboratórios sejam itinerantes, eles vão capacitar populações e fazer treinamentos em campos universitários para motivar jovens a criarem empreendimentos sustentáveis para essa nova economia. É um caminho real para o desenvolvimento sustentável que gera bioindustriais locais e empregos bons. País desenvolvido é país industrializado. O Brasil, que sempre foi referência na América Latina, está se desindustrializando. Temos que retomar esse processo, mas agora levando em conta esse fator único dos países amazônicos e américa do sul tropical que é a biodiversidade.

O Brasil pode ser tornar uma potência ambiental da biodiversidade. Sabe aquela propaganda “Agro é pop, agro é tech, agro é tudo”? O certo para o Brasil seria “Bioagro é tudo”. Mas não existe o Bio, né? Se bem me lembro dessa propaganda, que durou meses e meses na televisão, só vi uma pequena referência à castanha do Pará e de caju.

Site EXAME: Como é possível concretizar essa visão de um desenvolvimento pautado na biodiversidade?

Nobre: Há dois aspectos importantes para viabilizar isso. O empoderamento das populações para que elas possam desenvolver novas aplicações de centenas de produtos da biodiversidade. Precisa de ciência, tecnologia e inovação avançada, e precisa de incentivo governamental para implementação inicial até que surjam centenas de novas empresas que deem escala a esses produtos e busquem mercados mundiais.

Mas antes disso, uma mudança fundamental é necessária: o brasileiro precisa se orgulhar de ter a maior biodiversidade do Planeta. Mas não apenas um orgulho teórico, ele precisa entender que este é o maior potencial econômico que o país pode ter. O potencial ambiental da diversidade tem que ser um desejo nacional de desenvolvimento.

Sabemos que 90% dos brasileiros são contra o desmatamento da Amazônia, em grande medida isso se deve ao destaque que os meios de comunicação deram ao tema nos últimos 20 anos. Agora, como você transforma essa riqueza natural em benefício socioeconômico, em qualidade de vida e melhores empregos? É através da industrialização da biodiversidade.

Em julho, eu passei uma semana de férias com minha esposa e meu netinho em Gramados Canela, no Rio Grande do Sul. O que me chamou atenção é que se eu queria comprar pinhão, eu tinha que comprar naquelas barraquinhas de beira estrada. Não havia produtos mais elaborados feitos com pinhão. Isso mostra que culturalmente não valorizamos nossa biodiversidade. A valorização do açaí pode ser replicada para vários produtos, se investirmos em pesquisa para alavancar novos modelos.

Mesmo a agricultura familiar trata pouco disso. Então, uma maneira de potencializar esse processo seria que grande parte do modelo de desenvolvimento a partir da biodiversidade fosse feito pela agricultura familiar, que passaria a uma fase de agroindustrialização, concebendo produtos da biodiversidade dentro de sistemas agroflorestais e conferindo um primeiro nível de industrialização para aumentar a renda. Esse tipo de modelo, que a Embrapa por exemplo poderia desenvolver, é essencial. Por isso, é essencial aumentar o investimento em pesquisas sobre a biodiversidade brasileira.

Site EXAME: Como esse projeto dialoga com comunidades indígenas? E, aproveitando, o sr. é a favor ou contra a liberação de atividades mineradoras dentro de terras indígenas? 

Nobre: Eu acho absurda essa ideia. A história da mineração, principalmente o garimpo, é como um filme de terror. Historicamente, os garimpeiros levaram à dizimação de populações indígenas, doenças, corrupção, alcoolismo, só levaram problema. Não estou falando de empresas autorizadas. Estou falando do garimpo ilegal que acompanha indiretamente esse tipo de liberação. Então, é melhor preservar as culturas indígenas e dar ferramentas para que eles possam explorar de forma sustentável os recursos da biodiversidade, algo que eles fazem há milhares de anos. As poucas lideranças indígenas com quem tive oportunidade de conversar sobre o projeto da Terceira Via receberam com bons olhos a ideia. Eles estão abertos a aprender como explorar melhor economicamente seus modos de vida e seu conhecimento tradicional, mas agregando mais qualidade e atingindo mercados.

Site EXAME: O sr. é autor de um artigo junto com o cientista Thomas Lovejoy, outra referência mundial em estudos ambientais, sobre o ponto de ruptura da Amazônica, um limite de mudanças irreversíveis a partir do qual a floresta poderia virar savana. Mantido o atual ritmo de devastação, o quão perto estamos desse processo?

 Nobre: Segundo nossas estimativas, este ponto limítrofe poderá ser atingido quando o desmatamento alcançar de 20% a 25% da bacia amazônica. Atualmente, a perda de floresta está na casa dos 15 a 17%. Com as taxas atuais de desmatamento, nós estamos falando em cerca de 30 anos até a floresta se desestabilizar e buscar num novo estado de equilíbrio, com parte de seu território virando uma savana empobrecida.

É algo gravíssimo. E já estamos vendo muitos sinais preocupantes. A estação seca está ficando mais longa no sul e leste da Amazônia, segundo observações dos últimos 30 anos. Estudos ecológicos de espécies apontam uma mortalidade maior de espécies amazônicas de árvores típicas de ambientes mais úmidos e uma mortalidade bem menor das espécies que toleram ambientes estações secas mais longas. Isso é um perigosíssimo sinal de que estamos na direção da savanização.

Site EXAME: Quais seriam os impactos da savanização da floresta para o Brasil e o mundo?

Primeiro, haveria uma enorme perda de carbono que complicaria mais ainda o aquecimento global. No extremo de uma savanização completa dentro de 30 e 50 anos, que eu espero que não ocorra, estamos falando em mais 200 bilhões de toneladas de gás carbônico entrando na atmosfera. Isso equivale a cerca de cinco anos de emissões globais de gases efeito estufa. Abreviamos em muito as chances de atingir o Acordo de Paris e evitar mudanças climáticas catastróficas.

Site EXAME: O senhor é otimista com o futuro da Amazônia?

Eu costumo dizer que tenho um realismo esperançoso. Começo a ver sinais nos jovens. Olhe o exemplo da Greta [jovem ativista do clima sueca]. Se o movimento de ação climática atingir 20% dos jovens do mundo, tudo muda. Os próximos dez anos são críticos para o futuro da humanidade. Se esse movimento crescer, ele se tornará uma boa de neve que vai contagiar mais jovens no futuro. Se esses jovens mudarem seus hábitos rumo a estilos de vida mais sustentáveis e consumo responsável, o mercado mundial vai ter que acompanhar.

Por exemplo, cada vez mais tem diminuído o número de jovens que querem ter um carro, principalmente em países desenvolvidos. Assim é possível imaginar uma transição no setor de energia, com redução drástica na queima de combustíveis fósseis e valorização de fontes renováveis. Eles também estão mais conscientes no consumo, exigindo produtos de produção responsável, por exemplo a carne logo mais terá que provar que não é originária de desmatamento tropical. Agora, será que em dez anos teremos uma nova sociedade? Eu não tenho bola de cristal. O meu realismo esperançoso me diz que os jovens vão dominar. Acredito que eles vão ganhar a briga contra a anti-ciência, contra os movimentos autocráticos, populistas e autoritários perpetrados por uma geração mais velha.

Site EXAME: Para finalizar, o que todo brasileiro deve saber sobre a Amazônia?

Todo brasileiro deve saber do enorme valor cultural, natural e potencial da Amazônia. A floresta é uma enorme riqueza não só econômica, mas um patrimônio do Brasil, um tesouro do povo brasileiro, principalmente das populações amazônicas tradicionais e dos indígenas, que mantiveram a floresta preservada por tanto tempo. Temos que ter orgulho de estarmos no país com a maior floresta tropical do mundo e sermos radicalmente contra o desmatamento da floresta, contribuir decisivamente para isso por meio de um consumo mais responsável, dizendo não a produtos oriundos da devastação da floresta.

 

Acompanhe tudo sobre:AmazôniaDesmatamentoFlorestasGoverno BolsonaroJair BolsonaroMeio ambienteMinistério do Meio AmbienteSustentabilidade

Mais de Brasil

São Paulo tem 88 mil imóveis que estão sem luz desde ontem; novo temporal causa alagamentos

Planejamento, 'núcleo duro' do MDB e espaço para o PL: o que muda no novo secretariado de Nunes

Lula lamenta acidente que deixou ao menos 38 mortos em Minas Gerais: 'Governo federal à disposição'

Acidente de ônibus deixa 38 mortos em Minas Gerais