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Transmissão descontrolada de vírus pode fazer do Brasil "celeiro" de variantes

Sem lockdown e com poucas vacinas, cientistas se preocupam com a circulação do vírus, que aumenta as chances de mutações e novas variantes

Paciente chega em hospital de Manaus. (Michel Dantas/Reuters)

Paciente chega em hospital de Manaus. (Michel Dantas/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 4 de março de 2021 às 13h58.

A disseminação sem controle do novo coronavírus no Brasil está deixando cientistas nacionais e estrangeiros em alerta sobre o impacto que isso pode ter sobre a pandemia como um todo, em especial no surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2. Uma preocupação é que o País se torne uma espécie de "celeiro" de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.

Quanto mais o vírus circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas variantes. É um processo que faz parte da natureza desse organismo, mas é favorecido em cenários de descontrole como o que vemos no Brasil, que enfrenta o pior momento da pandemia em um ano em meio a um relaxamento das medidas de segurança. Enquanto o número de casos e de mortes vem caindo em várias partes do mundo, aqui só tem subido.

Somente nesta quarta-feira, 3, foram registrados mais de 74 mil novos casos, o maior valor em todo o mundo, e 1.840 mortes, recorde desde o início da pandemia no País. Os Estados Unidos tiveram cerca de 60 mil novas infecções.

Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer variantes muito diferentes, como é o caso da P.1, que surgiu em Manaus, e também das originadas no Reino Unido e na África do Sul. Por causa disso elas são chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês). Em geral, sabe-se que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma tacada só. Por isso elas preocupam.

O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência. São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. "É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem", afirma.

A cientista - que está colaborando com estudos que buscam entender a transmissibilidade da P.1 e como ela pode escapar de anticorpos, permitindo assim a reinfecção - pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas. "A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela", diz.

Ainda não há evidências para dizer se esta variante tomou conta da epidemia no Brasil nem se é a responsável pela explosão de novos casos observada na maior parte do País. Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre - cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem -, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio. Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas.

O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no País."Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer", afirma ele.

"É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é a mesma: distanciamento social e uso de máscara. O fato é que damos toda a oportunidade do mundo para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações", diz.

Nogueira explica que o surgimento das variantes é matemático. "A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante... aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindo-as à vontade dentro do País", alerta.

Para o virologista Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz Amazônia à frente dos estudos que mostraram a prevalência da P.1 em Manaus e como a linhagem é mais transmissível, esse é um risco que pode ocorrer onde houver o descontrole.

"O Brasil e todos os países que deixaram o vírus correr solto estão sendo incubadoras de novas variantes. Relatos nesta semana apontam para mais duas prováveis novas variantes de preocupação nos Estados Unidos: na Califórnia e em Nova York. Em todos os países com esse discurso de que devemos deixar o vírus circular para dar imunidade (de rebanho), a gente está vendo o que está acontecendo", comenta.

De acordo com o pesquisador, nos últimos três ou quatro meses houve aceleração da evolução do vírus. "Isso está claro. Não somos só nós, todos os grupos de pesquisa estão mostrando isso. O surgimento da linhagem do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil - com algumas mutações em comum relacionadas ao escape de anticorpos e a maior transmissão - mostram que o vírus deu um salto de evolução", diz Naveca.

"Então, a chance de termos novas variantes cada vez mais adaptadas ao ser humano é muito grande se a gente continuar dando essa liberdade para o vírus. A gente precisa urgentemente diminuir a transmissão do vírus", frisa.

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