No STF, pastora evangélica e rabino defendem direito ao aborto
"Há séculos um cristianismo patriarcalizado é o responsável por penalizar e legitimar a morte de mulheres", disse Lusmarina Garcia durante audiência pública
Agência Brasil
Publicado em 6 de agosto de 2018 às 15h08.
Última atualização em 6 de agosto de 2018 às 15h14.
A audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) organizada para debater a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação foi marcada, na manhã de hoje (6), por discursos baseados em premissas constituições e reflexões teológicas e filosóficas - diferentemente de sexta-feira (3) quando cientistas e profissionais de saúde pautaram o debate por meio de pesquisas e números.
Mesmo com o apelo feito pela ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e pela ministra Rosa Weber, que conduz os trabalhos, o segundo dia de audiência pública foi marcado por diversas manifestações dos presentes.
A mais aplaudida, sendo aclamada de pé pela maior parte dos presentes no plenário da Primeira Turma do STF, foi a pastora evangélica Lusmarina Garcia, que proferiu uma das poucas falas favoráveis à descriminalização, dentre os 11 representantes religiosos.
Favoráveis à descriminalização
Representando o Instituto de Estudos da Religião e teóloga e mestre em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lusmarina ressaltou o que considera uma motivação patriarcal para a posição de muitas entidades religiosas contrárias ao aborto. Ela defendeu um estado laico e políticas públicas baseadas no conhecimento.
"Há séculos um cristianismo patriarcalizado é o responsável por penalizar e legitimar a morte de mulheres", disse Lusmarina. "Uma parte das tradições religiosas, que são construções históricas, insiste em disseminar a misoginia", acrescentou. Segundo ela, a mulher foi relegada a um papel secundário na construção do cristianismo, o que se reflete nas posições defendidas hoje por diversas igrejas.
Lusmarina disse ainda que o aborto é praticado por "mulheres comuns e de fé como evangélicas, católicas e espíritas. Essas mulheres comuns, mulheres de fé, devem ser consideradas criminosas?", questionou. "Gostaria de dizer a cada uma delas: vocês não estão sozinhas e vocês não são criminosas", respondeu.
Segunda a defender a descriminalização, a socióloga Maria José Fontelas, do Católicas pelo Direito de Decidir, engrossou o tom ao questionar: "O que falta dizer para defender a vida das mulheres?".
A professora citou manifestações do Papa Francisco, que ofereceu aos padres a possibilidade de conceder o perdão às mulheres que abortaram e se sentiam culpadas. "A Igreja sempre mudou quando percebeu que a sociedade mudava. Foi assim com respeito à escravidão. Por que não poderia reconsiderar sua posição em relação ao aborto?", indagou.
A defesa da descriminalização ganhou o apoio da Confederação Israelita do Brasil. Em tom mais leve, o rabino Michel Schlesinger disse que sua opinião sobre o tema seria apresentada como uma sugestão: "tomem o cuidado de não tomar nenhuma decisão pela pessoa que vai no final das contas pagar o preço de uma decisão ou não". Ao lembrar que o fundamento bíblico é o de escolher pela vida.
"Mas, o que significa escolher a vida em cada uma das circunstâncias? Qual a vida? Qual o aspecto da vida? Saúde mental também é vida", questionou ao esclarecer que a tradição judaica entendeu que durante a gravidez não existe a vida completa e autônoma, mas a possibilidade de vida. "Essa possibilidade de vida é sim sagrada e deve ser preservada, mas segue em debate", ou seja, a vida da mulher e sua integridade estão acima da sobrevivência do feto ou do bebê até o último instante do parto. "É uma espécie de legítima defesa", disse.
O rabino concluiu destacando a aproximação do papel das instituições religiosas e do Estado. "Recomendo que o Estado monte equipes multidisciplinares para aconselhar e acolher essas mulheres. Temos uma oportunidade de sermos relevantes num momento tão crítico na vida de uma mulher e seu retorno. E só o seremos se nossa postura for de acolhimento. No final, a escolha do indivíduo será tomada, conosco ou apesar de nós".
Maioria contrária
A maior parte dos expositores convidados para esta segunda, no entanto, criticou a possível mudança da lei para permitir o aborto até a 12ª semana de gestação, como pede a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) da qual Rosa Weber é relatora.
Do rol de 11 entidades ligadas a diferentes religiões que estiveram presentes, representantes de sete delas rechaçaram a possibilidade de uma mudança da lei penal. Atualmente, no país, a interrupção da gravidez é considerada legal somente em casos de estupro, de gestação de fetos anencéfalos ou caso a gestante esteja correndo risco de vida.
O teólogo e professor universitário Douglas Roberto de Almeida Baptista, da Convenção Geral das Assembleias de Deus, defendeu que a vida começa a partir da concepção, momento a partir do qual a Constituição garante proteção à vida.
"Toda pessoa tem o direito a sua vida. Este direito tem que ser protegido pela lei desde o momento da sua concepção. Militantes da cultura da morte questionam quando ocorre o início da vida", afirmou. Baptista ainda questionou os argumentos favoráveis à descriminalização do aborto acusando "de estarem plenos de viés ideológico, politico-partidário".
"Não existe preceito fundamental para matar inocentes. Essa ADPF não merece prosperar porque o abortamento está em desacordo com a moral dos brasileiros", afirmou, citando o Censo de 2010. "Mais de 85% dos brasileiros professam a fé cristã e o fato de tirar a vida é atentado à lei da moral e ética da fé cristã", disse. Segundo ele, os "militantes abortistas" não aceitam que o assunto seja submetido a um plebiscito porque a maior parte da população não aprovaria.
Em tom mais moderado, o professor e integrante da Convenção Batista Brasileira, Lourenço Stelio Rega, apresentou uma espécie de aula sobre diferentes correntes filosóficas sobre a vida e de genética.
Ele defendeu que o embrião "não deve ser objeto de descarte como um aglomerado celular" e alertou que mais do que discutir a permissão ou não do procedimento, o Estado precisa discutir como reduzir os números de aborto garantindo condições seguras e protetivas para as mulheres.
"A vontade da gestante não pode desconsiderar que um ser-outro tem a sua própria identificação genética que permanecerá até o termo da vida. O embrião humano é um ser, uma pessoa, uma personalidade", disse.
Após breve intervalo para almoço, a audiência foi retomada agora à tarde, com a manifestação de mais 13 palestrantes, dessa vez representando entidades e órgãos jurídicos, como a Defensoria Pública da União, e também outras ligadas à defesa dos direitos humanos.