Mauro Iasi, candidato do PCB à Presidência da República (Divulgação/Creative Commons/PCB)
Da Redação
Publicado em 22 de setembro de 2014 às 17h05.
Rio de Janeiro - Historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado e doutorado em sociologia, Mauro Iasi é o candidato do Partido Comunista Brasileiro (PCB) à Presidência da República. Entre suas propostas, destacam-se a adoção de um planejamento econômico com controle estatal sobre setores estratégicos, como energia, saúde, educação e transportes, a desoneração da renda do trabalhador e o aumento da tributação de grandes fortunas e patrimônios.
O candidato também é contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que, a seu ver, reduz a capacidade de investimentos públicos dos estados e municípios. Para uma reforma política, Iasi defende uma assembleia constituinte exclusiva, “eleita por critérios diferentes daqueles que hoje elegem o Congresso e em consonância com a vontade popular”.
Confira, abaixo, algumas das propostas do candidato que concedeu entrevista à Agência Brasil em sua casa, no Rio de Janeiro:
Agência Brasil: As estimativas de inflação oficial pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) para o ano que vem estão em torno de 6,2%, próximo do teto da meta. Como o senhor pretende atuar para conter o aumento de preços?
Mauro Iasi: No Brasil, as políticas anti-inflacionárias estão hoje vinculadas ao chamado equilíbrio macroeconômico, e essa ficção, que é a chamada inflação em torno da meta, é que o Banco Central administra. Nossa proposta é retomar a ideia do planejamento econômico. O que temos hoje é uma economia de mercado que funciona sem freios, e o governo tentando, a posteriori, administrar os preços. Revertendo as privatizações, equacionando o problema da dívida pública e com uma política de investimentos para pensar a economia, com setores estratégicos controlados pelo Estado e pelos trabalhadores, teremos como resultado o equilíbrio de preços. E não o inverso: uma economia sem freios ou controle, tentando controlar os preços depois, o que resulta na situação atual, em que o única meio de controlar preços é produzir políticas recessivas. É preciso inverter essa lógica pela ideia de planejamento.
ABr: A redução de impostos, que tem sido usada para estimular a economia, termina com impacto nas contas públicas. Como manter o equilíbrio nessas contas sem reverter as desonerações? Qual a sua proposta para aumentar a arrecadação sem causar impacto na inflação?
Iasi: Em períodos eleitorais, a questão tributária no Brasil é analisada sempre pela ótica da redução, mas, na realidade, esse tipo de política tem distorções. Nessa política, 63,4% dos recursos arrecadados oneram os trabalhadores, pelo consumo direto ou pela renda do trabalho. Apenas 4% vêm das grandes fortunas. Muito menos do que isso vem, por exemplo, do Imposto Territorial Rural. Há uma distorção na concepção tributária, em conflito com os próprios princípios constitucionais, pelos quais o imposto tem de ser direto, progressivo, e não como hoje ocorre.
Temos uma desoneração, uma renúncia fiscal muito grande como política de Estado, no que diz respeito às indústrias automobilística e de eletroeletrônicos, o que consideramos algo muito perverso, pois são setores altamente lucrativos. Não são setores que tiveram dificuldades para manter as taxas de lucro no período – o que ocorre é uma intensa remessa de lucros. Essas empresas arrecadam lucros exorbitantes e os remetem para fora, mas, no momento da crise, elas chantageiam o governo para manter os níveis de emprego, exigindo, portanto, renúncia fiscal. Para nós, é prioridade da política tributária a desoneração da renda do trabalho.
ABr: Este ano, com a baixa no nível dos reservatórios e a consequente necessidade de acionar as termelétricas, a energia acabou ficando mais cara. E novos reajustes estão previstos para o ano que vem. Apesar de todo o seu potencial energético, o Brasil continua com tarifas altas. O que fazer para evitar mais aumentos?
Iasi: A questão hídrica tem várias dimensões. não é apenas o potencial hidrelétrico. Em São Paulo, por exemplo, há uma grave crise de gestão dos recursos hídricos. Já alertávamos há 20, 30 anos sobre a maneira como se tratam os mananciais nesse estado. Não vemos essa situação simplesmente como a crise do regime de chuvas: é uma crise do modelo de gestão desses recursos, que são totalmente capturados pelas necessidades das grandes empresas, seja para resfriamento de turbinas, seja pelo próprio uso da água sem nenhum tipo de controle ou intervenção dos comitês de bacias.
No longo prazo, isso levou à situação atual. Nos últimos 12 anos, as hidrelétricas tiveram prioridade absoluta no uso dos recursos hídricos. Cientistas, como o professor Ildo Sauer, alertavam que a proposta de geração de energia no Brasil estava extremamente desequilibrada e poderia gerar problemas no longo prazo. E o governo respondeu de que maneira? É necessária a produção de um volume de quilowatts para manter o crescimento, independentemente de gerar, ou não, impacto nos recursos hídricos. Sem contar muitas das hidrelétricas foram construídas sem um estudo ambiental mais profundo, tendo impacto social sobre populações ribeirinhas, indígenas, quilombolas. Na época, isso gerou muitos protestos.
No ano passado, a presidente [Dilma Rousseff] falou inclusive sobre a possibilidade de redução das contas de energia, e hoje o que se vê é uma situação de aumento delas. Criticamos esse modelo de gerenciamento – os comitês reguladores hoje são expressão dos interesses das empresas que privatizaram o setor. Nossa proposta é reverter o as privatizações no sistema elétrico. O que tem mantido as taxas altas é a pressão pela lucratividade no setor, e não o volume de recursos necessários para uma infraestrutura, para pensar em energia para o país.
ABr: Quais são seus planos para resolver gargalos de infraestrutura que persistem no país e afetam desde o escoamento da produção até a circulação de pessoas – como a construção de ferrovias, a manutenção de rodovias, a modernização do sistema portuário e a administração de aeroportos?
Iasi: O governo passado lançou mão do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que vinculava a política de investimentos às demandas mais imediatas, como vimos nos setores elétrico, de estradas, de armazenamento da safra e na estrutura de portos e aeroportos, em que se apostou na privatização. Como se os investimentos necessários à reativação de tais áreas estivessem necessariamente na iniciativa privada. É um quadro paradoxal, porque os concessionários privados presentes na infraestrutura atuam fundamentalmente com verbas públicas, que vêm do financiamento barato do governo, do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e, às vezes, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e de outras fontes públicas. [E eles acabam] investindo pouco recurso de fundos próprios.
Com esses recursos do Estado, seria possível executar um plano de revigoramento da infraestrutura brasileira sem necessidade de privatização do setor. Vemos isso como perda de controle, por parte do Estado, dos investimentos e da natureza desses investimentos. Muitas vezes, temos um grande volume de recursos investidos em uma certa região que atende aos interesses do agronegócio e pouquíssimos recursos aplicados em setores essenciais à produção, à viabilização dos assentamentos da reforma agrária e à mudança no perfil das cidades quanto à política de mobilidade.
As obras feitas até agora, tendo por pretexto os grandes eventos esportivos [Copa do Mundo e Jogos Olímpicos], favorecem as empreiteiras selecionadas – e, como sabemos, são poucas – e não um plano de revigoramento da infraestrutura brasileira. Também nessa área é urgente retomar o princípio do planejamento. Obras essenciais para a mobilidade pública são preteridas por outras que dão mais ganhos às empreiteiras. Um exemplo é o metrô de Salvador, com obras monumentais em vias públicas, viadutos e remodelamento de áreas da cidade, como a Barra, enquanto as obras do metrô, que são essenciais, ficam em um trecho de poucos quilômetros. A questão central na infraestrutura é a prioridade, que deve ser medido pela necessidade da população, e não das empreiteiras.
ABr: Diversos problemas relacionados à prestação de serviços pelas prefeituras [saneamento, fim dos lixões, pagamento do piso dos professores] têm ficado sem solução porque elas alegam falta de capacidade financeira ou de condições de produzir projetos executivos para participar dos programas do governo federal. Já os estados têm cobrado a renegociação das dívidas com a União e ajuda federal. Como o senhor pretende atuar na discussão do pacto federativo e quais são seus projetos para ajudar a solucionar essas questões?
Iasi: Uma das respostas dadas nas últimas décadas foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, que, de certa maneira, engessou a capacidade de prefeituras e estados oferecerem serviços. A LRF estrangula fundamentalmente o gasto com pessoal. Inicialmente pensada para equacionar o problema da rolagem frequente das dívidas, essa lei acabou gerando resultado inverso ao que se esperava quanto à capacidade de investimento. Ela força a formação de superávits e a manutenção do pagamento das dívidas no serviço financeiro, dos precatórios, sem resolver o problema dos investimentos e tornando municípios e estados extremamente dependentes das políticas do governo federal. Acaba sendo um problema menos econômico e mais político, porque as prefeituras dependem do governo estadual e este do federal. E é uma arma política nos períodos eleitorais. Para nós, a LRF não é um mecanismo de saneamento financeiro, nem de aumento da capacidade de investimento dos estados, mas uma arma política na mão do governo federal, de controle dos estados, no sentido da execução orçamentária.
ABr: O senhor pretende rever a lei?
Iasi: Isso precisa ser revertido. Não digo nem retomar o pacto federativo no Brasil, porque duvido que ele tenha existido algum dia com esse sentido. É necessário pensar, no âmbito de um planejamento federal, na execução de programas de saúde, educação, mobilidade urbana e destinação do lixo como programas nacionais a serem executados por meio de uma combinação intensa entre municípios, estados e Federação. E fazer, de fato, uma Federação é pensar que estados mais ricos terão de perder receita em relação àqueles que têm mais dificuldade. Isso é um mito no Brasil. Qualquer tipo de pacto federativo para valer, onde o recurso seja pensado como um todo e daí redirecionado é visto como um crime contra a economia de cada um dos estados, o que acaba aprofundando as desigualdades regionais que há tanto tempo combatemos.
ABr: O debate sobre a reforma política se arrasta há anos e, recentemente, foi aprovado um texto que ficou conhecido como minirreforma. Pontos como o voto facultativo, a reeleição e o financiamento de campanha não foram aprofundados devido ao impasse em torno dessas questões. Qual é a sua posição sobre cada um desses pontos, e como o chefe do Executivo pode contribuir para que essa discussão efetivamente avance, respeitando a prerrogativa de independência entre os Poderes?
Iasi: O PT – no seu texto programático de 2002, aprovado em encontro nacional – defendia a reforma política como pré-condição para as reformas que pretendia fazer. O fato de essa reforma não ter ocorrido em 12 anos demonstra que o PT se acomodou ao chamado presidencialismo de coalizão. Não temos esperança de que este Congresso faça uma reforma política séria, porque eles [deputados e senadores] são os primeiros a se beneficiar da sistemática atual. O que se expressou na minirreforma política é uma reforma cosmética. Pegando por pontos: não é alterando a forma do voto nominal ou do voto em lista, do voto proporcional ou do voto distrital, que vamos mudar a natureza dos problemas que foram denunciados e se manifestaram nos protestos do ano passado. São medidas absolutamente superficiais.
Não é à toa que questões como o financiamento de campanha e o voto facultativo ficaram fora dessa discussão e vão acabar tendo uma solução – se por acaso encontrarem uma – ainda que extremamente distorcida. Peguemos o financiamento privado de campanha. Posso proibir esse tipo de financiamento, restringir a questão ao financiamento público, mas, nos termos da minirreforma apresentada, isso é antecedido por uma draconiana legislação de organização partidária, que transformará os 30 e poucos partidos atuais em algo em torno de nove ou dez. Esses, sim, teriam financiamento público de campanha. Não é uma maneira de democratizar o acesso, e sim de concentrar ainda mais os recursos nas mãos de poucos partidos. Isso evidencia um flagrante conflito com o princípio da isonomia que a Constituição apregoa.
A reforma proposta é para tornar mais racional o presidencialismo de coalizão, não para tocar na sua raiz. É possível a presidenta, ou qualquer que seja o chefe do Executivo, apontar nesse sentido? É possível. Existem instrumentos constitucionais para isso. Uma assembleia constituinte exclusiva, eleita por critérios diferentes daqueles que hoje elegem o Congresso, poderia criar, em consonância com a vontade popular, um desenho diferente de estruturação política do país. O problema é que tanto o atual governo quanto as alternativas que se expressam na linha de frente no campo da ordem estão muito comprometidos com suas bancadas no Congresso, principalmente o PMDB. Enquanto tal dependência não for rompida – e ela só poderá ser rompida por uma constituinte direta, eleita em local de trabalho, pela própria população, sem a mediação dos esquemas que hoje deformam a democracia brasileira, como o poder econômico, o poder dos grandes partidos hoje no governo –, não haverá reforma política que altere na raiz aquilo que foi demandado pela população no ano passado: a democracia direta.
ABr: O Brasil é apontado como um dos países com maior carga tributária no mundo. No Congresso, tramita uma proposta de reforma tributária que pouco tem avançado. Quais os planos do seu governo para equacionar essa questão e minimizar o desgaste político que isso pode gerar?
Iasi: Ainda que seja grande, a carga tributária no Brasil não é uma das maiores do mundo. Pelo contrário, no ranking, é um país com pouca carga tributária. O problema não é o peso da carga tributária, mas onde ela incide. A maior parte dos tributos incide sobre o consumo. As grandes fortunas e o patrimônio são pouquíssimo taxados. Tratar o salário como renda, recolhendo previamente um tributo para ser devolvido no fim do ano, penaliza justamente aqueles que não podem reagir, o que resulta em uma série de mecanismos que podem levar à sonegação. A parte que vem dos trabalhadores assalariados é cerca de dez vezes maior do que a que vem dos bancos, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
É aí que se concentra a maior parte da contribuição dos bancos, setor que tem hoje faturamento exorbitante. E essa desigualdade na tributação gera as principais distorções que queremos combater. É possível combater isso sem enfrentar resistências? Tenho certeza de que não, porque as pessoas sempre pensam na reforma [tributária] com os dividendos eleitorais, do atendimento às demandas apresentadas pelos que financiam suas campanhas.
Se há um conjunto de empreiteiras, bancos e grandes empresas financiando campanhas, é evidente que não aceitarão mudanças que resultem em uma parcela maior do tributo para eles. É possível fazer uma reforma respeitando os princípios constitucionais vigentes, na medida em que você não se preocupe em ferir interesses privados. Se você não faz nada no Brasil para não ferir os interesses de quem financia sua campanha, a reforma tributária continuará no papel.
ABr: O Plano Nacional de Educação (PNE) é considerado uma grande conquista para o setor. Como o senhor pretende, em quatro anos, avançar nas pautas indicadas na lei, que compreendem desde a educação infantil à pós-graduação e incluem também melhorias na infraestrutura das escolas? Como pretende resolver a questão do financiamento?
Iasi: O Plano Nacional de Educação é um profundo retrocesso na educação pública, em vários aspectos, mas vamos apenas citar dois. Ele consagra o princípio pelo qual o Poder Público desvia recursos para o setor privado. Hoje temos um paradoxo em que o setor privado só existe no ensino superior, devido ao enorme subsídio do Poder Público por meio do ProUni [Programa Universidade para Todos], do Fies [Fundo de Financiamento Estudantil) e de outros instrumentos.
É um contrassenso o setor privado funcionar apenas pela garantia da sua lucratividade, por um pesado subsídio público. A educação tem que ser integralmente pública. Os princípios debatidos por aqueles que pensam a educação no Brasil – e podemos remeter isso até a década de 30, no Manifesto dos Pioneiros, com Anísio Teixeira e outros – incluem uma estrutura pública capaz de garantir qualidade e universalidade a essa educação. É o nosso grande desafio.
O PNE foi elaborado pelo setor privado do ensino, controlado por quatro ou cinco empresas, muitas delas profundamente vinculadas ao capital internacional, que formam um lobby poderoso das escolas privadas, e por institutos que dão a linha, inclusive metodológica e pedagógica, para a educação brasileira, como o Instituto Ayrton Senna, que tem poderosos interesses privados por trás, que se expressa, por exemplo, na entrega do ensino técnico ao Sistema S [formado pelo serviços Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Social do Comércio (Sesc), Social da Indústria (Sesi), Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e Social de Transporte (Sest)].
Isso é impensável para qualquer um que pense em um sistema público de ensino, principalmente em áreas importantes como a técnica e a tecnológica. Houve um encontro nacional de educação no Rio de Janeiro em que se fez um contraponto ao PNE, apontando a necessidade de financiamento 100% público e 100% dedicado à esfera pública, com uma proposta de ensino e aprendizagem que é negada nesse plano. No PNE, desaparece a relação ensino-aprendizado.
É um plano de adestramento, de desenvolvimento de aptidões e técnicas, voltado muito mais para os anseios e necessidades da camada empresarial, e não da formação crítica e reflexiva, de uma educação integral, politécnica. Uma integração que desenvolva o ser humano em todas as dimensões. Somos contra o PNE. E os movimentos sociais, os sindicatos, o Andes-Sindicato Nacional [Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior], o movimento em defesa da educação pública estão elaborando um contraponto a esse plano.
ABr: O Brasil tem registrado uma expansão da educação e da inclusão de crianças, jovens e adultos em todas as etapas de ensino. Ao mesmo tempo, há falhas no ensino que aparecem em avaliações nacionais, como a Prova Brasil, e internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Como garantir o acesso e ao mesmo tempo melhorar a qualidade?
Iasi: O Banco Mundial fez uma avaliação no Brasil, décadas atrás, e constatou o que já sabíamos: enormes contradições no sistema educacional quanto ao acesso e à qualidade. Isso gerou como propostas, desde os governos de Fernando Henrique Cardoso, e infelizmente não foi alterado nos 12 anos de governo petista, uma lógica pela qual se corrigem os índices, mas não a educação. Se é criado um programa de aprovação e progressão continuada, diminuem-se os índices de reprovação.
Quando se aumenta o acesso das crianças à escola, a malha escolar aumenta e caem os índices daqueles que estão fora da escola. Se você alfabetiza, diminui os índices de analfabetismo. Criticamos, há muito tempo, o fato de que essa forma de expansão, sem cuidar dos investimentos adequados, da qualidade, da metodologia, tem reduzido o número de analfabetos e aumentado do número de analfabetos funcionais. Aumenta-se a entrada das crianças na escola, mas aumenta-se também a evasão. Você aumenta o número de escolas, mas tem escolas superlotadas, com menor número de professores e salários baixos, como ocorre, por exemplo, com o ensino público no Rio de Janeiro. É uma realidade em que adequamos a política educacional às demandas e diretrizes do Banco Mundial.
E não usamos o acúmulo que temos no pensamento crítico, no pensamento pedagógico-educacional do país, muito rico e, em vários aspectos, referência para a América Latina e para o mundo, para pensar nosso sistema educacional. Fomos, servilmente, moldando a educação aos parâmetros do Banco Mundial. Daí, o sistema de avaliação, que é um sistema vazio, mede índices, e não qualidade de ensino. É o caminho na contramão do que outros países fizeram, apostando em maior investimento na educação. Aqui, o investimento em educação é pífio.
O movimento em defesa da escola pública lutava, no mínimo, por 10% [do PIB] para a educação. E o projeto apresentado pelo PNE remete o cumprimento dessa meta para daqui a 20 anos. Só para ter um dado: a Academia Brasileira de Ciências calcula que, apenas no setor da pesquisa e desenvolvimento da ciência, seriam necessários 2% em 20 anos para começar a resolver os problemas. Na educação brasileira, o problema é tanto de investimento quanto de concepção. Queremos romper com essa proposta de adequar a educação aos parâmetros do Banco Mundial. Se não fizermos isso, teremos uma fachada: melhora nos índices e piora sensível na qualidade da educação, que vai se refletindo cada vez mais em uma lógica geracional.
Cada geração ficará num patamar inferior ao da que veio antes. Há estudos na universidade brasileira sobre educação básica mostrando que, depois do reajuste feito buscando a produtividade nos índices, a produtividade ficou menor, se comparada com a forma como era feita a educação há duas décadas. É necessário mudar radicalmente de rumo, e não é na direção que o PNE aponta.
ABr: A Constituição Federal de 1988 estabeleceu prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas fossem identificadas e demarcadas. Passados 21 anos do fim desse prazo, pouco mais de 44% foram homologados. A falta de definição sobre essas áreas acaba sendo uma das principais causas do aumento de conflitos e da violência no campo. Como o senhor pretende resolver a questão da demarcação de terras indígenas?
Iasi: O atraso não foi por motivos técnicos, nem jurídicos. O que atrasou a demarcação foi o conflito com interesses econômicos de madeireiros, produtores de arroz, mineradores ou do próprio governo, quando pensamos, por exemplo, na construção de usinas hidrelétricas e na aprovação do uso daquele espaço para outros fins que não a demarcação. Essa lógica acabou criando um conflito que alcançou dimensões dramáticas, não apenas nos assassinatos de líderes indígenas, mas também na violência com que os grandes produtores rurais e madeireiros vêm se contrapondo à demarcação das terras. É uma situação dramática quanto à existência das nações indígenas em suas terras originárias.
No caso das nações indígenas, não se trata apenas do número de hectares, mas de toda uma dimensão cultural envolvida, que tem sido frequentemente desrespeitada. As questões indígena e fundiária não se resolvem de maneira isolada uma da outra. É preciso pensar a questão indígena no conjunto de uma profunda reforma agrária, de uma mudança da política fundiária e no princípio de respeito à autonomia dos povos. Ainda tratamos as nações indígenas sob a lógica da ditadura militar, que é de tutela. Ainda que, juridicamente, isso tenha mudado, que tenha sido modificado pela Constituição, na prática, ainda não nos relacionamos com as nações indígenas com a autonomia que elas merecem.
É preciso respeitar seus valores, sua história, suas terras ancestrais. A mudança de paradigma exige mudanças mais profundas que a mera demarcação. Ela remete diretamente à política fundiária e à reforma agrária, porque, senão demarcam-se terras e, no dia seguinte, haverá conflitos com os mesmos interesses que hoje tensionam e impedem a demarcação.
ABr: As grandes manifestações do ano passado, que começaram em São Paulo, trouxeram a reivindicação do passe livre no transporte público. É possível tornar essa reivindicação uma realidade? Como? Como o governo federal pode atuar para garantir melhorias na mobilidade urbana nos grandes centros?
Iasi: Na década de 80, houve várias experiências municipais de criação de empresas públicas de transporte, que mostraram resultados em algumas cidades. Em São Paulo e em outras capitais, já se ensaiavam experiências de passe livre – passes subsidiados de transporte integrado, de trens, metrôs e ônibus, ou tarifa zero, como foi pensado em alguns casos. Do ponto de vista da gestão e dos recursos, é perfeitamente possível.
Na passagem dos anos 80 para os anos 90, houve uma reversão brutal disso. As antigas concessionárias pressionaram e conseguiram reverter municipalizações feitas no início dos anos 80, sob o pretexto de que era mais barato. As empresas poderiam estabelecer uma tarifa social, desde que houvesse uma gestão tripartite: concessionário privado entraria com os recursos, a renovação da frota e os custos de operação; o Estado, com subsídios para manter as tarifas numa realidade social aceitável; e a população, que seria a terceira parte, vigiaria isso. Falhou. Não só porque o transporte coletivo tornou-se lucrativo para as empresas, por um método que é extremamente nocivo para a população. Como o empresário opera para ter lucro no setor de transportes? Não renovando a frota como devia, priorizando linhas nobres e retirando ônibus da periferia.
Ele faz isso achatando salário de funcionários, produzindo dupla função, como quando o próprio motorista cuida da catraca. Isso é nocivo tanto para os trabalhadores quanto para a população. Então, o Poder Público acabou subsidiando o setor, para que a taxa de lucro ficasse em patamares aceitáveis. Estudos mostram que os mesmos recursos aplicados pelo Poder Público poderiam garantir de imediato um sistema de transportes mais adequado às necessidades da população. É um tabu na gestão pública: o transporte custa dinheiro e o governo tem que desembolsar. Não é custo, é um gasto necessário a ser computado entre os gastos do Poder Público. Existem linhas que não dão lucro, mas são essenciais para a mobilidade urbana, serviços em que é necessária a renovação para manter a qualidade e que envolvem investimentos que não existe sem financiamento público.
Por que o financiamento público não pode ir para um setor tão importante? Porque está comprometido com o serviço da dívida e estrangulado pela LRF. Se é um programa essencial e se é um direito, ele poderia ser feito – e aí não há como realizá-lo sem maior intervenção do Poder Público federal. Não se pode acreditar que os diferentes municípios garantam a homogeneidade de tal serviço apenas com recursos próprios. É aí que o pacto federativo deve funcionar de maneira incisiva. Os estados que têm mais condições podem garantir para seus municípios. E o poder federal precisa complementar para garantir um serviço que deve ser gratuito, pois é um direito, e não um serviço a ser vendido no mercado para dar lucro a um setor privado ou outro.
ABr: As unidades básicas de saúde desempenham papel central na garantia de acesso à saúde. Dotar essas unidades de infraestrutura adequada e de profissionais suficientes é um desafio para o país, que tem hoje 5.570 municípios. Como garantir a manutenção de um sistema de saúde público, universal e gratuito e enfrentar esses gargalos? Como suprir a falta de médicos nas regiões mais isoladas?
Iasi: Aí, o planejamento também faz muita falta, porque houve um processo intenso de privatização no setor de saúde. Um princípio, a nosso ver, incorreto, em que parte da população pode e deve conseguir acesso aos bens e serviços do setor pela via do mercado, por planos de saúde. Isso, na suposição inicial, levaria o Estado a concentrar recursos onde eles são mais necessários, tornando a saúde pública [um serviço] de qualidade. As duas coisas estão falhando.
Nem o setor privado oferece um bom serviço. São campeões de reclamação por parte dos usuários, os planos são caros, não cobrem o que prometem e mudam frequentemente a rede conveniada, criando uma situação de insegurança entre o momento em que se faz o plano e quando se vai usá-lo. Sem contar com cláusulas que acabam sendo impeditivas. Para ser lucrativos, os planos só querem pegar uma faixa etária, que tira as crianças e os idosos, e cobrar preços exorbitantes, quando se quer incluir essas faixas no plano. Enquanto isso, o setor público também carece de infraestrutura, de médicos e outros profissionais. E está sofrendo uma privatização, na medida em que o poder, para fugir da LRF, tem jogado os contratos de execução de serviços de saúde para organizações sociais (OS) e fundações. Isso gerou um caos na saúde.
Temos uma tradição, que é a reforma sanitária, o movimento sanitarista, que pode pensar programas e projetos integrados de saúde, que comecem por redefinir a própria concepção da relação entre saúde e doença. Hoje a medicina é totalmente voltada para métodos curativos: espera-se o problema ocorrer para tratá-lo nas redes conveniadas privatizadas ou públicas. É preciso mudar essa concepção e ter uma política de saúde preventiva, pensar a saúde a partir de vetores como saneamento básico e educação, que é a raiz da proposta do movimento sanitário.
O SUS [Sistema Único de Saúde] é só uma consequência disso. Ele foi praticamente transformado no único elemento da reforma da política sanitária e hoje está descaracterizado por uma privatização, terceirização ou quarteirização. O que acontece com as OS é que elas recebem verbas vultosas do Poder Público, o que já seria uma terceirização, e acabam sendo intermediárias de empreiteiras que contratam força de trabalho em vários setores, gerando aí a quarteirização. Isso acaba quebrando qualquer possibilidade de uma política consistente de saúde.
Mais uma vez, apelamos para um estudo que levasse em conta o volume de recursos gastos para manter isso. E, mesmo que o volume de recursos ainda seja menor do que o necessário, já seria suficiente. Uma vez aplicado no setor público, com uma estrutura em que as pessoas sejam atendidas gratuitamente onde e quando precisam, teríamos um serviço de saúde público, universal e estatal. E se eliminaria a dependência do setor privado de subvenções para acabar prestando um péssimo serviço. Há exemplo disso não apenas em países socialistas, mas também no Canadá, na França e na Inglaterra. Quando se comparam os sistemas, vemos que é possível, embora custe dinheiro. Tem que ter recursos. Isso não é feito para que 43% do nosso orçamento sejam gastos com serviço da dívida, por exemplo, nem para que um volume considerável seja desviado tanto para o setor financeiro quanto para empreiteiras, ou em forma de subsídios para o agronegócio, que são setores econômicos altamente lucrativos e não precisariam de subsídio do Estado.
É uma grande contradição que setores públicos essenciais não tenham o recurso necessário para se viabilizar. Na verdade, interessa não viabilizá-los, de modo a gerar uma demanda para que grandes corporações privadas usem isso como mercado. Também não nos espanta que, na lista dos financiadores de campanha, apareçam grupos de medicina privada. Eles têm um lobby para definir a política de saúde no Brasil.