Jean: o ex-deputado federal do Psol afirma que não deixou o país por causa da eleição de Bolsonaro (Lea Fauth/neues deutschland/ Agência Pública/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 23 de fevereiro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 23 de fevereiro de 2019 às 08h00.
Em entrevista exclusiva ao jornal alemão neues deutschland em parceria com a Pública, o ex-deputado federal do Psol Jean Wyllys afirma que não deixou o país por causa da eleição de Bolsonaro, mas porque seu governo tem tratado a oposição como inimigos: “Se ele tivesse sido eleito e fosse um homem que respeitasse a democracia e tratasse os derrotados como oposição política, eu permaneceria”.
Diz ainda que as instituições democráticas como o Ministério Público, a Polícia Federal e o próprio Judiciário tinham instrumentos legais para conter as ameaças e difamações que recebia – e continua recebendo – mas foram omissas.
“Moro teve o cinismo de dizer que uma única pessoa que me ameaçava e que foi presa, o Estado prendeu a partir de investigações sobre as ameaças de morte contra mim. É mentira. Se você tiver acesso à documentação da prisão desse sujeito, você vai ver que meu caso não é citado em nenhum momento. Ele não foi preso por esse motivo.”
Você falou que recebe ameaças há muito tempo. Mas foi logo depois da posse do Bolsonaro que você decidiu sair do país…
Eu não saí necessariamente porque Bolsonaro venceu as eleições. Tanto é que o pedido de medida cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos foi anterior à eleição dele. A minha saída foi por causa de ameaças de morte que se intensificaram após o impeachment da Dilma e, de maneira muito grave, durante o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro. Bolsonaro me envolvia.
Ele inventou a história de que eu havia criado um kit gay como deputado federal e que eu seria ministro da Educação do governo Haddad. E esse kit gay seria distribuído nas escolas do país ensinando as crianças a serem lésbicas e gays. Também seria distribuída nas creches uma mamadeira com pênis na ponta. E essa foi a plataforma de governo que esse sujeito apresentou.
Se a maioria da população vota nesse sujeito por causa dessa mentira é porque a maioria da população acredita nessa mentira ou quer acreditar nessa mentira. Pode achar que é mentira, supor que é mentira, mas decidiu dizer que é verdade porque odeia ver um homossexual numa posição de poder. Então, já que o candidato à Presidência dizia isso publicamente, as pessoas se sentiram autorizadas a dizer também.
Mais do que isso, as pessoas se sentiram autorizadas a usar a violência física contra outras. Eu não pude fazer campanha durante o processo eleitoral porque estava ameaçado, porque em todos os lugares onde eu ia fazer campanha eu era insultado e ameaçado e eu estava com uma escolta com três homens da Polícia Legislativa, que garantia a minha segurança física, e ainda assim as pessoas se sentiam livres para me insultar e me chamar de pedófilo, dizer que eu era um maldito, que Bolsonaro iria vencer as eleições e que eu iria morrer.
Então, a minha saída não tem necessariamente a ver com a eleição dele porque, se ele tivesse sido eleito e fosse um homem que respeitasse a democracia e tratasse os derrotados como oposição política, eu permaneceria. A questão é que ele e o seu governo não têm tratado a oposição como oposição, mas como inimigos.
Têm criado meios para criminalizar os movimentos sociais que vão fazer oposição ao seu governo e criado meios de fazer com que a polícia elimine a oposição. Enfim, não foi necessariamente por causa da eleição do Bolsonaro, mas a eleição do Bolsonaro e o processo eleitoral em que ele estava, do qual ele saiu vitorioso, aumentaram o nível de violência política no país.
E as informações que a imprensa divulgou de que a família Bolsonaro tinha ligações estreitas com as milícias que executaram Marielle Franco. Tudo isso fez com que eu decidisse não voltar para o Congresso.
As primeiras ameaças de morte já surgiram no meu primeiro mandato [em 2010] e durante um tempo eu pensei que elas tinham somente a intenção de me intimidar e de me calar. Eu tratava dessa maneira até que em 14 de março do ano passado minha companheira de partido Marielle Franco foi executada de maneira bárbara.
E isso deu a mim e aos meus companheiros a noção de que as ameaças não eram uma brincadeira, ou seja, só uma forma de intimidação. As ameaças vinham pelo telefone do escritório onde trabalhava, chegavam pelos e-mails institucionais e pessoais e pelas redes sociais.
E, além das ameaças, também desde o primeiro ano de mandato, eu sou alvo de uma campanha orquestrada de difamação.
Qual era o objetivo dessa campanha?
Quando você mente reiteradamente, quando você calunia reiteradamente de maneira orquestrada por diferentes perfis falsos e perfis verdadeiros de figuras públicas, quando você diz que um deputado homossexual assumido é pedófilo ou defende a pedofilia, você o converte no “Inimigo Público”, em alguém a ser abatido, em alguém a ser morto.
Meu mandato se ocupava em propor projetos de lei para defender direitos, sobretudo direitos de minorias oprimidas. Mas também se ocupava de se defender o tempo inteiro desses ataques e de defender a comunidade LGBT. Porque o ataque a mim como representante dessa comunidade era também um ataque à comunidade LGBT.
Quem ameaçou você?
Esses ataques não vinham só de perfis falsos robôs. Eram perfis de pessoas públicas como pastores evangélicos e fundamentalistas religiosos. Eu vou dizer um nome de um deles: Silas Malafaia. Um dos principais inimigos da comunidade LGBT e um dos maiores difamadores da comunidade LGBT. E os perfis da família Bolsonaro.
Bolsonaro era deputado federal há muitos anos quando me tornei deputado federal. E seu discurso de ódio conseguiu colocar seus três filhos no Parlamento. Então, numa única família tinha três pessoas na institucionalidade, utilizando a institucionalidade para difamar alguém. Que era eu.
Era todo um movimento que me convertia em um inimigo público através de mentiras, com a complacência e a negligência das instituições democráticas que deveriam coibir de alguma maneira esse discurso de ódio e essas fake news. Há uma distinção muito clara entre liberdade de expressão e você utilizar a liberdade de expressão para mentir, caluniar e difamar.
O Código Penal brasileiro institui os crimes de injúria, calúnia e difamação. Então, havia um instrumento legal para as instituições democráticas como o Ministério Público, a Polícia Federal e o próprio Judiciário conterem essa avalanche de mentiras e as ameaças.
Mas as instituições não fizeram nada. Porque há uma homofobia social e uma homofobia institucional que fazem com que a vida de uma pessoa LGBT, mesmo que eleita popularmente com muitos votos, não valha nada. Minha vida não valia nada.
Eu enfrentei tudo isso durante muitos anos criando minhas próprias estratégias de defesa, que não surtiram efeito, que não conseguiram conter a avalanche de perfis que me atacavam.
Quando aconteceu o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que foi deposta do seu cargo também por uma mentira – acusaram a Dilma de ter praticado um crime que não existe, o crime de responsabilidade [fiscal] –, eu assumi muito a defesa do governo Dilma como a defesa da democracia, do jogo democrático.
A Dilma venceu as eleições e quem deveria tirá-la do governo eram novas eleições, e não um impeachment baseado em mentira. Ademais os ataques a Dilma eram todos ataques misóginos e machistas. Eu assumi muito claramente a defesa do mandato dela mesmo não sendo do mesmo partido. E isso fez com que a avalanche de ataques só aumentasse.
Então havia dois motivos agora: o fato de eu ser gay e apresentar uma agenda em favor da comunidade LGBT e de outras minorias e propor, por exemplo, o casamento civil igualitário, que foi uma conquista do nosso mandato, e um ódio por defender o governo Dilma.
Acha que sua saída é uma vitória da direita? Porque conseguiram te calar?
Eles acham que conseguiram me calar. Mas a minha saída foi para continuar vivo, porque as causas não precisam de um mártir. Eu pouco poderia fazer se estivesse morto. Aí, sim, teria acabado. Eu pouco poderia fazer se ele inventasse uma história para me prender como eles fizeram com o Lula.
Aqui fora eu posso continuar sendo uma voz. Então não foi necessariamente uma vitória deles nesse sentido. Fui eu que dei um xeque-mate neles no momento em que eles achavam que estavam com o jogo ganho. Me retirei e ao me retirar dei um recado político ao mundo.
O Ministério da Justiça publicou uma nota dizendo que não é verdade que foi omisso nas investigações, como o documento da Comissão Internacional de Direitos Humanos falou. O que você acha disso?
É uma mentira. Eles foram omissos. Porque no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi pedida a medida cautelar e o governo não fez nada. Ignorou completamente a medida cautelar, e Moro teve o cinismo de dizer que uma única pessoa que me ameaçava e que foi presa, o Estado prendeu a partir de investigações sobre as ameaças de morte contra mim.
É mentira. Se você tiver acesso à documentação da prisão desse sujeito, você vai ver que meu caso não é citado em nenhum momento. Ele não foi preso por esse motivo.
Havia novas ameaças?
Desde que eu anunciei minha saída, novas ameaças foram colocadas em circulação contra minha família. Nós já acionamos a Polícia Federal dizendo que eu posso estar protegido aqui, mas minha família não está. Ameaçaram que vão matar os meus irmãos e minha mãe, que vão cortar suas cabeças. Por telefone e por e-mail.
O partido já tomou providências de comunicar ao Ministro da Justiça e dizer que qualquer coisa que aconteça à minha família eles serão responsabilizados por isso. Além das novas ameaças, novas fake news foram publicadas, dizendo que eu tenho ligação com um sujeito que atentou contra Bolsonaro durante a campanha, que ele seria meu namorado e que por isso saí do país.
Que eu teria dado uma fraude financeira e que por isso eu saí do país. Ou seja, calúnias, mentiras, nada que se prove. Mas parte dos brasileiros está numa espécie de histeria coletiva, num surto de estupidez que acredita em qualquer coisa que aparece em seus aparelhos celulares no WhatsApp.
No dia em que você publicou a nota de saída, o Jair Bolsonaro escreveu “grande dia” no Twitter, enquanto o vice, Hamilton Mourão, lamentou sua saída e escreveu que era um “crime contra a democracia”. O que você acha dessas duas posições tão diferentes?
Nós chegamos num ponto, no Brasil, em que estamos considerando um general como Mourão, com histórico de extrema direita, como moderado. A que ponto chegamos? Porque Mourão é um militar da extrema direita. Mas ele ainda consegue ser minimamente moderado e lúcido diante do sujeito que hoje é presidente da República. Ele comemorou a saída de um deputado por conta de ameaças de morte.
Um presidente deve cuidar da população do seu país. Depois de eleito, ele é responsável pela população de todo o país. Mas esse sujeito não age como presidente da República, ele continua como se tivesse na campanha tratando os 40 milhões de pessoas que não votaram nele, como eu, como inimigos. Com esse tweet ele confirmou minha decisão, só me deu razão de que de fato o Brasil não era mais seguro pra mim.
Na Europa há uma extrema direita forte também. Você vê uma associação da direita brasileira e da europeia?
Não sei se é uma associação clara. De alguma maneira, há um diálogo entre a extrema direita no mundo todo. Mas há uma diferença em viver no Brasil, em que a extrema direita triunfou e as instituições democráticas não estão como tal e onde há uma homofobia social, e viver em uma cidade como Berlim, em que a diversidade é aceita e a comunidade LGBT pode existir sem ameaças – pelo menos sem ameaça evidente. Não sei de nenhuma pessoa LGBT que foi assassinada aqui.
Mas aqui há ameaças e ataques também.
Mas qual é a resposta do Estado para esses ataques?
Geralmente criminalização.
Isso, criminalização é uma resposta eficaz de identificação e uma proclamação que as pessoas LGBT são cidadãs alemãs e que têm que ser respeitadas.
Isso não passa no Brasil. Aí é a diferença. Há possibilidade de ser atacado, mas muito menor do que no meu país.
Você já teve algum retorno de novos andamentos das investigações das ameaças que você recebeu?
Não, nenhum. Depois que saí, vieram novas ameaças e dessa vez a gente comunicou diretamente ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, que havia dito que não teve negligência do Estado. Então mostramos para ele que bastou eu sair para que uma nova ameaça fosse feita – ignorando inclusive a fala dele –, dizendo que eu estava protegido, mas minha família não estava, e que matariam minha mãe e meus irmãos.
A gente não sabe qual é o andamento que o governo tem dado em relação a isso. Mas a Comissão Interamericana pediu novo relatório, e no Brasil é produzido um relatório para que a gente possa entregar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Você falou muito sobre ameaças sendo feitas na internet. Há pessoas dizendo que existe uma diferença entre ameaças na internet e violência real. O que você acha disso?
O que posso dizer sobre isso é sobre o assassinato de 12 meninas na Escola Tasso da Silveira, em Realengo, em 2011. O sujeito fazia ameaças na internet, pertencia a um site que estimulava o assassinato de mulheres, estupro corretivo de lésbicas, a violência contra negros e o meu assassinato.
O sujeito que frequentava esse site comprou uma arma, fez cursos de tiro e matou 12 meninas. É isso que tenho que falar às pessoas que acham que ameaça na internet não se concretiza. O cara que jogou carro contra pedestres em Barcelona, também fazia ameaças pela internet.
E o cara que fez o atentado no Canadá teve relações com um brasileiro que me ameaçou de morte. Só alguém que não preza pela vida pode dizer que ameaça na internet é diferente de ameaça real.
Como é para você estar aqui enquanto seus companheiros estão no Brasil lutando?
Tem uma tristeza de estar longe forçadamente do meu país, de não estar produzindo o que deveria produzir como deputado. Não por vontade própria, mas porque fui impedido de fazer isso.
A notícia sobre Brumadinho me abateu profundamente. Eu chorei uma noite inteira vendo aqueles corpos cobertos de lama por pura negligência de uma empresa que foi privatizada com discurso que funcionaria bem. Outra notícia que me entristeceu foi a chacina no Rio de Janeiro. O nosso país está vivendo o pior momento.
*Este conteúdo foi publicado originalmente na Agência Pública.