"Feminicídio é crime de ódio, não de amor", alerta promotora de SP
Feminicídio corresponde a 27% do total de homicídios dolosos de mulheres no estado de São Paulo, que somaram 548 casos em 2018
Agência Brasil
Publicado em 28 de fevereiro de 2019 às 09h02.
As mortes qualificadas como feminicídio em São Paulo aumentaram 12,9% em 2018 na comparação com o ano anterior, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo. Foram registrados 148 assassinatos no ano passado e 131 em 2017. O homicídio qualificado como feminicídio foi definido pela Lei nº 13.104 de 2015, que estabelece penas maiores para os casos em que o assassinato é motivado pelo fato da vítima ser mulher.
O feminicídio corresponde a 27% do total de homicídios dolosos de mulheres no estado de São Paulo, que somaram 548 casos em 2018. Desde que a lei foi instituída, a morte de mulheres por feminicídio tem aumentado.
Para a promotora Valéria Scarance, que coordena o Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), embora seja negativo o aumento da morte de mulheres, o enquadramento dessas mortes como feminicídio é um dado positivo, pois demonstra que a lei vem sendo incorporada pelos órgãos públicos.
"Nesse contexto de morte violenta de mulheres, o número de fatos enquadrados como feminicídio também aumentou. Ou seja, o número de mortes é um número absoluto, mas o número de feminicídio é variável porque depende da interpretação que se dá no momento de registro da ocorrência. Aumentar esses números é um aspecto positivo e que revela envolvimento e conscientização por parte das autoridades", avaliou a promotora.
De acordo com o Anuário de Segurança de 2018, com dados de 2017, as mortes de mulheres vítimas de violência cresceram 5,9%. Antes da qualificação do homicídio em situação de violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, não era possível sistematizar esses dados.
"Isso é muito importante para possibilitar a criação de políticas públicas e medidas de prevenção", afirmou a defensora pública Paula Sant'Anna Machado, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres.
Segundo a promotora Valéri Scarance, a informação gerada a partir da lei promove avanços importantes para enfrentar o problema. "Muitas pessoas nem sequer sabiam o que era feminicídio. Era uma categoria desconhecida no Brasil e ainda pairava a ideia de que era violência entre marido e mulher, que não justificava essa lei. Depois de três anos, não se discute mais a necessidade dela. A população conhece a lei, e as vítimas sabem o que é o sistema de Justiça também", argumentou a promotora.
Raio-X
A pesquisa Raio-X do Feminicídio, elaborada pelo Núcleo de Gênero do MP-SP, com base nas denúncias oferecidas pelo órgão entre março de 2016 e 2017, traça um perfil dos casos ocorridos no estado. Dos 364 casos analisados, em 66% deles, o ataque ocorreu dentro da casa da mulher e mais de 8% dos casos estavam relacionados à rotina da vítima, como local de trabalho ou o caminho percorrido. "O feminicida pratica os crimes se prevalecendo do fato de que ele conhece a rotina da mulher e encurrala as mulheres em lugares em que a defesa é mais difícil. Esse é o padrão", disse a promotora.
Foi o que ocorreu com a enfermeira Fernanda Sante Limeira, morta a tiros, aos 35 anos, pelo ex-marido na porta de Unidade Básica de Saúde em que trabalhava em São Paulo, em 2016. "Ele nunca aceitou a separação. Ela continuou a vida dela, trabalhando, estudando, cuidando da filha. Ele queria a guarda da menina a qualquer custo e sempre fazia coisas para afetar a Fernanda", relatou Dalva Limeira, tia de Fernanda, à Agência Brasil.
Na época, a enfermeira denunciou as ameaças que sofria, mas, mesmo assim, teve um pedido de medida protetiva negado pela Justiça um mês antes da morte. Segundo o levantamento do MP-SP, quando essas medidas são concedidas, elas ajudam a evitar os assassinatos. "Dos 364 casos analisados, considerando mortes consumadas ou tentadas, só 3% das mulheres tinham medida protetiva, ou seja, 97% dessas mulheres não romperam o silêncio ou não obtiveram a medida", disse a promotora.
De 124 mortes, cinco mulheres tinham registrado boletim de ocorrência. "Eu acho que com tudo que a Fernanda apresentou, todos os processos, todas as vezes que a Fernanda depôs, todos os relatos que tem [tinha como evitar essa morte]. Com todas essas informações, a Justiça tinha que ter cuidado mais da Fernanda. O único recurso que ela tinha era a Justiça. Foi feita muita coisa. Infelizmente, o Estado falhou com a Fernanda", disse a promotora.
Quase três anos após a morte da enfermeira, a família aguarda para os dias 16 e 17 de maio o julgamento de Ismael Praxedes, que foi detido em flagrante e está preso desde então.
A defensora pública destaca que, junto com as medidas protetivas, são necessárias políticas públicas de apoio a essas mulheres. "É preciso ter auxílio aluguel, abrigos sigilosos, apoio multidisciplinar. Se essas políticas não existem, o Estado empurra novamente essa mulher para a violência", afirmou.
Ela critica, por exemplo, o fato de que muitas vezes as mulheres que buscam ajuda são culpabilizadas. "A educação é uma das ferramentas mais importantes. Precisamos discutir gênero e que essa discriminação é estrutural na nossa sociedade", avaliou.
Amor?
A promotora Valéria Scarence disse que, a partir dos dados do MP-SP, o feminicídio se mostra muito mais como atos de ódio do que de amor. Ainda é comum que se referiam a esses casos como "crime passional". "O que motiva esses homens não é um sentimento de amor, mas de propriedade e um ódio por terem sido abandonados ou contrariados", criticou.
A pesquisa mostra que os feminicidas usam dois ou mais instrumentos para a prática do crime, sendo que 60% utilizam arma branca (faca, facão, foice).
"Eles praticam o crime com muito ódio, com muita raiva, então, porque nós dizemos que são atos de extermínio, porque há repetição de golpes, não é simplesmente uma morte, é uma morte com dor", afirmou a promotora. Ela cita casos em que as mulheres são mortas com dezenas de facadas, queimadas ou asfixiadas. "Em regra, é o machismo que determina a morte dessas mulheres e a conduta desses homens", avaliou.