A nova lei de cotas: o segundo round de uma revolução nada silenciosa
OPINIÃO | É importante destacar que essa política de ação afirmativa, após uma década de existência, goza de uma avaliação altamente positiva
Colunista
Publicado em 11 de dezembro de 2023 às 11h37.
A aprovação e a sanção da nova lei de cotas, Lei 14.723/23 , escrita por mim, na condição de relatora da matéria na Câmara dos Deputados, e pelo senador Paulo Paim, no Senado Federal, só foi possível após muito diálogo e um importante debate público que, ao longo de todo este ano, reuniu sociedade civil, movimentos sociais, universidades, governo e o Congresso Nacional.
Fruto de um intenso debate que mobilizou a sociedade brasileira por décadas, a originária “Lei de Cotas”, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em 2012, se tornou uma das mais significativas inflexões para as políticas educacionais no ensino superior no país. Sua implementação foi o reconhecimento da narrativa histórica, defendida pelo movimento negro, de que o Brasil é um país estruturalmente racista e desigual e que era preciso criar mecanismos para avançar em direção a uma sociedade igualitária. Em seu texto, a lei determinou que as universidades e institutos federais destinassem metade de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas, com aplicação de reserva destinada a negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e com recorte de renda. O texto também previa, depois de dez anos, a realização de uma revisão da lei.
Com a responsabilidade e o compromisso exigidos por essa tarefa de aperfeiçoamento da política de cotas, assumi com centralidade a articulação da construção desse processo de revisão da lei dentro do Parlamento Brasileiro. Após 10 meses de muito trabalho e luta, conquistamos o entendimento favorável da maioria das Casas à ampliação e ao aperfeiçoamento da política de cotas para acesso no ensino superior público federal.
Entre as alterações que a nova lei promove, estão a redução da renda familiar per capita de um salário mínimo e meio, em média, por pessoa da família para um salário mínimo per capita, permitindo assim que estudantes ainda mais pobres também possam acessar a Universidade; a mudança no mecanismo de ingresso dos cotistas, permitindo que esses estudantes possam disputar primeiro às vagas destinadas à ampla concorrência, caso sua nota permita; a garantia das cotas nos programas de mestrado e doutorado, a inclusão, pela primeira vez, de estudantes quilombolas como beneficiários e a prioridade aos estudantes cotistas de baixa renda aos programas de assistência estudantil. A nova lei mantém a necessidade de um processo avaliativo a cada dez anos e implementa ciclos anuais de monitoramento.
É importante destacar que essa política de ação afirmativa, após uma década de existência, goza de uma avaliação altamente positiva. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação, apontam que, entre 2012 e 2022, mais de 1,1 milhão de estudantes ingressaram no ensino superior público federal por meio da Lei de Cotas.
Ao desagregar este dado e tomando por base o ano de 2019, isto é, o ano anterior ao início da pandemia da Covid-19, identificou-se que o número de estudantes pretos, pardos ou indígenas que ingressaram no ensino superior público foi de 55.122 cotistas. Sem a política de cotas, esse número seria de 19.744. A mesma pesquisa mostra também que, ainda em 2019, 45.640 matrículas de estudantes pobres foram realizadas. Se as cotas não existissem, esse número seria de 19.430 estudantes pobres matriculados. Assim como a garantia de ingresso para pessoas com deficiência: 6.801 pessoas com deficiência ingressaram nas universidades federais em 2019. Sem as cotas, esse total seria de aviltantes 66 pessoas. Ou seja, no Brasil, as cotas produzem uma revolução nada silenciosa.
As Universidades brasileiras, em especial as instituições públicas federais, sempre refletiram as desigualdades econômicas e sociais, que permearam a sociedade brasileira, ao longo da nossa história. Somos um país marcado pela experiência nefasta e criminosa da escravidão, do racismo, da desigualdade social, das intensivas relações de exploração e do abismo que insiste em separar regiões, ricos e pobres, brancos e não brancos.
A luta pela desnaturalização deste processo histórico é o que dá sentido às ações afirmativas e que confere legitimidade na sua aplicação na nova dinâmica de acesso aos bancos universitários. As cotas contribuem e muito para a redução das desigualdades socioeconômicas, para o combate ao capacitismo e ao racismo, e o faz sem prejudicar a qualidade do ensino superior no país, um argumento falacioso defendido pelos seus detratores e já desmontando.
As cotas são extremamente necessárias para a consolidação de uma sociedade que ousa aperfeiçoar a sua democracia. O que está em jogo é a construção de um novíssimo contrato social, que compreende e aposta na Educação como o caminho para um enfrentamento qualificado das desigualdades e discriminações que assolam o país. As cotas são uma aposta certeira para acelerar a construção de um novo futuro de igualdade e justiça social e a longa batalha contra o racismo no país.