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É hora de agir

O que o governo e os empresários precisam fazer para o Brasil não perder o bonde do software

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 12h25.

Políticas oficiais na área de tecnologia podem ser um desastre, como o Brasil aprendeu com a reserva de mercado dos anos 80. A proibição de importações não falhou apenas na missão de criar uma indústria nacional forte. Todos os setores da economia foram prejudicados -- computadores são essenciais para a competitividade de mineradoras, fábricas de sabonetes ou supermercados. A reserva foi um caso claro em que a ajuda oficial só serviu para atrapalhar.

Mas isso não quer dizer que o governo não tenha o que fazer. Nem que a própria indústria de software esteja madura e não possa melhorar em vários pontos. Ao contrário. Em conversas com empresários, investidores, especialistas e com os próprios integrantes do governo, EXAME reuniu as principais ações que o governo e o setor devem tomar. Não se trata de reeditar o protecionismo da era em que imperava a finada Secretaria Especial de Informática (SEI), como sugerem alguns, nem de política industrial. Da parte do governo, são necessárias medidas pontuais -- algumas óbvias, outras nem tanto. Da parte dos empreendedores, uma mudança de atitude e de foco, tão essencial para quem quer deixar de olhar para o próprio umbigo e se abrir para o mundo.

Um plano de negócios para o país Diante dos números de exportação alcançados pela Índia, a resposta da grande maioria dos entrevistados por EXAME foi unânime: só chegaremos perto disso se houver estratégia. "É preciso criar um projeto nacional para impulsionar o desenvolvimento dessa indústria da mesma forma como foi feito com a aeronáutica e a agricultura", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp e um dos responsáveis, quando presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo salto brasileiro na área da genômica. "Se o governo não criasse o ITA, não teríamos a Embraer. O poder atual da agricultura brasileira também deve muito à Embrapa." Como resume o advogado americano Stephen Davidson, especializado em assessorar empresas que querem entrar nos Estados Unidos: "O Brasil precisa de um plano de negócios".

Anualmente são formados cerca de 25 000 brasileiros capacitados para a área de tecnologia -- mais ou menos o que forma só a região de Bangalore, na Índia, país que a cada ano conta com 220 000 novos engenheiros de software e cientistas da computação. Além da tradição de um país ligado à matemática (o número zero foi criado pelos indianos), houve um grande esforço do governo indiano em criar uma reputação de alta qualidade para seus produtos. A Índia é o país com o maior número de empresas com certificações CMM nível 5, uma das mais importantes para as empresas que vendem serviços de programação. Nem mesmo nos Estados Unidos há tantas empresas com esse selo de qualidade. "Os indianos têm a reputação de ser ótimos programadores", diz Davidson. "É preciso criar reconhecimento semelhante para o Brasil, uma marca para o país."

Sempre que questionados, representantes do governo brasileiro afirmam que a tecnologia da informação é um setor estratégico. "Não dá para pensar em desenvolvimento industrial, da ciência, da educação ou de qualquer outra área sem base na informática", disse a EXAME o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral. Mas declarações do próprio ministro ainda revelam quão titubeantes são as autoridades brasileiras ao lidar com o tema: "Não queremos trabalhar a área de software apartada da microeletrônica", diz Amaral. "Precisamos avançar na produção de chips." A frase de Amaral, além de repetir a mesma confusão entre software, hardware e serviços que se fazia na época da reserva de mercado, deixa de lado todas as áreas em que hoje o país já é competitivo (como mostra a reportagem anterior). Para falar sobre o assunto, por sinal, ninguém melhor que o americano Craig Barrett, presidente mundial da Intel, a maior fabricante de chips do planeta. Barrett, que já foi obrigado a instalar uma fábrica na Costa Rica em vez de no Brasil, por falta de interesse do governo, foi categórico em entrevista a EXAME: "Essa janela de oportunidades já passou. Vocês têm agora de se concentrar em software e serviços".

Apesar dos vacilos nas declarações oficiais, isso não quer dizer que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteja paralisado em relação ao assunto (embora muitas vezes transmita exatamente essa impressão). Francelino Grando, responsável pela Secretaria de Política de Informática (Sepin), faz algumas afirmações vagas sobre as medidas que o governo pode tomar para promover a marca Brasil, como o envio de uma missão de empresas aos Estados Unidos, previsto para setembro. Grando também promete dar foco à exportação de software e à formação de recursos, embora não detalhe como.

Para tornar o Brasil uma marca em software, porém, não basta ter dinheiro. "A gente precisa é de informação", diz Paulo Sahd, presidente da empresa de software de automação comercial RMS. "A estrutura diplomática do governo poderia ajudar nesse aspecto." Um caso típico de omissão é o da Stefanini, empresa de consultoria tecnológica que mantém funcionários em seis países estrangeiros. "Passamos dois anos e meio batendo de porta em porta até saírem os primeiros contratos", afirma Bruno Mondin, diretor de negócios da Stefanini. De acordo com ele, uma empresa brasileira de tecnologia não precisa apresentar apenas a si própria mas também o Brasil. E há poucas que se podem permitir esse tipo de investimento, pois cerca de 82% das empresas do setor são pequenos negócios. "Já mobilizamos nossas representações em Washington, Boston, Los Angeles e Bruxelas para identificar oportunidades e promover nossos destaques, como a eleição eletrônica e as declarações do imposto de renda", afirma o secretário Grando.

Isso não significa necessariamente que o governo deva entrar em ação e investir rios de dinheiro em marketing. Outra opção para as empresas seria associar-se a parceiros já estabelecidos no exterior. "Ninguém compra software porque parte do desenvolvimento acontece na Índia", diz Davidson. "Compra-se Microsoft, Oracle, IBM." Segundo Fernando Nery, fundador e presidente do conselho da Módulo e-Security, empresa especializada em consultoria de segurança, trabalhar com parceiros estrangeiros é um aprendizado. "Fizemos um acordo com uma empresa da Flórida para entrar no mercado americano. Foi um desastre", diz Nery. "O parceiro não tinha estrutura organizada e não conquistamos nenhum cliente." A experiência fez com que a Módulo relativizasse a importância de levar sua marca para o exterior. "Agora fazemos questão é de um parceiro forte", afirma Nery.

É hora de desestatizar Para exportar, é preciso escala. Um bom começo para as empresas nacionais seria vender para o melhor cliente do país: o governo. "É hora de desestatizar a produção de software", diz José de Miranda Dias, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes). "Em qualquer órgão estatal, não apenas nas empresas públicas especializadas, há desenvolvimento de tecnologia. Se a terceirização fosse estimulada, o impacto na indústria nacional seria enorme."

Muitas vezes, ao contrário, o acesso das empresas nacionais aos contratos das estatais é dificultado. No ano passado, a Pulso, uma empresa de São Paulo especializada em software para comércio eletrônico e internet que faturou 5 milhões de reais, ficou de fora de uma concorrência pública porque as exigências do edital impossibilitavam a presença de competidores nacionais. "Era um sistema de pagamentos que podíamos oferecer", diz Cláudio Prado, presidente da Pulso. "Exigia-se do fornecedor a experiência em quatro contratos similares. Mas não há sequer quatro serviços desse tipo no Brasil."

Possivelmente, porém, o principal entrave ao desenvolvimento da indústria brasileira de tecnologia seja mesmo a incipiente cultura de empreendedorismo no país. "A gente depara com ótimos produtos nas mãos de pessoas que não têm a menor noção de como transformá-los em negócios", afirma Marília Rocca, presidente do Instituto Empreender Endeavor, organização não-governamental de apoio ao empreendedorismo. Prova disso foi uma recente parceria da Endeavor com a Microsiga, que pretendia apoiar projetos de software com potencial de mercado. Dos poucos projetos inscritos, nenhum foi selecionado. Ou faltava adequação do produto ao mercado ou o desenvolvedor não estava disposto a trabalhar para criar um mero plano de negócios. "Empreendedorismo tem de ser ensinado no colégio, nas faculdades de engenharia, de letras, não só nas de administração de empresas", diz Marília.

Financiamento Passada a fase empreendedora, é preciso pensar em como financiar o crescimento das empresas. E -- acredite -- existe dinheiro para isso. Com recursos do governo, costumam acontecer coisas curiosas. De acordo com Djalma Petit e Giancarlo Stefanuto, do Softex, órgão do governo que coordenou a parte brasileira do estudo comparativo entre Índia, Brasil e China, o Banco do Brasil aprovou uma linha de financiamento para a compra do software da alemã SAP, deixando de fora as nacionais Microsiga ou Datasul. É preciso, portanto, distribuir o dinheiro do governo de maneira mais inteligente. Pode parecer um paradoxo, mas até o estímulo ao capitalismo de risco, uma das molas mestras da indústria da tecnologia da informação em qualquer país do mundo, depende em boa medida do governo. "Sempre que se pensa em capital de risco vem à cabeça o Vale do Silício", diz Carlos Kokron, representante para a América Latina da Intel Capital, um dos maiores fundos de risco do mundo. "Mas é bom lembrar que foram necessários 40 anos para o Vale chegar ao que é hoje."

Para criar uma indústria saudável, que tenha vida própria, é essencial ter melhor compreensão do típico ciclo de vida de uma empresa de base tecnológica. Em geral, trata-se de três fases distintas, cada uma com necessidades específicas. É fácil entender esse processo acompanhando a história da Innovaction, empresa de São Paulo especializada em software para centrais de atendimento telefônico e gerenciamento de projetos, fundada em 1995 por três matemáticos. A Innovaction só chegou aos 500 000 de faturamento depois de quatro anos. Em 1999, conseguiu o primeiro investimento de risco: 1 milhão de reais do executivo Antonio Queiroz, na época presidente da Monsanto. Queiroz iniciou uma reestruturação na empresa e contratou o paulistano Jedey Miranda como presidente. "Eles tinham ótimos técnicos, mas faltava gestão", diz Miranda. Em 2002, a Innovaction entrou na segunda fase, graças a um aporte, em dois anos e meio, de 20 milhões de reais da Stratus Venture Capital, em troca de 45% da empresa. Até a chegada do dinheiro, foram necessários quase um ano de negociação, uma auditoria da PricewaterhouseCoopers e a checagem, pelos investidores, das referências dadas pelos empreendedores, com clientes e parceiros. Em 2002, a Innovaction já faturava 2,5 milhões de reais e sua carteira havia aumentado de 12 para 45 clientes.

Casos como o da Innovaction ainda são raros, raríssimos. Falta no Brasil gente como Queiroz, investidores que fazem o primeiro aporte de capital, mais conhecidos como anjos (ou angels). Nos Estados Unidos, em geral esse papel é cumprido por um empreendedor de sucesso que quer diversificar sua carteira. Como por aqui a renda fixa deve continuar sendo mais atraente por um bom tempo, não seria a hora de o governo dar esse primeiro impulso? "No fim do ano passado, fizemos 80 investimentos de 250 000 reais a fundo perdido em empresas iniciantes", diz Vanda Scartezini, ex-titular da Sepin, hoje responsável pela área estratégica de tecnologia do estado de São Paulo. "Mas é pouco. Para ter resultado, é necessário ter continuidade."

A segunda fase, quando o negócio já está mais estruturado, é a especialidade dos fundos de capital de risco. Nesse caso, o problema não é dinheiro. Há fundos privados e públicos de sobra no país. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Capital de Risco, 27 administradoras de recursos investiram no Brasil cerca de 33 milhões de dólares em empresas de tecnologia da informação no primeiro semestre do ano passado. O problema é outro: faltam opções para que o investimento se transforme em lucros -- no jargão do investidor, falta saída. Uma alternativa é a compra por outra companhia. Outra, a preferida pelos fundos, é a abertura de capital. Mas todos sabem que correr risco na bolsa, hoje, é uma excentricidade. "O capital de risco é recente aqui, e os ciclos estão chegando à maturação nos próximos dois ou três anos", diz Kokron. "Logo os investidores vão cobrar o retorno."

Por fim, há o caso das empresas já desenvolvidas, com fluxo de receitas assegurado, mas às vezes insuficiente para dar um passo importante. O caso da Vesta é exemplar. A empresa de São Paulo, que faturou 11 milhões de reais em 2002 e registra em seu currículo participações importantes nos maiores sucessos de governo eletrônico, recentemente desistiu de um contrato por falta de financiamento. "Tínhamos todas as chances de levar o contrato para fazer o sistema eletrônico de cobrança de um cliente estrangeiro", diz Paula Santos, fundadora e executiva-chefe da Vesta. "Mas o pagamento só viria na entrega do serviço, e não tínhamos os recursos em caixa para contratar os 100 programadores necessários."

Impostos, impostos... Todos os setores da economia sofrem com a legislação trabalhista, mas numa empresa de software o problema é especialmente grave. Além de um imóvel e de uma rede de computadores, o principal investimento desse tipo de negócio são as pessoas. "A CLT é incompatível com o desenvolvimento de software", afirma Miguel Abuhab, fundador e presidente do conselho da Datasul, uma das maiores companhias de software do país. "Programação é um trabalho criativo e pouco sujeito aos critérios válidos para outras indústrias." O alto custo de pessoal foi um dos motivos que levaram a Datasul a separar as áreas de desenvolvimento de seu carro-chefe, o software de gestão, em franquias independentes.

Há outros empecilhos bem mais recentes que as caducas leis trabalhistas. O secretário Grando promete ser um soldado do software nacional, mas logo na primeira batalha os empreendedores foram atingidos por "fogo amigo". Num acordo negociado no fim do ano passado na transição entre as equipes de FHC e Lula, as empresas de software foram excluídas da medida provisória que criou o Simples, regime que concede benefícios fiscais a pequenas empresas. Há promessas de que o setor venha a contar com uma legislação exclusiva, mas quem entende dos descaminhos de Brasília afirma que são pequenas as chances de que essa legislação seja criada.

As dificuldades da estrutura oficial brasileira se estendem à área de proteção à propriedade intelectual. Há dois mecanismos básicos de proteção a programas de computador: direito autoral e patente. Não é novidade que quase 60% do software usado no Brasil é pirata: não paga direito autoral. Representantes do governo Lula têm defendido que órgãos públicos e instituições de ensino adotem softwares livres (que podem ser copiados e modificados), como forma de disseminar o uso legal dos programas de computador. Mas isso não resolve a questão do uso ilegal da maior parte dos programas, que continua endêmico. "O Brasil melhorou no combate à pirataria, mas os índices de infração ainda são o dobro dos registrados em países desenvolvidos", diz Craig Mundie, vice-presidente sênior da Microsoft. Para o empreendedor, ter o produto de seu trabalho desvalorizado é fatal. Já o órgão do governo federal que concede patentes, o Inpi, tem hoje uma fila de processos estimada em três a cinco anos. Há produtos aguardando oito anos por uma decisão. Só para comparar: nos Estados Unidos, todo o processo de patenteamento leva em média oito meses.

Parte desse descaso é fruto de um problema crônico do setor: a desarticulação política. Todos conhecem a Anfavea, da indústria automotiva, ou a Abifarma, da farmacêutica. A área de tecnologia da informação no Brasil, porém, reúne uma miríade de associações e siglas que na maioria das vezes não têm representatividade. Na Índia, uma única associação, a Nasscom, congrega as empresas de tecnologia do país. Segundo Ernesto Haberkorn, presidente da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, Software e Internet (Assespro), das 5 400 empresas de desenvolvimento e serviços de software existentes no Brasil, apenas 1 200 são associadas a alguma entidade. "Se não unir, não tem jeito", diz Haberkorn. Ele articula atualmente a união das duas principais associações do setor: Assespro e Abes.

...E mais impostos Outra questão fundamental é a tributação internacional. O Brasil é um dos poucos países do mundo não-signatários do Information Technology Agreement (ITA), acordo internacional que estabelece tarifa zero na importação e na exportação de produtos e serviços de tecnologia da informação. "Uma sugestão que sempre faço ao governo brasileiro é que ratifique o ITA", diz Barrett, da Intel. Mesmo que essa decisão esteja ligada a outras disputas comerciais do país, há caminhos alternativos para aumentar as exportações. "A Índia soube explorar brechas no acordo da Organização Mundial do Comércio", diz o advogado Fabio Kujawaski, do escritório Carvalho de Freitas e Ferreira, de São Paulo. "Não vejo por que o Brasil não possa fazer o mesmo." É verdade que a janela de oportunidades para o software nacional está aberta, mas há muito a fazer para que ela não se feche como no passado. E o tempo é curto.

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