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Apple: a fortaleza de 2,3 trilhões de dólares que Tim Cook construiu

Entenda os segredos do sucesso de Tim Cook liderando a Apple pós-Steve Jobs

 (Roy Rochlin/Getty Images)

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FS

Filipe Serrano

Publicado em 22 de fevereiro de 2021 às 07h01.

Última atualização em 23 de fevereiro de 2021 às 09h04.

Tim Cook: uma década de liderança da Apple e rumo aos 3 trilhões de dólares? (Apple/Reprodução)

Joe Biden tinha uma pergunta para Tim Cook: o então vice-presidente queria saber por que a Apple não poderia fazer o iPhone nos Estados Unidos? Era janeiro de 2012, durante a campanha de reeleição do presidente Barack Obama e três meses após a morte do antecessor de Cook, Steve Jobs. Biden estava em Palo Alto para um jantar com Cook e um grupo de líderes da tecnologia que incluía o presidente da Netflix, Reed Hastings, o presidente executivo do Google, Eric Schmidt e a diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg.

Como todos no jantar bem sabiam, a ideia de produzir em larga escala um iPhone, ou qualquer aparelho eletrônico avançado, em uma fábrica americana era um pedido excepcionalmente complicado. Os grandes fabricantes asiáticos contratados para isso -- especialmente, o principal parceiro da Apple, a Foxconn -- haviam construído fábricas do tamanho de uma cidade na China com centenas de milhares de trabalhadores qualificados. Nada nessa escala existia nas fábricas dos Estados Unidos. Os operários chineses geralmente trabalhavam muito mais horas, por uma fração do que ganham mesmo os trabalhadores americanos com salários mais baixos. “Não tenho certeza, exceto pelas práticas ditatoriais, se seria possível fazer isso dar certo”, diz John Riccitiello, outro executivo do Vale do Silício que testemunhou o diálogo entre Cook e Biden.

A pergunta de Biden colocou Cook, que havia se tornado presidente executivo da Apple no mês de agosto daquele ano, em uma posição embaraçosa. Ele foi o arquiteto da estratégia de terceirizar a produção da Apple para a China, uma tendência de crescente preocupação para o governo Obama. Mas Cook também foi, como se viu, extremamente eficaz em desviar a pressão política.

Ele certamente era mais diplomático do que seu antigo chefe. Certa vez, Obama fez a mesma pergunta a Jobs, e a resposta contundente de Jobs apareceu na primeira página do New York Times: “Esses empregos não vão voltar”. Cook, porém, era gentil e não hostil – tanto que, na verdade, Riccitiello não consegue se lembrar exatamente o que ele disse a Biden. No final daquele ano, Cook anunciou uma pequena mudança, mas politicamente significativa. A Apple, disse ele, começaria a fabricar alguns Macs nos Estados Unidos.

Depois disso, a dependência da Apple da China só cresceu. Pode-se pensar que esse abraço cada vez mais apertado com o país teria colocado Cook em uma posição política pior depois que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, com base em uma campanha marcada pela retórica contra a China, ameaças de guerra comercial e promessas de trazer empregos perdidos para Shenzhen de volta ao país – sem mencionar os desafios da pandemia do coronavírus e o aumento do fervor antitruste durante seu mandato. Estranhamente, porém, a Apple prosperou com Trump. Em agosto de 2018, o valor de mercado da empresa atingiu 1 trilhão dólares; 24 meses depois, enquanto Trump protestava no rastro da campanha que “essas estúpidas cadeias de suprimentos” na China deveriam se mudar para casa, a empresa ultrapassou o valor de 2 trilhões de dólares.

Funcionários atuais e ex-funcionários, executivos de empresas rivais e pessoas que circulam em Washington atribuem isso à astuta gestão de Cook, uma politicagem igualmente perspicaz e relutância zero em exercer o poder de mercado da Apple. “Tim Apple”, como Trump o chamou uma vez, encantou e pavimentou seu caminho para as boas graças do ex-presidente, enquanto mantinha Pequim feliz e encontrava maneiras de obter mais lucros com o iPhone.

A maneira como Cook lidou com Trump sugere como a Apple, que se recusou a comentar esse episódio, pode abordar o agora presidente Biden. Nos próximos quatro anos, sua Casa Branca continuará pressionando para aumentar a fabricação nos Estados Unidos e pode apoiar o escrutínio do Congresso de práticas potencialmente anticompetitivas, estimulada pelo Facebook e outras empresas que dizem que a Apple exerce muito poder.

Mas Cook tem contra-atacado, ampliando sua influência sobre a indústria de telefonia móvel, ao mesmo tempo que anuncia o compromisso da Apple com a privacidade como antídoto às práticas das empresas de mídia social. Além disso, o temperamento imperturbável de Cook o torna bem adequado para o clima político polarizado.

Os aliados elogiam suas habilidades operacionais e instintos diplomáticos. “Tim pode não ser capaz de projetar um produto como Steve”, diz Warren Buffett, que conhece bem Cook e cuja Berkshire Hathaway tem uma participação na Apple valendo 111 bilhões de dólares, conforme documento protocolado de setembro. “Mas Tim entende o mundo em um nível que muito poucos CEOs que conheci nos últimos 60 anos conseguiriam igualar.”

A carreira de Tim Cook na Apple

Tim Cook chegou na Apple em 1998, depois de 12 anos na IBM e uma passagem de seis meses na Compaq e parecia, pelo menos para a direção da Apple, desprovido de qualquer personalidade marcante. Trabalhava 18 horas por dia e mandava e-mails durante a noite. Quando não estava no escritório, parecia viver na academia. Ao contrário de Jobs, Cook não tinha pretensões de ser um gênio. “Tim sempre foi só trabalho: trabalho, trabalho, trabalho”, diz um ex-executivo da Apple que trabalhou com Cook em seus primeiros anos na empresa e que, de acordo com outras fontes desta reportagem, falou sob condição de anonimato por causa de sigilo contratual e medo de represálias corporativas. “Sempre achei que ele era muito chato.”

A reviravolta da Apple nos anos que se seguiram foi atribuída à genialidade dos produtos de Steve Jobs, começando com os iMacs coloridos que transformaram aparelhos antes bege em objetos de escritório. Mas igualmente importante na transformação da Apple na força econômica e cultural que é hoje foi a capacidade de Cook de fabricar esses computadores, e os iPods, iPhones e iPads que se seguiram, em grandes quantidades. Para isso, ele adotou estratégias semelhantes às utilizadas pela HP, Compaq e Dell, empresas ridicularizadas por Jobs, mas que ajudaram a inaugurar uma era de fabricação terceirizada e produtos feitos sob encomenda.

Na época em que Cook gerenciava o estoque de hardware da Compaq, ele se tornou amigo do fundador da Foxconn, Terry Gou, de acordo com duas pessoas que trabalharam em estreita colaboração com Cook. A empresa taiwanesa havia começado como fabricante de baixo custo: os primeiros produtos incluíam botões de plástico de mudança de canal para televisores e conectores para joysticks Atari.

Mas, no final dos anos 1990, a Foxconn passou para uma fabricação mais complexa, como a montagem de chassis de computador para a Compaq. A Foxconn acabou evoluindo para outras peças de PC, que produzia em grandes fábricas ao redor de Shenzhen (veja mapa), perto de fornecedores de componentes. Quando Cook se juntou à Apple, esses hubs com dezenas ou centenas de fábricas concentradas eram muito mais eficientes do que qualquer coisa nos Estados Unidos.

Tim Cook

Tim Cook e Steve Jobs (Getty Images)

A Apple vendeu uma enorme fábrica do Colorado em 1996 e, depois que Cook chegou, ele suspendeu temporariamente a fabricação baseada na Irlanda, e fechou o que era na época, sua única linha de produção americana, em Elk Grove, na Califórnia, e terceirizou cada vez mais a produção na China, começando com laptops e webcams. (A instalação de Elk Grove agora é utilizada para reformas e reparos.)

A cadeia global de suprimentos de Cook melhorou muito com as abordagens de fabricação que a Dell e a Compaq tinham desenvolvido. As grandes marcas de PCs frequentemente terceirizavam as decisões tanto de fabricação como de design, resultando em computadores baratos, mas não exclusivos. A inovação de Cook foi forçar a Foxconn e outros a se adaptarem às extravagantes especificações estéticas e de qualidade exigidas por Jobs e o chefe de design industrial Jony Ive. Os engenheiros da Apple fabricavam equipamentos especializados de manufatura e frequentemente viajavam para a China, passando longas horas não em salas de conferência como seus colegas na área de PC’s, mas na produção em busca de refinamentos de hardware e eliminação de gargalos na linha.

Fabricantes terceirizados trabalharam com todas as grandes empresas de eletrônicos, mas Cook diferenciou a Apple ao gastar muito para comprar peças de próxima geração com anos de antecedência e fechar acordos de exclusividade em componentes-chave para garantir que a Apple se manteria à frente da concorrência. Ao mesmo tempo, ele estava obcecado em controlar os custos da Apple.

Daniel Vidaña, na ocasião, diretor de gerenciamento de suprimentos, diz que Cook se preocupava especialmente com os prazos de entrega. Os prazos mais rápidos deixavam os clientes mais felizes e também reduziam o custo financeiro de armazenar estoque não vendido. Vidaña se lembra dele dizendo que a Apple não podia se dar ao luxo de ter “leite estragado”. Cook reduziu os estoques mensais da empresa para dias e elogiou, de acordo com um veterano ex-líder de operações de longa data, que a Apple estava "superando a Dell" em eficiência na cadeia de suprimentos.

A expansão das fábricas

Terry Gou, da Foxcoon, parecia sempre feliz ao concordar, muitas vezes construindo fábricas inteiras para atender quaisquer especificações de design minimalista-chique que a Apple impunha à Foxconn. Jon Rubinstein, vice-presidente sênior de engenharia de hardware durante a segunda passagem de Jobs na Apple, lembra-se de quase ter tido um ataque cardíaco em 2005 quando foi com Gou ver uma nova fábrica em Shenzhen para o iPod Nano – minúsculo dispositivo, 80% menor que o MP3 player original da Apple – e encontrar o espaço vazio. Em poucos meses, porém, uma grande estrutura e linha de produção já estavam instaladas. “Nos Estados Unidos, não se conseguiria nem obter os alvarás de funcionamento naquele tempo”, diz ele.

Jobs e Ive tinham gostos caros, o que tornava ainda mais complicado para a equipe de Cook ser irredutível ao negociar com os fornecedores. Para um gabinete personalizado projetado pela equipe de Ive para conter elegantemente as portas USB em um laptop Mac, um ex-líder de operações lembra que a empresa pagou durante muitos anos aproximadamente o triplo dos 5 centavos de dólar ou mais, que os concorrentes de PC estavam gastando por uma versão genérica da mesma peça básica.

Essa pessoa se lembra de “negociar literalmente até quatro casas decimais” para tornar a peça econômica. Um antigo gerente de operações de produto diz que mesmo se um fornecedor prometesse algo tão simples como uma data de entrega para uma peça, era normal pressionar para obter o número de rastreamento de cada remessa individual, como parte de uma ladainha de detalhadas demandas de logística e preços.

O poder da Apple sobre os fornecedores cresceu após o lançamento do iPhone, do qual a Foxconn fabricou e foram vendidas 4 milhões de unidades em seus primeiros 200 dias. Em 2009, disse um gerente de suprimentos do iPhone, a Apple adotava cada vez mais uma abordagem de “força bruta” para lidar com fornecedores na Ásia. “Eu poderia dizer: ‘Você faz assim ou cancelamos o pedido’”, diz esse gerente, acrescentando que a Apple começou a “tratar os fornecedores na porrada”.

A Apple sem Jobs

A morte de Jobs dois anos depois fez com que os céticos previssem que a Apple estagnaria sem o constante fluxo de suas invenções. Na verdade, o verdadeiro desafio era manter o suprimento na China. Os gerentes de operações estavam batalhando para comprar quantidade suficiente de máquinas de fresagem e cortadores a laser controlados por computador. Cada milímetro era examinado em busca de economia – assim como as peças aparentemente menos importantes. Três pessoas familiarizadas com a cadeia de suprimentos da empresa dizem que havia um funcionário da Apple cujo trabalho consistia em negociar o custo da cola.

Na Apple depois de Jobs, a influência de Ive começou a diminuir, enquanto Cook impunha uma abordagem mais consciente dos custos para novos produtos. Ele ordenou que sua equipe de operações trabalhasse em estreita colaboração com o grupo de design industrial desde os estágios iniciais do processo de desenvolvimento, em vez de meses antes, como era a norma no tempo de Jobs.

O iPhone 6 de 2014 foi “o garoto-propaganda” dessa transformação, de acordo com uma pessoa envolvida no desenvolvimento do produto. Embora o dispositivo tivesse componentes internos complexos e uma tela maior, o aparelho abriu mão das bordas polidas com diamante e as peças de vidro da parte de trás do iPhone 5 e 5s, cortadas com precisão que eram difíceis de serem produzidas.

Controle de qualidade do MacBook Pro, da Apple, em Xangai, China

Controle de qualidade do MacBook Pro, da Apple, em Xangai, China (Reprodução / Apple/Getty Images)

Mesmo a sede da empresa no estilo de uma nave espacial, cujo projeto Jobs tinha micro gerenciado, não escapou da nova disciplina financeira, de acordo com uma pessoa familiarizada com sua construção. Os aliados de Cook tentaram agressivamente reduzir despesas extravagantes, incluindo o vidro curvo que agora cercava o prédio, que o Wall Street Journal relatou que originalmente custaria 1 bilhão de dólares.

Enquanto isso, Cook expandia o negócio de uma forma contra a qual Jobs costumava resistir. Jobs adorava ressaltar que a linha de produtos da Apple era tão absurdamente pequena que cabia sobre uma pequena mesa. No momento de sua morte, a Apple vendia dois iPhones e um iPad; hoje oferece sete iPhones e cinco iPads. Cook também acrescentou produtos caros que chegavam a ser acessórios para os principais dispositivos móveis, como AirPods e Apple Watch.

No entanto, mesmo quando Cook transformou a Apple em uma empresa mais diversificada, sua dependência da China cresceu. A única maneira de gerar economias de escala e consistência na fabricação seria concentrar cada vez mais a produção da Apple em áreas como Shenzhen. “Quando se fala em ganhar um milhão por dia em alguma coisa, gastando pouco e conseguir fazer isso, cada equipamento tem que ser preciso – e fazer isso acontecer em vários países ao mesmo tempo é um desafio”, diz um antigo executivo de alto nível. “A questão é: não estará se confiando demasiadamente em um só lugar?”

A improvável amizade entre Tim Cook e Donald Trump

Em novembro de 2019, um ano antes da eleição presidencial, Trump voou para Austin para se encontrar com Cook e visitar a fábrica de Mac Pro da Apple. Diante de um grupo de jornalistas da Casa Branca, Cook chamou o Mac Pro, um computador de 5.999 dólares destinado a profissionais criativos, "de um exemplo de design americano, manufatura americana e engenhosidade americana". Em outro ponto, a dupla se aproximou para que Cook pudesse mostrar os componentes do computador enquanto Trump assentia com aprovação. Muitas das peças, Cook observou, vinham de lugares como Arizona e Pensilvânia – estados decisivos para onde Trump havia prometido trazer mais empregos na indústria manufatureira.

Trump elogiou a fábrica como uma promessa de campanha cumprida. “Eu disse que algum dia veríamos a Apple construindo fábricas em nosso país, não na China”, disse ele a repórteres. “E é isso que está acontecendo. Tudo está acontecendo. É tudo um sonho americano. ” Cook olhou discretamente e não mencionou o que era óbvio para os funcionários da fábrica: Trump estava mentindo. A instalação estava em operação para a Apple há seis anos.

Durante o tempo de Trump na presidência, ele e Cook forjaram uma improvável amizade que incomodou os veteranos de tendência liberal da Apple, que não podiam imaginar o terrível antecessor temperamental de Cook tolerando qualquer cooptação da marca Apple por alguém tão grosseiro como Trump. Cook, que apoiou Hillary Clinton na campanha presidencial de 2016, expressou desacordo sobre a abordagem de Trump à imigração, agitação racial e mudança climática. Mas ele também compareceu às cúpulas de CEOs do presidente, bem como aos jantares na Casa Branca e no clube de golfe do presidente em Bedminster, em Nova Jersey e se relacionou com sua filha Ivanka e seu genro, Jared Kushner.

Gary Cohn, o principal conselheiro econômico de Trump até 2018, estima que Cook veio a Washington a cada quatro ou seis semanas, com muito mais frequência do que outros CEOs de tecnologia. “Ele incorporou à sua agenda a tarefa de descobrir onde poderíamos trabalhar juntos”, diz Cohn. “Nossos jantares não falavam apenas sobre tarifas e tecnologia da Apple. Eu diria que 75% era sobre a vida. Para ser um bom CEO, para realizar as coisas, é preciso ser diplomata, tem que ser um bom comunicador e um bom ouvinte, e Tim era tudo isso. ”

Cook estava disposto a fazer o que fosse necessário para proteger a cadeia de suprimentos da Apple centralizada na China, mesmo que isso significasse deixar Trump espalhar mentiras. Trump disse ao Wall Street Journal em meados de 2017 que Cook prometeu pessoalmente construir “três grandes, lindas fábricas” nos Estados Unidos, o que também era mentira e que a Apple se recusou a desmentir. Após a sessão de fotos em Austin, Trump tuitou: “Hoje inaugurei uma grande fábrica da Apple no Texas, que trará de volta os empregos com altos salários para os Estados Unidos”. A Apple também deixou isso passar.

Funcionários atuais e ex-funcionários familiarizados com o desenvolvimento do Mac Pro dizem que o evento no Texas foi uma vergonha. A fábrica passou por algumas reformas desde que foi usada pela primeira vez para montar o Mac Pro em 2013, mas – outra vez – não era nova. Além disso, a Flex, fabricante contratada que opera a fábrica de Austin, se preparou para o evento retocando o chão da área de produção como se fosse um cenário. Novos computadores foram colocados em exibição para “parecer que estamos vendendo essas coisas como pão quente”, lembra um engenheiro. Muitos funcionários tiveram o dia de folga, e os poucos selecionados com permissão para ficar fingiam trabalhar em segundo plano em seus uniformes azuis, de acordo com outro funcionário. “Foi muito mais um espetáculo”, diz essa pessoa.

Cook parecia entender que, embora a Apple fosse vulnerável à belicosidade anti-China de Trump, ele também poderia usar a reputação da empresa e sua gentileza como aliciamento para um presidente que ansiava pela validação dos negócios tradicionais. “Tim era muito bom em dar perspectiva ao presidente, porque a Apple é uma icônica marca de consumo”, disse um ex-funcionário sênior do governo Trump. “O CEO deles está trabalhando com a Casa Branca, participando de reuniões, viajando com Ivanka. Há sempre o desejo de se vincular a uma boa marca”.

A fábrica no Texas

A própria fábrica do Texas propriamente dita há muito tinha sido uma decepção, de acordo com ex-funcionários que trabalharam no projeto desde o início da era Obama. “Foi um experimento para provar que a cadeia de suprimentos dos Estados Unidos poderia funcionar tão bem quanto a da China, e falhou terrivelmente”, disse um ex-gerente sênior.

A Apple optou por produzir a primeira iteração de seu Mac Pro “Montado nos Estados Unidos” em Austin, em 2013, porque era caro e vendido em baixo volume, o que permitia mais margem para estouros de custo, garantindo que quaisquer perdas não seriam desastrosas, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto. O Mac Pro também é muito maior do que um smartphone, o que significa que, em teoria, deveria ser mais fácil de produzir do que algo tão compacto e preciso como um iPhone ou um Apple Watch.

Mas então os gerentes da cadeia de suprimentos viram um primeiro modelo em escala do design cilíndrico que a equipe de Ive havia criado, que fazia o Mac Pro parecer algo saído do filme “Guerra nas Estrelas”. Os parceiros da Apple na Ásia conseguiram lidar com essas especificações estranhas de design, mas os funcionários envolvidos com a fábrica da Flex nos Estados Unidos, que esperavam um formato quadradão que se assemelhava às versões anteriores do dispositivo, ficaram assustados. Inicialmente, eles se preocuparam em ter que encaixar peças quadradas em uma caixa circular, de acordo com um ex-funcionário sênior da Apple.

Quando os engenheiros da Apple começaram a instalar a fábrica no Texas, dizem fontes familiarizadas com o assunto, surgiram dificuldade para encontrar fornecedores locais dispostos a investir na reforma de suas fábricas para um projeto único de Mac. De acordo com um ex-funcionário da cadeia de suprimentos da Apple, enormes quantidades de determinados componentes precisaram ser importadas da Ásia, o que causou um efeito dominó de atrasos e custos.

Mac Pro

Mac Pro (Justin Sullivan/Getty Images)

Se uma remessa chegasse com peças defeituosas, por exemplo, a fábrica do Texas tinha que esperar a próxima entrega de carga aérea; nas fábricas de Shenzhen, as reposições de suprimentos ficavam a uma curta distância de carro. Parecia o oposto dos terminais multifuncionais ultra eficientes da Foxconn. “Realmente enfatizamos com os fornecedores a necessidade de uma tripla verificação de seus produtos antes de colocá-los em um avião para o Texas”, disse este funcionário. "Foi um sofrimento!".

O recrutamento foi outro desafio. Habilidades comuns na Foxconn eram mais difíceis de se encontrar nos Estados Unidos, onde novos contratados poderiam ter trabalhado anteriormente em uma Costco, em vez de em uma fábrica de eletrônicos tão diferente. Um antigo engenheiro de produto da Apple lembra da equipe que lutava para determinar por que as placas de circuito que saíam da linha de montagem estavam tortas. Eles finalmente rastrearam o problema até um único trabalhador que estava inexplicavelmente aparafusando as peças da esquerda para a direita, em vez da especificação do pedido numerado fornecido pela Flex. A sucata era alta no início, e várias fontes dizem que as equipes não cumpriram suas metas iniciais de entrega e de custos.

Assim que a montagem do produto se estabilizou, os funcionários da Apple passaram para outros projetos mais urgentes da cadeia de suprimentos, como a fabricação do Apple Watch – que inevitavelmente era feito na China. A demanda pelo Mac Pro cilíndrico foi mais fraca do que o previsto e, por fim, ocorreram demissões na Flex.

Os benefícios políticos

Quaisquer que sejam os problemas da fábrica de Austin, seus benefícios políticos foram enormes. Em setembro de 2019, os Estados Unidos concederam isenções de tarifas para a importação de peças múltiplas para o futuro do Mac Pro. Dias depois, a Apple anunciou que faria uma nova versão do computador, que a empresa redesenhou em uma caixa mais simples, no Texas. Durante sua visita à fábrica em novembro de 2019, Trump disse que procuraria mais reduções fiscais para a Apple, que realmente as obteve nos meses seguintes no iPhone, iPad e no Apple Watch.

Cook mais tarde deu a Trump o primeiro do novo modelo Mac Pro produzido na fábrica de Austin, de acordo com um formulário de divulgação da Casa Branca. Mesmo assim, uma pessoa familiarizada com a fábrica de Austin diz que ela ainda enfrenta dificuldades. Em um comunicado, a Flex afirma estar “muito orgulhosa de nossas excelentes capacidades de produção e soluções inovadoras e sustentáveis da cadeia de suprimentos”

Enquanto isso, a Apple transferiu parte da produção de AirPods para o Vietnã e de iPhones para a Índia, onde a empresa também enfrentou problemas com escala e qualidade. É provável que uma diversificação mais significativa da manufatura leve anos, mesmo com Cook enfrentando pressão para se separar da China por causa da censura, das violações dos direitos humanos e das críticas sobre as condições de trabalho nas fábricas no continente chinês.

Em uma reunião no ano passado, um funcionário perguntou a Dan Riccio, na época chefe de hardware da Apple, porque a empresa continua a fazer produtos na China, por conta desses problemas éticos. A multidão aplaudiu. “Bem, isso está acima da minha jurisdição”, respondeu ele, antes de acrescentar que a Apple ainda estava trabalhando para expandir sua presença de fabricação para além da China.

Nem mesmo a pandemia da covid-19, que fechou temporariamente as fábricas da Foxconn no início de 2020, conseguiu afrouxar o controle da China sobre a maior parte da produção do iPhone da Apple. Enquanto os voos comerciais dentro e fora da China foram suspensos, a Apple fretou jatos particulares para levar centenas de funcionários ao país para supervisionar a produção e os testes, bem como garantir que os novos modelos fossem lançados antes do período crítico de férias, de acordo com uma pessoa familiarizada com a logística da Apple. Um antigo gerente de operações da Apple também observa que a Foxconn ainda foi capaz de produzir as primeiras versões do iPhone 2020, mesmo no auge da pandemia. “Não há como simplesmente se mudar da China, especialmente com os volumes da Apple”, disse essa pessoa.

Em 27 de janeiro, a Apple anunciou que existe agora mais de 1 bilhão de iPhones ativos no mundo. “É uma conquista estelar para Cook ter conseguido atravessar esses tempos sem precedentes para a cadeia de suprimentos da Apple em meio a uma guerra fria de tecnologia entre Estados Unidos e China. Ao se olhar para os últimos anos, muitos investidores apostavam que ela iria explodir e se tornar uma enorme nuvem negra sobre a Apple ”, diz Dan Ives, analista da Wedbush Securities, que acredita na empresa, que tinha um valor de mercado de 2,3 trilhões dólares no início de fevereiro, pode atingir 3 trilhões de dólares nos próximos 12 meses. “Ele fez um ótimo trabalho como embaixador não oficial entre Washington e China.”

O desafio no governo Biden

Mesmo depois de Trump fora da Casa Branca, a corda bamba de Cook não terminou. Dois dias antes do relatório de lucros da Apple, Biden anunciou a iniciativa "Buy American" (Compre nos Estados Unidos) para aumentar a produção do país. “Não acredito nem por um segundo que a vitalidade da manufatura americana seja coisa do passado”, disse ele.

De muitas maneiras, Cook agora está aplicando as lições que aprendeu com a Apple ao construir sua rede de manufatura na China a outras partes do negócio. Sua habilidade operacional permitiu que se produzissem mais combinações de produtos e acessórios. E assim como a Apple usa seu incrível poder de compra para extrair concessões de fornecedores, agora está usando seu controle sobre uma igualmente impressionante cadeia digital de suprimentos, que inclui os próprios serviços de assinatura da empresa, bem como aplicativos de terceiros, para gerar maior receita dos clientes e desenvolvedores de software. Em um relatório de outubro sobre a indústria de tecnologia, o subcomitê antitruste da Câmara disse que a influência de sua App Store equivalia a um "poder de monopólio" e recomendou que os reguladores interviessem.

A Apple contestou a caracterização, mas os desenvolvedores de software, incluindo Spotify, Epic Games e Facebook fizeram alegações semelhantes. Em janeiro, o presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, acusou a Apple de usar “sua dominante posição na plataforma para interferir” com aplicativos e publicidade direcionada. Em agosto, a Epic processou a Apple, alegando que ela mantém um estrangulamento sobre os desenvolvedores de celulares, forçando-os a usar sua App Store e sistema de faturamento, com um corte de até 30% da receita no processo.

O presidente da Epic, Tim Sweeney, diz que embora seja fã de Cook e Jobs por causa da disrupção de uma indústria antes dominada por empresas como a IBM e a Microsoft, ele acredita que a Apple está se comportando como sua arqui-inimiga. “Eles fazem muitas coisas que consideramos incríveis e nos apoiam totalmente, e algumas coisas que consideramos completamente erradas”, diz ele.

No meio de 2020, a Epic lançou uma campanha publicitária para pressionar a Apple a deixá-la administrar as compras no aplicativo de seu popular videogame Fortnite (e, portanto, evitar o pagamento das taxas de vendas da Apple). Incluía um vídeo viral do YouTube sobre o famoso anúncio “1984” da Apple, com um personagem parecido com Cook no papel de vilão da IBM/ Big Brother. Cook, é claro, trabalhou na IBM em 1984.

Nada disso pareceu derrubar Cook ou a Apple. A empresa contestou a Epic em setembro e, no final de janeiro, Cook foi atrás do Facebook, sugerindo que aqueles que criticavam as políticas de privacidade de sua empresa simplesmente queriam coletar mais dados pessoais e que os reguladores deveriam examinar as mídias sociais em vez da Apple. “Se um negócio é construído com base em usuários mal intencionados, na exploração de dados, em escolhas que não são escolhas de jeito nenhum, então esse negócio não merece nosso apoio, ele merece nosso repúdio”, disse ele em um discurso feito por videoconferência sobre privacidade. Ao mesmo tempo, em meio à pandemia de covid-19 e a contínua incerteza econômica, a empresa relatou lucro de 111 bilhões de dólares no trimestre anterior, um recorde.

* Tradução de Anna Maria Della Luche

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