"A TV do futuro é um grande iPad"
CEO da Netflix, Reed Hastings prevê a migração das transmissões do broadcast para a internet e aposta na integração de usuários pelas redes sociais
Da Redação
Publicado em 30 de agosto de 2012 às 21h14.
São Paulo - O filme Apolo 13, estrelado por Tom Hanks em 1995, ajudou a mudar o curso da vida de Reed Hastings. Não pelo conteúdo da história inspirada no resgate de uma missão espacial americana, mas pela multa que recebeu por atrasar a entrega da fita. Os 40 dólares já eram, em 1997, uma despesa insignificante para o fundador de uma das 50 maiores empresas de software do mundo àquela época. Mas serviram de estalo para idealizar um sistema de locação de DVDs pelo correio, com mensalidade fixa.
O nome da companhia – Netflix – mirava na inovação proposta por ele: o de transmissão online de filmes, séries e programas de TV. No mundo todo, a empresa reúne hoje mais de 25 milhões de assinantes. No Brasil e na América Latina, o serviço de 14,99 reais atingiu em um ano a marca de 1 milhão de usuários, passando a ser uma opção principalmente para os fãs das séries.
A previsão do CEO e co-fundador da empresa, que chega nesta quinta-feira a São Paulo para comemorar o primeiro aniversário brasileiro, é de que em 20 anos quase a totalidade da transmissão de vídeo estará na web, com grande integração com redes sociais, principalmente o Facebook - site onde tem cadeira no conselho de diretores e do qual recentemente adquiriu 1 milhão de dólares em ações, no momento de queda. “Não penso nas oscilações de curto prazo”, afirmou, por telefone, na seguinte entrevista ao site de VEJA:
Veja.com - Os campeões de audiência reúnem milhões de pessoas diante da TV em um mesmo horário. Essa forma de assistir televisão vai morrer?
Reed Hastings - As transformações serão diferentes para cada tipo de programação. As grandes transmissões de esporte pressupõem todos os espectadores ligados ao mesmo tempo. Esta é uma categoria que terá vida longa no modelo de broadcast tradicional, pois há algo especial na sensação de compartilhar aquele momento em frente à TV com milhares de torcedores. Não vejo este comportamento desaparecendo. Isso é muito diferente de quando a pessoa está surfando nos canais, sem certeza sobre o que quer ver. Esta é a parte da televisão que é muito melhor na internet, porque a forma de escolher é mais precisa. Esta separação já está acontecendo. Se você sabe o que quer ver, como seu esporte preferido ou um novo episódio específico de novela, a TV tradicional é muito boa. Mas ela não é boa se você está procurando um conteúdo interessante.
Veja.com - Isso significa que os canais no futuro não vão competir diretamente nas faixas de horário?
R. H. - Este é o ponto central. Por 70 anos, tivemos apenas a TV linear. Primeiro por transmissão por antenas, depois por cabo e satélite. Por muito tempo, a graça esteve em ter à disposição mais e mais canais lineares, que transmitem a mesma programação para todos os clientes. A próxima grande onda são as redes de TV na internet. Na TV ‘on demand’ você pode ver uma série e, se gostar, ver o primeiro episódio, ou toda a temporada. É o espectador quem escolhe se verá o programa ao voltar do trabalho ou às duas da manhã. Essa flexibilidade tremenda vem da natureza da internet e dos serviços sob demanda. Penso que surgirão muitas novas redes como a Netflix e a HBO Go, que são os grandes exemplos hoje em dia.
Veja.com - Essa mudança de padrão deve acontecer em que prazo?
R. H. - Há um crescimento rápido da transmissão de TV pela internet. Numa comparação não muito exata, é uma repetição do que se deu com os telefones celulares. Há 20 anos, a maioria das pessoas usava aparelhos conectados à rede de telefonia fixa. Hoje, as vantagens da telefonia celular são indiscutíveis, e por ela é feita a maioria dos telefonemas. Com o vídeo, o padrão atual ainda é o broadcast, com todos os clientes recebendo o mesmo sinal. Hoje em dia, só 2% ou 3% de todo o conteúdo de TV é transmitido pela internet. Acredito que em 20 anos o vídeo pela web será 98% de todo o conteúdo exibido no mundo.
Veja.com - A relação do usuário com a TV deixa de ser passiva?
R. H. - A opção estará com o consumidor, que poderá assistir de forma passiva ou não. A TV por internet pode ficar num mesmo canal, o dia inteiro, exatamente como no broadcast. Mas a tecnologia dá a ele o poder de decisão. Mesmo numa transmissão esportiva, em que um grande número de pessoas tem interesse na final de um campeonato, os usuários terão como escolher a forma de receber esse conteúdo. Quem estiver em um canal pela internet terá a opção de assistir por ângulos e câmeras diferentes. No caso de uma partida entre dois times regionais, será possível mostrar mais as jogadas e os jogadores preferidos do usuário. A mudança envolve todo o mercado. A diferença é também pelo lado dos canais e anunciantes, que podem direcionar publicidade específica para públicos com perfis escolhidos. Estamos falando de uma tecnologia que pode proporcionar anúncios únicos por pessoa, pois é possível saber exatamente quem é aquele espectador.
Veja.com - Atualmente é possível comprar TVs que acessam a internet, são controladas por voz e movimento, como os videogames. O aparelho de TV do futuro terá mesmo tantas funções?
R. H. - O que acontece agora com as TVs inteligentes já aconteceu com os smartphones. Elas são o futuro. Mas inicialmente nem todo mundo se interessa pelos modelos com novas funções, como acesso à internet e todo o conjunto de aplicativos que se pode baixar e usar no dia a dia. E é claro que nem todo mundo pode pagar por isso. Mas esses custos vão cair mais e mais, tornando o produto acessível, ao mesmo tempo em que mais pessoas se convencem de que há inovações úteis, mesmo que não seja alguém muito interessado em tecnologia de ponta. Pense nas TVs como iPads gigantes. Elas terão aplicações, serão flexíveis para o usuário. Será algo conveniente para ter na casa. Alguns modelos poderão ter tela sensível ao toque, exatamente como os tablets, e formas diferentes de controle, como o acionamento por voz e gesto. A diferença principal estará no acesso à rede e na atualização constante, como ocorre com os computadores.
Veja.com - De que forma os grandes produtores de conteúdo, como os estúdios de Hollywood, estão lidando com essas transformações?
R. H. -Se você é uma parte pequena dos pagamentos para quem produz conteúdo, não há como receber muita atenção. Quando começamos a transmitir filmes e programas de TV por streaming fomos ignorados pelos grandes estúdios. Afinal, nós éramos responsáveis por uma parcela pequena do que eles recebiam. Agora que temos um número de assinantes suficiente para fazer grandes cheques para a indústria, os produtores passaram a gostar do que fazemos. É assim que o mercado funciona.
Veja.com - Uma crítica dos usuários no Brasil é em relação à falta de filmes novos.
R. H. -Quanto mais assinantes reunimos, mais pagamos aos produtores de conteúdo. E se podemos pagar mais, podemos ter mais e melhores atrações. Ultrapassamos a marca de um milhão de usuários no Brasil e na América Latina, e isso cria possibilidade para termos mais acordos e mais conteúdo nesses mercados. Desde o dia 18 de agosto nossos clientes nesses mercados têm acesso ao filme Jogos Vorazes, o maior lançamento do ano nos cinemas. Para os brasileiros, esse título chega apenas cinco meses depois da primeira exibição nas salas. Nosso público nos Estados Unidos só terá acesso a ele em abril do ano que vem. O prazo para estreia de uma atração na Netflix varia de acordo com as políticas e contratos de cada estúdio, mas o que sempre tentamos é buscar os títulos mais populares.
Veja.com - No Brasil, a Rede Globo é a que mais produz e exibe programas de sucesso, entre eles as novelas. Como é a relação da Netflix com a emissora?
R. H. - Por ser uma rede de grande sucesso, a Globo tem a capacidade de decidir exatamente como e com quem licenciar seu conteúdo. Ela escolhe a forma mais lucrativa e interessante de negociar seus produtos. Temos uma boa relação com a Globo Internacional, e oferecemos conteúdo da emissora fora do Brasil, em toda a América Latina e nos Estados Unidos. Mas eles não nos deixam licenciar conteúdo para exibição pela Netflix no Brasil. Temos relativamente pequeno conteúdo de TV brasileira, em comparação com outros países em que estamos presentes. No México, temos o que é produzido pela Televisa e Azteca, por exemplo. Apenas no Brasil a Globo não está interessada. É um direito deles. Quando começamos nos Estados Unidos, em 2008, a atitude era similar. Hoje temos conteúdo de todas as emissoras e estúdios. Leva tempo para as pessoas entenderem o que fazemos, e como isso é diferente. Nosso negócio é adicionar, não canibalizar. Ninguém deixa de assinar uma TV a cabo porque assinou a Netflix. Não temos notícias, esportes, programas como American Idol ou reality shows. Oferecemos conteúdo de TV em série, e no caso de programas de TV as pessoas podem assistir como se lessem um livro: um episódio após o outro, no ritmo e no momento em que bem entendem.
Veja.com - Não é natural que as emissoras tenham medo do avanço de serviços como a Netflix?
R. H. - Não. Nos Estados Unidos sempre houve o debate a respeito disso, sobre sermos bons ou maus, ou quem vai matar quem nesse negócio. O caso do seriado Mad Men é um bom exemplo para isso. Quando a quinta temporada começou a ser exibida, a audiência da série tinha um milhão de espectadores a mais que a temporada anterior. A razão para isso, acreditamos, é o fato de muitas pessoas terem assistido aos episódios antigos na Netflix. Isso criou, então, expectativa pelos novos episódios. Esta atração tem cinco anos agora, mas o episódio mais assistido na Netflix continua sendo o primeiro, da primeira leva. Isso é um ótimo exemplo de como ajudamos a construir a audiência. Vemos isso acontecer também com Breaking Bad, Sons of Anarchy, e até comédias como How I Met Your Mother. As TVs não podem oferecer tudo de uma vez, mas nós podemos. E isso cria expectativa para a temporada seguinte.
Veja.com - O que impede que mais títulos brasileiros, além da Globo, entrem na grade da Netflix?
R. H. -Procuramos o que as pessoas assistem, de acordo com o número de horas exibidas. Quando viemos ao Brasil pela primeira vez, ficamos impressionados com o sucesso de Chaves no país. Incluímos essa atração e ela foi muito bem. Pensamos: “Como é possível?” Nós analisamos o custo relativo de cada tipo de conteúdo e decidimos pensando em investir com base em quem vai assistir ao título. A complexidade desse processo é que as pessoas têm gostos muito diferentes. Licenciamos o que elas realmente assistem, e não o que dizem querer assistir. Se perguntadas, muitas pessoas dizem que querem grandes filmes de qualidade. É comum encontrar quem afirma gostar de Scorcese e Woody Allen, mas que, pelo que constatamos, passa mais tempo assistindo a filmes de monstros e zumbis. Nós sabemos exatamente o que nossos assinantes estão assistindo.
Veja.com - Há particularidades no assinante brasileiro?
R. H. - No Brasil, adicionamos mais comédia e mais programas infantis. Já temos alguns humoristas, como Rafinha Bastos, e vamos começar com o Pânico! em novembro. Galinha Pintadinha é um dos títulos mais populares do nosso catálogo e tem sido ótimo para nós. Também temos mais animações e conteúdo do UFC. Depois da exibição mundial das lutas, imediatamente negociamos e adicionamos à programação.
Veja.com - O Brasil tem uma produção crescente de cinema independente, e isso também está fora do serviço. Esses filmes não interessam?
R. H. - Um dos problemas dos filmes independentes no Brasil é que são muito difíceis de licenciar. O modelo de propriedade de filmes é muito complexo. Há muitas pessoas envolvidas no financiamento, e os direitos não estão concentrados em uma instituição específica ou pessoa. Veja o que acontece com a Petrobras. Ela financia muitos filmes, mas geralmente não controla os direitos. Ser capaz de construir um acordo de licenciamento por atacado é fundamental no nosso negócio. O melhor para nós é negociar o licenciamento de 30, 50, 100 filmes de uma só vez. Nas produções independentes no Brasil, quando começamos a conversar, vemos que elas têm diferentes participações de propriedade – uma para a música, outra para outra parte, e assim por diante. A negociação se arrasta ou se torna impossível.
Veja.com - Uma nova lei brasileira exige uma conta mínima de conteúdo nacional na TV por assinatura. Foi criada também uma taxação para serviços de vídeo sob demanda. Como isso afeta a Netflix?
R. H. - Os países têm legislações próprias em relação à televisão e à internet, e em alguns há tensões. Queremos que clientes brasileiros tenham mais opções. Estamos estudando as novas regras, e de que forma isso pode afetar nosso negócio. A tecnologia de transmissão de vídeo por internet não é boa só para a Netflix, ou só para as redes, mas para o mercado como um todo. Seria uma pena sacrificar essa inovação, e esperamos que isso não aconteça.
Veja.com - As ações da sua companhia sofreram uma queda abrupta de mercado em 2011 e vêm se recuperando. Recentemente, o senhor adquiriu um milhão de dólares em ações do Facebook, num momento de tendência de queda. Que aprendizado se pode extrair dessas oscilações nas empresas de tecnologia?
R. H. -Gosto de analisar o mercado pensando no que vai acontecer daqui a 20 anos ou mais, não nas oscilações de valor de curto prazo. É assim que devemos agir como gestores. Acredito que as inovações da tecnologia para o lado social terão papel muito forte no futuro, e isso se conecta com o que prevejo para a Netflix. Meu foco é construir uma empresa global, que atenda dezenas de milhões de espectadores. Sou muito confiante e otimista em relação ao crescimento do número de pessoas assistindo TV pela internet nos próximos cinco, dez e vinte anos. E vejo que a tendência é amigos interagindo em relação ao que assiste e gosta de ver na TV. Isso me leva a enxergar futuros longos e brilhantes para as duas companhias.
Veja.com - Paralelamente aos negócios, o senhor sempre teve atuação em educação. As novas tecnologias estão fazendo sua parte para promover avanços nessa área?
R. H. - Meu primeiro trabalho depois da faculdade foi como professor de matemática na África. Vi pessoalmente o desafio que os países em desenvolvimento têm pela frente para formar professores de qualidade. Isso é particularmente importante e difícil quando falamos de matemática e ciências. É preciso garantir acesso universal à educação de qualidade, dos primeiros anos até a faculdade. Se tivermos sucesso nisso, teremos um mundo mais pacífico. A internet e a tecnologia oferecem oportunidades imensas para promover educação. O YouTube é o maior distribuidor de vídeos no planeta, e um dos grandes exemplos de como isso pode ser usado a serviço da educação é Khan Academy, um grupo que distribui vídeos gratuitos com aulas de várias matérias. Sou um dos colaboradores da organização, que recentemente passou a oferecer gratuitamente, a qualquer um com acesso à internet, aulas de introdução à programação e à ciência da computação. Eles não são os únicos. Ações como essas são a prova de que os países precisam investir em conexão de qualidade. Ser capaz de oferecer internet rápida em larga escala vai ser decisivo para a competitividade dos países nos próximos 50 anos.
São Paulo - O filme Apolo 13, estrelado por Tom Hanks em 1995, ajudou a mudar o curso da vida de Reed Hastings. Não pelo conteúdo da história inspirada no resgate de uma missão espacial americana, mas pela multa que recebeu por atrasar a entrega da fita. Os 40 dólares já eram, em 1997, uma despesa insignificante para o fundador de uma das 50 maiores empresas de software do mundo àquela época. Mas serviram de estalo para idealizar um sistema de locação de DVDs pelo correio, com mensalidade fixa.
O nome da companhia – Netflix – mirava na inovação proposta por ele: o de transmissão online de filmes, séries e programas de TV. No mundo todo, a empresa reúne hoje mais de 25 milhões de assinantes. No Brasil e na América Latina, o serviço de 14,99 reais atingiu em um ano a marca de 1 milhão de usuários, passando a ser uma opção principalmente para os fãs das séries.
A previsão do CEO e co-fundador da empresa, que chega nesta quinta-feira a São Paulo para comemorar o primeiro aniversário brasileiro, é de que em 20 anos quase a totalidade da transmissão de vídeo estará na web, com grande integração com redes sociais, principalmente o Facebook - site onde tem cadeira no conselho de diretores e do qual recentemente adquiriu 1 milhão de dólares em ações, no momento de queda. “Não penso nas oscilações de curto prazo”, afirmou, por telefone, na seguinte entrevista ao site de VEJA:
Veja.com - Os campeões de audiência reúnem milhões de pessoas diante da TV em um mesmo horário. Essa forma de assistir televisão vai morrer?
Reed Hastings - As transformações serão diferentes para cada tipo de programação. As grandes transmissões de esporte pressupõem todos os espectadores ligados ao mesmo tempo. Esta é uma categoria que terá vida longa no modelo de broadcast tradicional, pois há algo especial na sensação de compartilhar aquele momento em frente à TV com milhares de torcedores. Não vejo este comportamento desaparecendo. Isso é muito diferente de quando a pessoa está surfando nos canais, sem certeza sobre o que quer ver. Esta é a parte da televisão que é muito melhor na internet, porque a forma de escolher é mais precisa. Esta separação já está acontecendo. Se você sabe o que quer ver, como seu esporte preferido ou um novo episódio específico de novela, a TV tradicional é muito boa. Mas ela não é boa se você está procurando um conteúdo interessante.
Veja.com - Isso significa que os canais no futuro não vão competir diretamente nas faixas de horário?
R. H. - Este é o ponto central. Por 70 anos, tivemos apenas a TV linear. Primeiro por transmissão por antenas, depois por cabo e satélite. Por muito tempo, a graça esteve em ter à disposição mais e mais canais lineares, que transmitem a mesma programação para todos os clientes. A próxima grande onda são as redes de TV na internet. Na TV ‘on demand’ você pode ver uma série e, se gostar, ver o primeiro episódio, ou toda a temporada. É o espectador quem escolhe se verá o programa ao voltar do trabalho ou às duas da manhã. Essa flexibilidade tremenda vem da natureza da internet e dos serviços sob demanda. Penso que surgirão muitas novas redes como a Netflix e a HBO Go, que são os grandes exemplos hoje em dia.
Veja.com - Essa mudança de padrão deve acontecer em que prazo?
R. H. - Há um crescimento rápido da transmissão de TV pela internet. Numa comparação não muito exata, é uma repetição do que se deu com os telefones celulares. Há 20 anos, a maioria das pessoas usava aparelhos conectados à rede de telefonia fixa. Hoje, as vantagens da telefonia celular são indiscutíveis, e por ela é feita a maioria dos telefonemas. Com o vídeo, o padrão atual ainda é o broadcast, com todos os clientes recebendo o mesmo sinal. Hoje em dia, só 2% ou 3% de todo o conteúdo de TV é transmitido pela internet. Acredito que em 20 anos o vídeo pela web será 98% de todo o conteúdo exibido no mundo.
Veja.com - A relação do usuário com a TV deixa de ser passiva?
R. H. - A opção estará com o consumidor, que poderá assistir de forma passiva ou não. A TV por internet pode ficar num mesmo canal, o dia inteiro, exatamente como no broadcast. Mas a tecnologia dá a ele o poder de decisão. Mesmo numa transmissão esportiva, em que um grande número de pessoas tem interesse na final de um campeonato, os usuários terão como escolher a forma de receber esse conteúdo. Quem estiver em um canal pela internet terá a opção de assistir por ângulos e câmeras diferentes. No caso de uma partida entre dois times regionais, será possível mostrar mais as jogadas e os jogadores preferidos do usuário. A mudança envolve todo o mercado. A diferença é também pelo lado dos canais e anunciantes, que podem direcionar publicidade específica para públicos com perfis escolhidos. Estamos falando de uma tecnologia que pode proporcionar anúncios únicos por pessoa, pois é possível saber exatamente quem é aquele espectador.
Veja.com - Atualmente é possível comprar TVs que acessam a internet, são controladas por voz e movimento, como os videogames. O aparelho de TV do futuro terá mesmo tantas funções?
R. H. - O que acontece agora com as TVs inteligentes já aconteceu com os smartphones. Elas são o futuro. Mas inicialmente nem todo mundo se interessa pelos modelos com novas funções, como acesso à internet e todo o conjunto de aplicativos que se pode baixar e usar no dia a dia. E é claro que nem todo mundo pode pagar por isso. Mas esses custos vão cair mais e mais, tornando o produto acessível, ao mesmo tempo em que mais pessoas se convencem de que há inovações úteis, mesmo que não seja alguém muito interessado em tecnologia de ponta. Pense nas TVs como iPads gigantes. Elas terão aplicações, serão flexíveis para o usuário. Será algo conveniente para ter na casa. Alguns modelos poderão ter tela sensível ao toque, exatamente como os tablets, e formas diferentes de controle, como o acionamento por voz e gesto. A diferença principal estará no acesso à rede e na atualização constante, como ocorre com os computadores.
Veja.com - De que forma os grandes produtores de conteúdo, como os estúdios de Hollywood, estão lidando com essas transformações?
R. H. -Se você é uma parte pequena dos pagamentos para quem produz conteúdo, não há como receber muita atenção. Quando começamos a transmitir filmes e programas de TV por streaming fomos ignorados pelos grandes estúdios. Afinal, nós éramos responsáveis por uma parcela pequena do que eles recebiam. Agora que temos um número de assinantes suficiente para fazer grandes cheques para a indústria, os produtores passaram a gostar do que fazemos. É assim que o mercado funciona.
Veja.com - Uma crítica dos usuários no Brasil é em relação à falta de filmes novos.
R. H. -Quanto mais assinantes reunimos, mais pagamos aos produtores de conteúdo. E se podemos pagar mais, podemos ter mais e melhores atrações. Ultrapassamos a marca de um milhão de usuários no Brasil e na América Latina, e isso cria possibilidade para termos mais acordos e mais conteúdo nesses mercados. Desde o dia 18 de agosto nossos clientes nesses mercados têm acesso ao filme Jogos Vorazes, o maior lançamento do ano nos cinemas. Para os brasileiros, esse título chega apenas cinco meses depois da primeira exibição nas salas. Nosso público nos Estados Unidos só terá acesso a ele em abril do ano que vem. O prazo para estreia de uma atração na Netflix varia de acordo com as políticas e contratos de cada estúdio, mas o que sempre tentamos é buscar os títulos mais populares.
Veja.com - No Brasil, a Rede Globo é a que mais produz e exibe programas de sucesso, entre eles as novelas. Como é a relação da Netflix com a emissora?
R. H. - Por ser uma rede de grande sucesso, a Globo tem a capacidade de decidir exatamente como e com quem licenciar seu conteúdo. Ela escolhe a forma mais lucrativa e interessante de negociar seus produtos. Temos uma boa relação com a Globo Internacional, e oferecemos conteúdo da emissora fora do Brasil, em toda a América Latina e nos Estados Unidos. Mas eles não nos deixam licenciar conteúdo para exibição pela Netflix no Brasil. Temos relativamente pequeno conteúdo de TV brasileira, em comparação com outros países em que estamos presentes. No México, temos o que é produzido pela Televisa e Azteca, por exemplo. Apenas no Brasil a Globo não está interessada. É um direito deles. Quando começamos nos Estados Unidos, em 2008, a atitude era similar. Hoje temos conteúdo de todas as emissoras e estúdios. Leva tempo para as pessoas entenderem o que fazemos, e como isso é diferente. Nosso negócio é adicionar, não canibalizar. Ninguém deixa de assinar uma TV a cabo porque assinou a Netflix. Não temos notícias, esportes, programas como American Idol ou reality shows. Oferecemos conteúdo de TV em série, e no caso de programas de TV as pessoas podem assistir como se lessem um livro: um episódio após o outro, no ritmo e no momento em que bem entendem.
Veja.com - Não é natural que as emissoras tenham medo do avanço de serviços como a Netflix?
R. H. - Não. Nos Estados Unidos sempre houve o debate a respeito disso, sobre sermos bons ou maus, ou quem vai matar quem nesse negócio. O caso do seriado Mad Men é um bom exemplo para isso. Quando a quinta temporada começou a ser exibida, a audiência da série tinha um milhão de espectadores a mais que a temporada anterior. A razão para isso, acreditamos, é o fato de muitas pessoas terem assistido aos episódios antigos na Netflix. Isso criou, então, expectativa pelos novos episódios. Esta atração tem cinco anos agora, mas o episódio mais assistido na Netflix continua sendo o primeiro, da primeira leva. Isso é um ótimo exemplo de como ajudamos a construir a audiência. Vemos isso acontecer também com Breaking Bad, Sons of Anarchy, e até comédias como How I Met Your Mother. As TVs não podem oferecer tudo de uma vez, mas nós podemos. E isso cria expectativa para a temporada seguinte.
Veja.com - O que impede que mais títulos brasileiros, além da Globo, entrem na grade da Netflix?
R. H. -Procuramos o que as pessoas assistem, de acordo com o número de horas exibidas. Quando viemos ao Brasil pela primeira vez, ficamos impressionados com o sucesso de Chaves no país. Incluímos essa atração e ela foi muito bem. Pensamos: “Como é possível?” Nós analisamos o custo relativo de cada tipo de conteúdo e decidimos pensando em investir com base em quem vai assistir ao título. A complexidade desse processo é que as pessoas têm gostos muito diferentes. Licenciamos o que elas realmente assistem, e não o que dizem querer assistir. Se perguntadas, muitas pessoas dizem que querem grandes filmes de qualidade. É comum encontrar quem afirma gostar de Scorcese e Woody Allen, mas que, pelo que constatamos, passa mais tempo assistindo a filmes de monstros e zumbis. Nós sabemos exatamente o que nossos assinantes estão assistindo.
Veja.com - Há particularidades no assinante brasileiro?
R. H. - No Brasil, adicionamos mais comédia e mais programas infantis. Já temos alguns humoristas, como Rafinha Bastos, e vamos começar com o Pânico! em novembro. Galinha Pintadinha é um dos títulos mais populares do nosso catálogo e tem sido ótimo para nós. Também temos mais animações e conteúdo do UFC. Depois da exibição mundial das lutas, imediatamente negociamos e adicionamos à programação.
Veja.com - O Brasil tem uma produção crescente de cinema independente, e isso também está fora do serviço. Esses filmes não interessam?
R. H. - Um dos problemas dos filmes independentes no Brasil é que são muito difíceis de licenciar. O modelo de propriedade de filmes é muito complexo. Há muitas pessoas envolvidas no financiamento, e os direitos não estão concentrados em uma instituição específica ou pessoa. Veja o que acontece com a Petrobras. Ela financia muitos filmes, mas geralmente não controla os direitos. Ser capaz de construir um acordo de licenciamento por atacado é fundamental no nosso negócio. O melhor para nós é negociar o licenciamento de 30, 50, 100 filmes de uma só vez. Nas produções independentes no Brasil, quando começamos a conversar, vemos que elas têm diferentes participações de propriedade – uma para a música, outra para outra parte, e assim por diante. A negociação se arrasta ou se torna impossível.
Veja.com - Uma nova lei brasileira exige uma conta mínima de conteúdo nacional na TV por assinatura. Foi criada também uma taxação para serviços de vídeo sob demanda. Como isso afeta a Netflix?
R. H. - Os países têm legislações próprias em relação à televisão e à internet, e em alguns há tensões. Queremos que clientes brasileiros tenham mais opções. Estamos estudando as novas regras, e de que forma isso pode afetar nosso negócio. A tecnologia de transmissão de vídeo por internet não é boa só para a Netflix, ou só para as redes, mas para o mercado como um todo. Seria uma pena sacrificar essa inovação, e esperamos que isso não aconteça.
Veja.com - As ações da sua companhia sofreram uma queda abrupta de mercado em 2011 e vêm se recuperando. Recentemente, o senhor adquiriu um milhão de dólares em ações do Facebook, num momento de tendência de queda. Que aprendizado se pode extrair dessas oscilações nas empresas de tecnologia?
R. H. -Gosto de analisar o mercado pensando no que vai acontecer daqui a 20 anos ou mais, não nas oscilações de valor de curto prazo. É assim que devemos agir como gestores. Acredito que as inovações da tecnologia para o lado social terão papel muito forte no futuro, e isso se conecta com o que prevejo para a Netflix. Meu foco é construir uma empresa global, que atenda dezenas de milhões de espectadores. Sou muito confiante e otimista em relação ao crescimento do número de pessoas assistindo TV pela internet nos próximos cinco, dez e vinte anos. E vejo que a tendência é amigos interagindo em relação ao que assiste e gosta de ver na TV. Isso me leva a enxergar futuros longos e brilhantes para as duas companhias.
Veja.com - Paralelamente aos negócios, o senhor sempre teve atuação em educação. As novas tecnologias estão fazendo sua parte para promover avanços nessa área?
R. H. - Meu primeiro trabalho depois da faculdade foi como professor de matemática na África. Vi pessoalmente o desafio que os países em desenvolvimento têm pela frente para formar professores de qualidade. Isso é particularmente importante e difícil quando falamos de matemática e ciências. É preciso garantir acesso universal à educação de qualidade, dos primeiros anos até a faculdade. Se tivermos sucesso nisso, teremos um mundo mais pacífico. A internet e a tecnologia oferecem oportunidades imensas para promover educação. O YouTube é o maior distribuidor de vídeos no planeta, e um dos grandes exemplos de como isso pode ser usado a serviço da educação é Khan Academy, um grupo que distribui vídeos gratuitos com aulas de várias matérias. Sou um dos colaboradores da organização, que recentemente passou a oferecer gratuitamente, a qualquer um com acesso à internet, aulas de introdução à programação e à ciência da computação. Eles não são os únicos. Ações como essas são a prova de que os países precisam investir em conexão de qualidade. Ser capaz de oferecer internet rápida em larga escala vai ser decisivo para a competitividade dos países nos próximos 50 anos.