Revista Exame

A favela quer comprar produtos de alto padrão

Smartphone, TV de 50 polegadas, uísque 12 anos. As periferias brasileiras não se contentam mais com produtos populares. Como as grandes empresas aproveitam esse novo mercado

Casas Bahia na Vila Nova Cachoeirinha, São Paulo: a segunda melhor loja do país (Germano Lüders/EXAME.com)

Casas Bahia na Vila Nova Cachoeirinha, São Paulo: a segunda melhor loja do país (Germano Lüders/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 27 de abril de 2013 às 08h00.

São Paulo - Pelo terminal de ônibus da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, passam 85 000 pessoas todos os dias. Elas fazem a festa de dezenas de vendedores de salgadinhos, bijuterias e guarda-chuvas instalados por ali. Mas elas também aproveitam os momentos de espera para comprar móveis e eletrodomésticos em uma loja da Casas Bahia instalada em meio às bancas de comércio de rua.

Embora a renda familiar na região seja de 1 100 reais por mês, a loja vende basicamente produtos top de linha. As geladeiras do mostruário são quase todas de inox, com preços que chegam a 5 000 reais. Todas as TVs são de tela fina.

O pedaço mais nobre da loja é ocupado pelos smartphones — como o Galaxy S3, da Samsung, que custa 2 100 reais. A loja da Vila Nova Cachoeirinha é o maior fenômeno da rede no país.

Vende 3,5 vezes mais que a média e é a segunda em faturamento entre as 500 unidades do país (fica atrás da loja de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, que tem o dobro do tamanho). “Os clientes não olham o preço, mas a parcela”, afirma Paulo de Andrade, diretor de lojas da varejista em São Paulo.

As empresas descobriram o potencial de consumo da classe C brasileira há mais de uma década. Desde então, conquistar a “base da pirâmide”, na definição consagrada pelo consultor indiano C.K. Prahalad, tornou-se uma obsessão das maiores empresas de bens de consumo e varejistas do país.

Um terreno, no entanto, manteve-se inexplorado: as favelas. Por diversos motivos — da violência às dificuldades de logística —, essas empresas deixaram o consumidor das favelas por último em sua lista de prioridades. Mas isso mudou.

Com renda em alta e um pouco mais de segurança, as empresas brasileiras começaram um ataque às favelas. Um levantamento do instituto de pesquisa Data Favela, criado neste ano por Renato Meirelles, fundador da consultoria Data Popular, revela que os 12 milhões de pessoas que moram nas favelas brasileiras gastaram, em 2012, 56 bilhões de reais.

Hoje, 65% delas pertencem à classe C (veja quadro na próxima página). “Ninguém imaginava que esse mercado consumidor fosse tão relevante. É maior do que o de países como Bolívia e Paraguai”, afirma Meirelles. 

Ganhar espaço nas favelas não tem sido nada fácil. Vender para as classes populares é a especialidade da Casas Bahia desde sua fundação, há mais de seis décadas. Mas tanta experiência não foi suficiente para entender o que o consumidor das periferias brasileiras queria.

No fim do ano passado, a varejista inaugurou uma loja na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, com produtos “típicos” das classes C e D: simples e baratos. Mas acabaram encalhando. Hoje, a loja tem oferta semelhante à das unidades instaladas em shoppings de classe média alta e vende duas vezes mais que a loja da Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade.

A concorrente Magazine Luiza também está se adaptando. Recentemente, sua fundadora, Luiza Trajano, levou executivos da fabricante de eletrodomésticos Whirlpool e da empresa de produtos eletrônicos Samsung à loja da rede na favela de Heliópolis, em São Paulo, para convencê-los de que os moradores da periferia não queriam mais saber de produtos populares.

São casos que ilustram um fenômeno recente nas favelas e periferias brasileiras. Não é novidade que na última década os moradores dessas regiões aumentaram sua renda e começaram a comprar. Mas, agora, eles não se contentam mais com o básico. Querem produtos de alto padrão — e topam pagar caro por isso. 


Os moradores das favelas têm uma euforia consumista ímpar. Passada a fase de comprar o básico, eles agora querem produtos que conferem status. Gastam toda a renda comprando eletroeletrônicos, roupas e perfumaria.

As vendas de uísque do atacadista Roldão, que tem 15 lojas na periferia de São Paulo, dobraram em três anos. Metade das vendas é da marca Johnnie Walker — cuja garrafa custa de 60 a 150 reais. “Antes, a garrafa ficava exposta no armário de vidro, trancada. Hoje, está no meio da loja”, afirma Jef­ferson Fernandes, diretor de marketing do Roldão.

Essa explosão, é bom que se diga, pode estar chegando ao limite, pelo menos momentaneamente. Para o Banco Central, o consumo das famílias crescerá 3,5% neste ano — taxas como as de 2010 estão descartadas.

O maior vilão é o endividamento, que já chegou a 69% das famílias. Segundo uma pesquisa da consultoria especializada em consumo Boa Vista Serviços, na classe C, que responde pela maioria dos moradores das favelas, a situação é grave. Apenas 37% dos consumidores guardam dinheiro. Seis em dez se dizem endividados.

“Houve um aumento forte do crédito, e muitos se endividaram além da conta. Agora, o consumidor está mais educado e as dívidas tendem a cair”, diz Dorival Dourado, presidente da Boa Vista.

Nova estratégia

Para chegar a esse novo cliente, as empresas estão adaptando suas estratégias para atender consumidores exigentes, mas que sofrem com infraestrutura precária — e com altos índices de violência.

Antes da pacificação do Complexo do Alemão, realizada em 2010, os clientes da Vivo, maior operadora de telefonia do país, tinham dificuldade para usar planos de voz e dados porque a operadora não conseguia entrar na favela para instalar antenas. Logo após a retirada dos traficantes, a companhia conseguiu instalar cinco torres na região.

No Parque Santo Antônio, um dos bairros mais violentos de São Paulo, o número de antenas também aumentou de um para cinco em dois anos. “Nas favelas predominava o telefone pré-pago. Agora, a quantidade de smartphones cresceu. Tivemos de investir para que os moradores tenham qualidade de acesso”, afirma Leonardo Capdeville, diretor de redes da Vivo.

O serviço da operadora para as favelas ainda está longe do ideal por causa da dificuldade de encontrar terrenos com a documentação em dia, condição para instalar antenas.

Também a lógica comercial que vale para os consumidores tradicionais nem sempre se aplica às favelas. É outro empecilho para as grandes empresas. A operadora de TV por assinatura Sky, líder em transmissão via satélite, abriu em 2010 lojas nas favelas do Rio de Janeiro, mas não atraiu o número de clientes esperado.

O jogo virou no ano seguinte, quando a empresa adotou uma estratégia comercial inédita em sua história: mais de 100 atendentes começaram a bater de porta em porta para vender o serviço.

A experiência mostrou que, nas favelas, o tradicional porta a porta é imbatível. Depois que o trabalho engatou veio outra surpresa: metade dos assinantes das favelas não quis o pacote básico, que custa 40 reais, e preferiu os de 70 ou 100 reais por mês, com canais em alta definição.

Fazer a ponte entre as grandes fabricantes e os moradores se transformou até em oportunidade de negócio. Celso Athayde, fundador da ONG Central Única das Favelas, do Rio de Janeiro, se associou ao empresário mineiro Elias Tergilene, dono de seis shoppings­ populares, para levar centros de compras com marcas como Hering e Cacau Show para as favelas. O primeiro deve ser inaugurado até o fim do ano no Complexo do Alemão.


A dupla também criou uma distribuidora para levar à periferia produtos a que os donos de mercadinhos só têm acesso pelos atacadistas. A primeira cliente é a fabricante de produtos de consumo Proc­ter&Gamble.

Até o ano passado, para vender os produtos da marca nas favelas, os comerciantes tinham de ir aos atacadistas mais próximos. Esse improviso era péssimo para a P&G. Primeiro porque os comerciantes vendiam apenas o que lhes desse na telha.

Vendiam, por exemplo, a lâmina de barbear da Gillette, mas não a linha completa de produtos. Além disso, com um atravessador no caminho, tudo saía mais caro. “Demorou para reconhecermos que as favelas são um ótimo mercado.

Mas não sabemos o que acontece lá dentro e quanto deixamos de vender. Estamos levantando o número de comerciantes e como podemos abastecê-los de forma eficiente”, diz Gabriela Onofre, diretora de assuntos corporativos da P&G.

Apesar do afã dos moradores de favelas por produtos cada vez mais refinados, muitas empresas ainda têm receio de levar suas marcas sofisticadas para a periferia. “Os executivos acreditam que vão perder os clientes abastados se forem vistos como ‘marca de pobre,’ ” diz Renato Meirelles, do Data Favela.

A fabricante de cosméticos L’Oréal vende nos salões de beleza das favelas sua linha profissional voltada para a classe C, Matrix. As marcas premium, Redken e Kérastase, não chegam lá. Pelo menos por enquanto. Estima-se que existam 170 000 salões registrados no país e pelo menos o dobro de informais.

Foi para chegar a esses locais que a empresa contratou em abril de 2011 uma equipe de microdistribuidores para percorrer regiões pobres do Rio de Janeiro. Atualmente, eles abastecem 6 000 salões. Em agosto, uma equipe entrará na periferia de São Paulo — até o fim do ano serão mais 4 000 salões.

Por enquanto, esses endereços vão vender apenas a marca Matrix. Mas, se o volume de pedidos continuar a aumentar, a empresa não descarta levar o que tem de melhor para os salões da periferia. Se valer para a L’Oréal o que vale para a Casas Bahia na Vila Nova Cachoeirinha e para as outras empresas que estão descobrindo as favelas, não vai demorar muito.

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