(Meaghan Skinner Photography/Getty Images)
Rodrigo Caetano
Publicado em 26 de outubro de 2021 às 18h30.
Última atualização em 5 de novembro de 2021 às 12h54.
Desde o surgimento do carro a álcool, a possibilidade de contar com um combustível alternativo produzido no Brasil se apresentou como uma panaceia para o alto custo dos combustíveis fósseis, como o diesel e a gasolina. Sua viabilidade, no entanto, só se tornou realidade graças a uma inovação tecnológica, o carro flex. Somente quando os consumidores puderam escolher entre um e outro que o etanol de cana-de-açúcar realmente pegou no Brasil.
Atualmente, quase 90% dos carros vendidos no país são flex. Ainda que o preço do combustível alternativo, na prática, seja o mesmo da gasolina (ele é mais barato, porém rende menos), o motorista brasileiro gosta de contar com a escolha – e existem aqueles que preferem usar um combustível renovável em qualquer ocasião, independente do preço.
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O etanol, apesar de estar consolidado como alternativa à gasolina no Brasil, passará por um teste de fogo nos próximos anos. Seu status de combustível para mobilidade será desafiado por uma nova tecnologia, que promete, além de reduzir as emissões, custos mais baixos para o motorista. O carro elétrico à bateria pode tornar o etanol obsoleto, caso a indústria decida que o motor a combustão deixe de existir.
A indústria sucroalcooleira aposta que não. “O etanol será uma alternativa à mobilidade elétrica”, afirma Luís Roberto Pogetti, presidente do conselho de administração da Copersucar, maior cooperativa sucroalcooleira do país. “Tudo vai depender do contexto de cada região.” Pogetti afirma que a pegada de carbono do etanol é mais limpa que a do carro à bateria, considerando todo ciclo de vida do sistema, “do solo à morte”, como se diz. “Se considerarmos apenas do solo à roda, ainda é competitivo”, diz o executivo.
Brasil fez lobby pelo etanol junto ao IPCC
Documentos obtidos pela agência de notícias britânica BBC mostram que o Brasil defendeu o etanol junto ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), entidade que produz um relatório climático utilizado pelos governos para balizar as discussões nas Conferências do Clima da ONU, as COPs. Os cientistas do IPCC avaliam que a produção de biocombustíveis, como o etanol, provoca a substituição de florestas por monoculturas.
Para o governo brasileiro, essa avaliação é errada, pois a cana-de-açúcar não vem avançando sobre áreas de floresta virgem, mas sim sobre áreas degradadas. A indústria sucroalcooleira também tem pouca ou nenhuma responsabilidade sobre o desmatamento da Amazônia. Governos europeus e o Canadá, especificamente, argumentam, por sua vez, que o governo Bolsonaro reduziu a proteção à floresta e que o desmatamento quase triplicou nos últimos anos.
Pogetti, da Copersucar, acredita que essa discussão deve levar em conta as características de cada país. “O carro elétrico será, provavelmente, a solução para a Europa. Em outras regiões, notadamente na América Latina e na Índia, o etanol se apresenta como uma boa alternativa”, afirma.
O governo brasileiro e empresas sucroalcooleiras, como a Raízen, já negociam com o governo indiano um apoio tecnológico para desenvolver a indústria de etanol de cana no país. A Índia é uma grande produtora da commodity, porém, a maior parte é usada para produzir açúcar. Há uma grande política de subsídios para os fazendeiros, e o Brasil reclama que isso gera um desequilíbrio no mercado global. Incentivar o etanol seria uma maneira de evitar que haja excedente de produção de açúcar subsidiado.
O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou em junho a meta de misturar 20% de etanol à gasolina até 2025, cinco anos antes do planejado. O governo também planeja acelerar um programa de etanol que desviará até 6 milhões de toneladas de açúcar para a produção do combustível anualmente até 2025, de acordo com o Ministério da Alimentação. É quase todo o volume que a Índia, segundo maior produtor mundial depois do Brasil, exporta atualmente para o mercado global.
Para Pogetti, a COP26, que começa na próxima semana, será decisiva para as intenções do Brasil de transformar o etanol em uma alternativa global de descarbonização da mobilidade e dos transportes.
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Parceria com a indústria automotiva
Há também esperança de uma coexistência pacífica entre os carros a etanol e os elétricos. O motivo: o etanol pode ser usado como parte de carros elétricos capazes de produzir a própria energia. Atualmente, modelos como Tesla dependem do abastecimento externo em postos construídos praticamente do zero mundo afora. Massificar essa infraestrutura vai exigir investimentos pesados nos próximos anos. A aposta dos defensores do etanol é num modelo de carro elétrico movido a etanol que, transformado em vapor, libera células de hidrogênio dentro do próprio veículo — e sem o carregamento externo.
Recentemente, a montadora Volkswagen fechou parceria com a Única, associação das indústrias sucroalcooleiras, para desenvolver a célula de combustível a etanol. “Tirar proveito da matriz já limpa do Brasil e investir em novas tecnologias é a grande vantagem que temos por aqui”, afirmou Pablo Di Si, presidente da VW para a América Latina, no início do ano. Ainda assim, a montadora alemã deverá lançar 60 modelos elétricos convencionais nos próximos cinco anos.
Na Stellantis, grupo que reúne as marcas Fiat, Chrysler, Jeep, Peugeot e Citroën, a ordem é seguir investindo em etanol enquanto os testes com modelos elétricos são realizados. Já a BMW está desenvolvendo um extensor de autonomia para o primeiro veículo elétrico da marca vendido no Brasil, o i3. O motor a combustão será movido a etanol, garantindo neutralidade na emissão de carbono.
Embora existam indicativos de que a indústria automotiva pode manter o etanol como alternativa, o consenso está apenas na eletrificação crescente da mobilidade. A esperança da indústria sucroalcooleira é de um mundo onde diferentes regiões operem matrizes diferentes de combustível e mais de uma linha de desenvolvimento tecnológico.
Efeito Osborne: é preciso combinar com o consumidor
Outro risco enfrentado pela indústria do etanol é o chamado “efeito Osborne”. A expressão foi cunhada a partir da experiência do americano Adam Osborne, que, no início dos anos 80, desenvolveu um dos primeiros computadores portáteis da história, sucesso de vendas. Osborne, no entanto, logo anunciou que faria uma segunda versão da máquina, com muito mais recursos. Diante da expectativa de uma versão melhorada, as pessoas deixaram de comprar o modelo atual. A queda foi tão grande que a empresa quebrou antes de conseguir lançar o segundo produto.
“O principal motivo para a eliminação do etanol como alternativa aos carros virá do fim da fabricação de motores a combustão interna”, diz Paulo Puterman, doutor em biotecnologia pela Universidade de São Paulo e fundador da CorNatural, empresa de tecnologias para reciclagem. Para ele, a aposentadoria dos automóveis a combustão tem data marcada: 2026, ano em que o motor elétrico deve estar consolidado como opção mais competitiva.
A bola de cristal de Puterman traz também boas notícias aos produtores de cana-de-açúcar. A geração de energia com a queima do bagaço da cana, considerada tão limpa quanto à da usina eólica ou solar, pode manter a demanda. Nessa seara há espaço de sobra para a expansão dos negócios.
Atualmente, só 15% do potencial energético da cana-de-açúcar vira, de fato, eletricidade. Tudo isso gera por volta de 10% da luz consumida pelos brasileiros. Para Evandro Gussi, presidente da Unica, associação das indústrias sucroalcooleiras, só a cana-de-açúcar poderia render de 20% a 30% da eletricidade consumida no país. “Resolveria a crise hídrica”, afirma Gussi. “O ápice da produção de cana é justamente entre julho e novembro, meses mais secos no país.”
Há espaço para o etanol na nova matriz energética global de baixo carbono? Tudo indica que sim. A questão é qual será o papel do combustível nessa transição energética. É o que a COP26 deve resolver.