Com pagamentos, o WhatsApp vai virar o WeChat, o super app chinês?
O WhatsApp anunciou pagamentos direto pelo app no Brasil. Na China, as empresas de tecnologia já dominam não só as redes sociais, mas as finanças
Carolina Riveira
Publicado em 16 de junho de 2020 às 18h07.
Última atualização em 17 de junho de 2020 às 17h36.
O WhatsApp sacudiu o mercado brasileiro nesta segunda-feira, 15, ao anunciar uma função de pagamentos pelo aplicativo. A opção de pagar amigos e empresas pelo WhatsApp estará disponível a partir das próximas semanas.
A nova funcionalidade marca a estreia do maior aplicativo de mensagens do Brasil (e de boa parte do mundo) no segmento financeiro. E pode ser um passo a mais do Facebook em um plano de aumentar a quantidade de serviços disponíveis em seus aplicativos -- indo além das redes sociais.
O maior exemplo vem da China: o WeChat, o "WhatsApp chinês", tem mais de 1 bilhão de usuários e está em mais de 90% dos celulares do país. Por ele, é possível fazer de tudo, de trocar mensagens a jogar ou comprar online. Mas seu braço financeiro, por meio do WeChat Pay, é parada obrigatória para comerciantes em toda a China, devido à alta disseminação entre os clientes.
O Brasil é o primeiro país onde o serviço do WhatsApp foi lançado de forma oficial. O país é o segundo maior mercado do WhatsApp, com 120 milhões de usuários ativos mensais, atrás da Índia. No mundo, são mais de 1 bilhão de pessoas.
"Eu não sei se o WhatsApp quer eventualmente ter tudo que o WeChat tem, mas certamente a parte financeira do WeChat é algo no qual o Facebook se espelha", diz Bruno Chan, presidente e fundador da fintech sino-brasileira CrediGO, que oferece gestão de contas bancárias para pessoas físicas e opções de divulgação de serviços para instituições financeiras. A CrediGO tem parte da equipe na China e é acelerada por lá.
Enquanto no Brasil o mercado de pagamentos ficou mais pulverizado nos últimos anos, com competição entre bancos, varejistas e fintechs, na China há praticamente um duopólio. O WeChat, que é controlado pela empresa de tecnologia Tencent, divide o mercado de pagamentos com o Alipay, braço financeiro da varejista online Alibaba.
Por ora, o serviço de pagamento do WhatsApp será mais simples que o do WeChat, sem uma carteira digital. O dinheiro que um usuário enviará aos contatos pessoa física virá de um cartão de débito; depois, cai direto na conta do destinatário. A transferência é instantânea para pessoas físicas. Nos pagamentos para empresas, o pagamento pode ser feito também por cartão de crédito (o prazo nesse caso será de um dia no débito e dois no crédito).
O WhatsApp não armazenará, portanto, o dinheiro dos clientes. Os pagamentos serão processados pela Cielo, única adquirente parceira anunciada por ora.
Para duas fontes do mercado ouvidas pela EXAME, é uma possibilidade grande que o Facebook, no futuro e após os testes, integre uma carteira digital própria ao app.
Uma carteira digital armazena o dinheiro e, só depois, o usuário decide se quer transferi-lo a uma outra conta bancária. É o formato usado pelo WeChat e por fintechs como PicPay ou Mercado Pago no Brasil, e, nos Estados Unidos, por nomes como a Venmo, do PayPal (que, com mais de 40 milhões de usuários e popularidade entre os jovens, virou até verbo em inglês e resiste às investidas do Facebook no país).
A busca pelo super app
O WeChat também vem de um cenário um pouco diferente das redes sociais ocidentais por ter o que os especialistas chamam de um ecossistema completo, com diversos serviços oferecidos dentro do app. A Tencent ganha sobretudo com publicidade em jogos na plataforma.
Já o Facebook é dono das maiores redes sociais do mundo ocidental: além da rede social homônima e do WhatsApp, controla também o Instagram. Juntas, as redes somam mais de 3 bilhões de usuários ativos. A principal receita é também com publicidade -- com exceção do WhatsApp, que não tem anúncios.
Nos últimos anos, o Facebook dá passos para ampliar seu ecossistema. Lançou opções de compras dentro da rede social (principalmente de itens usados em grupos) e o Facebook Pay, sua opção de pagamentos -- a tecnologia por trás das transferências no WhatsApp.
Nos Estados Unidos, já há desde 2017 a opção de transferir dinheiro a amigos pelo Facebook Messenger, que é mais usado entre os americanos do que o WhatsApp.
Mark Zuckerberg, fundador e presidente do Facebook, ainda não tem um ecossistema comparável ao do WeChat, e não se sabe até que ponto deseja ter um. Mas ter usuários ativos em larga escala e uma série de serviços reunidos no mesmo ambiente é uma vantagem para chegar lá.
O mesmo vale para outras empresas de tecnologia americanas, como Apple, Google e Amazon. É graças ao conceito de ecossistema que a Apple consegue, por exemplo, vender softwares e outros produtos plugados a seu carro-chefe, os celulares iPhone.
Os que chegam mais perto de um ecossistema como esse no Brasil vêm do varejo, diz um relatório do banco UBS divulgado ontem após o anúncio do WhatsApp. O Mercado Pago e a Ame Digital, segundo o UBS, têm os formatos mais capazes de resistir às grandes redes sociais e empresas de tecnologia.
O Mercado pago se pluga aos milhões de usuários do Mercado Livre, que, só no Brasil, responde por um terço das vendas online. As controladoras da Ame Digital, B2W e Lojas Americanas, têm mais de 20% do e-commerce brasileiro.
Ainda assim, a frequência de uso de uma varejista é de, no máximo, algumas vezes por ano ou, para os clientes mais fiéis, algumas compras por mês, e a tendência é que nem todos os contatos de um usuário usem o mesmo app.
A Alibaba é uma exceção porque domina o comércio eletrônico chinês há duas décadas. Enquanto, no Brasil, o varejo online é mais pulverizado. A China também também tem mais de 40% das compras online, enquanto o Brasil tem na casa dos 6% (ainda que essa taxa deva subir para 10% diante da pandemia neste ano). Ponto para o WhatsApp e as empresas de tecnologia.
"Eles [o WhatsApp] têm uma vantagem competitiva insuperável, que é uma hora e meia por dia de contato direto com o usuário. Ninguém tem isso”, afirmou em entrevista anterior àEXAME o ex-executivo da Cielo e da PagSeguro, Davi Holanda, hoje na plataformaBankly, que oferece serviços financeiros.
Taxas altas no WhatsApp
Na outra ponta, uma das barreiras do serviço do WhatsApp até agora é uma taxa alta, de 3,99% por transação para empresas que quiserem aceitar pagamentos pelo app. Para os clientes pessoa física, o serviço de pagamentos será gratuito.
É uma das taxas mais altas do mercado para a função débito. Com a disseminação de novas opções de maquininhas de cartão e carteiras digitais, os custos às empresas usuárias vinham ficando cada vez mais baratos. Hoje, já é possível encontrar taxas menores do que 2% em empresas como PagSeguro, Mercado Pago, Rede, Safra Pay e C6 Pay. A própria Cielo, parceira nos pagamentos do WhatsApp, tem taxa menor, de 2,39% no débito.
Na China, a taxa no WeChat e do AliPay fica abaixo de 0,7% para as empresas.
A soma de preços baixos e alta adesão dos clientes fez WeChat Pay e Alipay dominarem mesmo o mundo offline. A China pulou a fase das maquininhas e dos cartões e foi direto para o QR Code nos pontos de venda, uma tecnologia ainda pouco disseminada entre o público no Brasil.
O WhatsApp, por ora, também não ofereceu no novo serviço nenhuma opção com QR Code. Isso não impede a ferramenta de ser usada mesmo pelos comerciantes de lojas físicas, embora as taxas mais altas, novamente, possam ser um empecilho.
É com base na experiência chinesa que carteiras digitais vinham tentando fincar a bandeira no varejo brasileiro. Os QR Codes físicos, posicionados em balcões de bares e restaurantes, começaram a ganhar as grandes cidades no último ano. (Já durante a pandemia, os QR Codes foram usados por mais de 2 milhões de usuários para doar em lives de artistas ).
Para os consumidores, outra trava do setor até agora é uma certa "bagunça de códigos": cada QR Code só funciona no app de sua respectiva marca, o que leva a uma dezena de apps que o cliente precisaria ter. Foi um desafio pelo qual a China não passou com o duopólio Alibaba e Tencent.
Com tantas carteiras digitais surgindo, pode acontecer uma consolidação nos próximos anos, segundo disse anteriormente àEXAME Guilherme Horn, conselheiro da AB Fintechs e executivo do banco BV. "Afinal, o usuário não terá cinco aplicativos financeiros", disse.
O setor de pagamentos brasileiro também se prepara neste ano para outra revolução: o PIX, serviço de pagamentos instantâneos regulado pelo Banco Central e que entra em vigor em novembro. O PIX é aguardado sobretudo pelas fintechs, que veem na medida do BC um incentivo à concorrência com os bancões e à redução das taxas.
Com a chegada do WhatsApp, o PIX, outrora criticado pelos grandes bancos, também pode ser incentivado até pelas instituições financeiras, já que, nele, os bancos e fintechs podem se mostrar uma opção competitiva ao WhatsApp.
Seja como for, o WhatsApp ainda terá travas antes de dominar o setor financeiro do Brasil como o WeChat dominou a China. Mas pode estar só no começo.