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Venezuela: entre banheiros e ameaças

O Mercosul é realmente peculiar. O bloco ficou conhecido por ter uma lista de exceções de produtos com tarifa zero maior do que aqueles que nela se incluíam. Agora, no momento em deveria estar focado nas negociações com a União Europeia — que se arrastam há 20 anos — e com outros parceiros comerciais, o bloco […]

DELCY RODRÍGUEZ: para a chanceler, Serra “se soma à conspiração da direita internacional contra a Venezuela” / Andres Stapff/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 12 de julho de 2016 às 19h54.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h02.

O Mercosul é realmente peculiar. O bloco ficou conhecido por ter uma lista de exceções de produtos com tarifa zero maior do que aqueles que nela se incluíam. Agora, no momento em deveria estar focado nas negociações com a União Europeia — que se arrastam há 20 anos — e com outros parceiros comerciais, o bloco é obrigado a mobilizar suas energias em um imbroglio a respeito de um país membro que não crê nos dois pilares que o sustentam: livre comércio e democracia. Três de seus fundadores — ou melhor, dois e meio, já que a Argentina está em cima do muro, enquanto Paraguai e Brasil estão firmes — querem evitar que a Venezuela assuma a presidência de turno de qualquer maneira. O resultado é um tremendo quiproquó.

Bem ao estilo chavista, a chanceler venezuelana, Delcy Rodríguez, apareceu sem ser convidada no Ministério das Relações Exteriores em Montevidéu, nessa segunda-feira 11, na reunião restrita aos quatro membros fundadores. O desembarque intempestivo lembrou a época em que seu falecido líder, Hugo Chávez, telefonava já de seu avião para avisar o então presidente Lula que estava voando para Brasília, para bater papo. Até Lula, que precisava da amizade de Chávez e dos outros “socialistas” sul-americanos para acalmar seu público interno de esquerda, enquanto mandava ver na política econômica “neoliberal”, foi se cansando da informalidade do “compañero” caribenho.

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Delcy foi recebida com toda a paciência pelo anfitrião Nin Novoa, ministro das Relações Exteriores do Uruguai, que quer seguir a norma da ordem alfabética e passar a presidência para a Venezuela, e pelo vice-chanceler argentino, Carlos Foradori, que lhe explicaram as posições de Brasil e Paraguai. A ministra venezuelana saiu dizendo que o subsecretário para América do Sul, Central e Caribe, Paulo Estivallet, e o chanceler paraguaio, Eladio Loizaga, tinham se “escondido no banheiro” para não se encontrarem com ela. A conversa descambou então para a escatologia, com Lizaga explicando que, se tinham ido ao banheiro, deve ter sido atendendo a uma “necessidade fisiológica”.

Delcy brincou que os representantes de Brasil e Paraguai deviam sofrer de “almagrite”, em referência ao secretário-geral da Organização de Estados Americanos (OEA), o uruguaio Luis Almagro, em campanha para suspender a Venezuela do órgão, por violação à sua Carta Democrática (chanceler no governo do ex-guerrilheiro José Mujica, Almagro dá uma no cravo outra na ferradura: denunciou o impeachment de Dilma Rousseff como “golpe”). “Esta é a má educação da direita da região, que pretende não reconhecer as normas de funcionamento do Mercosul”, sentenciou Delcy. Interessante a chanceler chavista falar em educação e em normas. Tanto um conceito quanto o outro, como de resto tudo na vida, é visto pelos chavistas pelo filtro ideológico.

Problema de origem

A Venezuela entrou de supetão no Mercosul, em 2012, sem aderir às normas do bloco. Na verdade, foi empurrada para dentro pelas “presidentas” Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, depois de supender o Paraguai, acusado de violar a Carta Democrática, por ter feito o impeachment do presidente de esquerda Fernando Lugo, num procedimento do Senado que seguiu a Constituição paraguaia à risca. Dominado pela centro-direita, o Senado não havia referendado a entrada da Venezuela no bloco. A suspensão e entrada pela porta dos fundos da Venezuela foram uma traição ao Paraguai. Que agora dá o troco.

Na semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acompanhou o chanceler José Serra a Montevidéu, para tentar convencer o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, a não entregar a presidência à Venezuela. Mas cada um sabe onde o calo aperta. Tabaré está premido por seu partido de esquerda, Frente Ampla. Mais moderado que Mujica, o presidente anunciou um plano de aumento de impostos e corte de gastos para o ano que vem. Como Lula no primeiro mandato, faz graça com a política externa, enquanto tenta manter a responsabilidade fiscal.

As gestões brasileiras enfureceram a irascível Delcy. “A República Bolivariana da Venezuela rechaça as insolentes e amorais declarações do chanceler de facto do Brasil”, escreveu a chanceler em sua conta no Twitter, repetindo a expressão “de facto” para reforçar a tese de que o impeachment de Dilma foi um golpe. “O chanceler de facto José Serra se soma à conspiração da direita internacional contra a Venezuela e viola princípios básicos que regem as relações internacionais.”

No melhor estilo do Itamaraty, o Brasil está tentando evitar um confronto e ganhar tempo — e como parte dessa tática Serra anunciou na semana passada que não iria a Montevidéu, porque tinha um compromisso na China (distraído, acabou não indo para Pequim, na segunda-feira).

A chanceler argentina, Susana Malcorra, também não foi a Montevidéu. Mas o caso dela é mais complicado. Em sua primeira entrevista coletiva como presidente eleito, em novembro, o argentino Mauricio Macri defendeu a suspensão da Venezuela do Mercosul se não soltasse os presos políticos e não permitisse a realização do referendo revogatório de Nicolás Maduro.

Nos últimos meses, no entanto, Macri tem se omitido sobre o assunto. Como o governo de Barack Obama, o argentino parece acreditar que isolar os chavistas seja pior para os venezuelanos. Susana sonha com o cargo de secretária-geral das Nações Unidas, e não está muito a fim de se indispor com os governos de esquerda que restam na região: Uruguai, Bolívia, Equador, Nicarágua e Cuba.

Embora a presidência uruguaia expire nesta quarta-feira, 13, a ideia em Brasília é empurrar a transmissão para agosto, quando vencem os quatro anos dados para a Venezuela adotar as 1.100 normas comerciais e os tratados políticos do Mercosul, que versam sobre democracia e direitos humanos. Até aqui, os venezuelanos aderiram a cerca de 500, faltando a Tarifa Externa Comum, a defesa da concorrência e outras bases do bloco, como o fim dos presos políticos.

Qual a solução?

“Do ponto de vista político, é melhor que a Venezuela volte ao status de observador”, sugere o embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), de São Paulo. Com esse status, os venezuelanos não poderiam presidir o bloco, e pela ordem alfabética os próximos seriam os argentinos. “O Brasil deve argumentar que é a Venezuela que está em falta com o Mercosul, e não o contrário”, continua Barbosa, interlocutor frequente de Serra. “Não é preciso expulsar nem punir, apenas reconhecer que o protocolo de adesão não foi cumprido.”

Barbosa depôs no Senado em 2012 contra a entrada da Venezuela. “Depois que falei, o governo (Dilma) usou o rolo compressor e aprovou”, recorda ele. “Politicamente, foi uma confusão em que se meteram.”

Falando em nome do governo brasileiro em Montevidéu, Estivallet avançou na direção de assumir a dimensão política desse erro: “Para o governo do Brasil, está claro que há um problema de política na Venezuela que põe em dúvida se as credenciais neste momento para assumir a presidência são as que se esperam”.

Barbosa considera que o imbróglio venezuelano não afeta as negociações com a União Europeia, porque elas são conduzidas apenas pelos membros fundadores: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas é possível que o tema venha à tona, nem que seja para cutucar o Mercosul, nos momentos de impasses. No dia 7, o chefe da Divisão de América do Sul da UE, o holandês Adrianus Koetsenruijter, disse em Madri: “A situação na Venezuela está difícil. Vemos como um possível obstáculo para essa negociação (com o Mercosul)”.

Enquanto Delcy vociferava em Montevidéu, no seu país os sinais vitais da livre iniciativa e do funcionamento da economia continuavam enfraquecendo. O Citibank anunciou que encerraria suas atividades na Venezuela e a Kimberly-Clark fechou sua fábrica de papel higiênico — um bem já escasso no país. Mais um motivo para a obsessão de Delcy com banheiros.

(Lourival Sant’Anna)

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