Mundo

Vacroux, de Harvard: falta de um vencedor prolonga guerra na Ucrânia

Com a guerra na Ucrânia completando um ano, nenhum lado tem vantagem clara, mas ambos acreditam que podem vencer — e não têm incentivo para abrir mão disso, diz professora de Harvard

Alexandra Vacroux, de Harvard: "Rússia não pode se dar ao luxo de perder o apoio chinês" (Alexandra Vacroux/Divulgação)

Alexandra Vacroux, de Harvard: "Rússia não pode se dar ao luxo de perder o apoio chinês" (Alexandra Vacroux/Divulgação)

Carolina Riveira
Carolina Riveira

Repórter de Economia e Mundo

Publicado em 24 de fevereiro de 2023 às 06h12.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2023 às 09h32.

Perguntada sobre quais fatores depois da queda da União Soviética (URSS) levaram Vladimir Putin a conseguir se perpetuar no poder na Rússia e a decidir invadir a Ucrânia em fevereiro passado, Alexandra Vacroux dá um longo suspiro. “Há cursos inteiros sobre isso”, diz ela. A pergunta é mesmo complexa, e responder a como chegamos aqui é parte de seu trabalho como diretora-executiva do Davis Center para Estudos de Rússia e Eurasia, na Universidade Harvard. Um ex-espião da KGB, serviço secreto soviético, Putin galgou seu lugar ao sol na política russa depois do desmantelamento da antiga potência, chegou à presidência em 1999 e, no geral, lá se manteve desde então — ajudado por fatores tão múltiplos que vão do caos dos anos 1990 aos bons momentos do petróleo. Enquanto a URSS liderada por Vladimir Lenin instaurou Rússia e Ucrânia como repúblicas, Putin resolveu reler até mesmo essa parte da história e, desde o ataque à Crimeia em 2014, tenta provar militarmente que a Ucrânia nada mais é do que um aglomerado de “pequenos russos”, argumenta Vacroux em entrevista à EXAME neste mês.

É nesse impasse inconciliável de visões que a guerra na Ucrânia completa um ano neste 24 de fevereiro, sem sinal de resolução no horizonte. Em entrevista dias antes de acenos recentes como a visita surpresa de Joe Biden a Kiev e o encontro de diplomatas russos e chineses, Vacroux faz um balanço do primeiro ano do conflito, as mudanças na relação entre China e Rússia e o impasse que o mundo terá pela frente. “No momento, ambos os lados pensam que podem vencer e não têm nenhum incentivo para abrir mão disso”, diz ela. “Será um ano muito difícil.” Veja abaixo os principais trechos da entrevista (e leia a matéria completa na edição deste mês da EXAME).


Em fevereiro de 2022, havia muitas análises dizendo como a Rússia poderia tomar Kiev em dias. Isso não aconteceu. Isso configura certa derrota para Putin? O que a Rússia ganhou até aqui ao ter começado essa guerra?
Se olharmos em termos de território, a Rússia conseguiu ocupar quase 20% da Ucrânia. Então, ainda que a estratégia inicial tenha falhado, houve alguns sucessos militares. Dito isso, a situação não parece particularmente boa para nenhum lado neste momento. Eu não esperaria movimentos que consigam desequilibrar a guerra tão cedo para algum lado — embora estejamos ouvindo agora que os russos estão preparando uma ofensiva na primavera [do hemisfério norte, a partir do fim de março].

Quanto apoio tem a guerra dentro da Rússia hoje? Essa política interna pode vir a afetar a capacidade militar, ou não?
Não sabemos ao certo, porque é muito difícil fazer pesquisa de opinião. Mas não há nenhuma indicação de que haja uma agitação em massa. É um pouco como quando os EUA estavam no Iraque ou no Afeganistão, a maioria dos americanos não estava olhando para ver o que acontecia lá. Portanto, não vejo que haja um grande problema para Putin no curto prazo.

Para o futuro, ele tem eleições em 2024, que pode vencer — artificialmente ou até naturalmente —, e imagino que isso criará alguma pressão sobre o Kremlin para gerar apoio popular para o conflito. Mas isso ainda está longe.

Zelensky no Parlamento Europeu, em fevereiro: o Ocidente ensaia enviar equipamentos mais modernos (Omar Havana/Getty Images)

O que significa “vencer a guerra” hoje em dia, para os dois lados?
Para a Rússia, vencer era “desnazificar a Ucrânia”, um eufemismo para “nossa pessoa dirige a Ucrânia e a Ucrânia faz o que queremos”. Isso não é alcançável hoje. Já uma vitória da Ucrânia, conforme o que foi dito por Zelensky em outubro, seria fazer a Rússia deixar todos os territórios ocupados, incluindo a Crimeia. Isso também não é realista hoje. Porém, as guerras terminam não porque os lados mudam seus objetivos, mas porque um dos lados entende que não tem mais capacidade para atingi-los.

"No momento, ambos os lados pensam que podem vencer e não têm nenhum incentivo para abrir mão disso. "

Olhando para trás, a própria maneira como o Ocidente reagiu quando Putin anexou a Crimeia em 2014 é considerada uma das ações que encorajaram Putin [a invadir toda a Ucrânia agora]: ok, haveria algumas sanções, algumas palavras desagradáveis, e então todos voltariam ao normal. Portanto, o problema de forçar a Ucrânia a fazer algum tipo de concessão territorial é que isso apenas encoraja a Rússia a se rearmar e até tomar mais territórios no futuro já que o “o Ocidente não se importa”.

Gostaria de usar sua expertise, já que estamos aqui, para explicar um pouco para nossa audiência brasileira sobre como a Rússia e Putin chegaram ao ponto em que estão hoje. Quando a URSS acabou, houve uma discussão de que a Rússia talvez passasse a ter uma aproximação com o resto da Europa e alternância de poder. Mas Putin, na prática, governa há 20 anos. Que fatores na organização da sociedade pós-URSS fizeram com que Putin pudesse se perpetuar no poder?
É muito difícil resumir em poucas palavras. Uma das coisas que acreditamos que nos trouxeram até aqui foi que os anos 1990 foram caóticos para muita gente. Então, Putin veio em 2000 e disse que iria impor a lei e a ordem — o que parecia um bom negócio para as pessoas, porque elas estavam exaustas. E a alta no preço do petróleo também ajudou o governo a poder fazer mais gastos, o padrão de vida nos anos 2000 estava melhorando. Até que, com a crise de 2008, os preços do petróleo voltam a cair e Putin faz seu discurso em Munique, dizendo que a Otan estava basicamente ameaçando a Rússia. Vemos a partir daí um aumento na agressão verbal ao Ocidente, que de certa forma culmina na anexação da Crimeia [em 2014]. À qual o Ocidente não reage muito fortemente: note que o gasoduto Nord Stream 2 [para fornecer gás à Alemanha] foi assinado em 2015. Ou seja, passou-se uma mensagem de que estava tudo bem invadir a Crimeia.

Enquanto isso, internamente na Rússia, Putin continuou a consolidar seu controle sobre as instituições. Os oligarcas aceitaram, porque havia estabilidade, muito potencial para enriquecer. Porém, a popularidade de Putin começa a cair novamente em 2017-18, em parte porque Navalny [opositor de Putin, hoje preso] começa a produzir vídeos anticorrupção. Não sabemos ao certo, mas é possível que Putin tenha pensado: “bom, e se pegamos mais um pedaço da Ucrânia? Da última vez ajudou”.

Putin em 1999: o ex-espião da KGB chegou ao poder no ano seguinte e lá se manteve (AP Pool/AFP/Getty Images)

Nessa linha, por que o intuito de Putin de invadir a Ucrânia agora?
São três explicações concorrentes. Uma é que a Otan o obrigou a fazer isso, porque a Otan continuou se expandindo e a Rússia se sentiu ameaçada, então a situação seria culpa do Ocidente — o que eu pessoalmente não acredito ser o principal motivo, mas é algo que os russos têm dito. A segunda é que a Rússia e Putin não acreditam que a Ucrânia tenha o direito de existir, que é uma espécie de acidente da história que existiu como uma república separada na União Soviética e os ucranianos nada mais são do que "pequenos russos". Não sei se Putin passou a [pandemia da] covid lendo livros de história e depois decidiu que tinha entendido tudo, mas ele escreveu um longo ensaio no verão de 2021 basicamente dizendo que a Ucrânia não tinha o direito de existir.

Quando Putin disse que a Ucrânia era “criação do Lênin” [um dos líderes na criação da URSS]...
Exato. Então, agora ele estaria apenas restaurando as terras russas. E a terceira explicação é que talvez haja fatores domésticos que levaram a essa decisão. Talvez eles estivessem com medo de que a popularidade estivesse caindo e algo tivesse de ser feito. Não sabemos realmente qual desses motivos está motivando Putin.

(Arte/Exame)

Passado um ano de guerra, qual é até o momento o papel da China no conflito? Podemos dizer que foi uma inflexão na ordem global como a conhecíamos ter China e Rússia de certa forma do mesmo lado? Ainda que indiretamente, sem envio de armas, por exemplo. 
Acho que é certamente uma inflexão no caso do poder da Rússia. A Rússia se saiu muito bem em termos de alavancar a sua posição relativamente fraca na ordem global, digamos assim, para uma de “peso pesado”. Mas mesmo que a Rússia esteja causando muitos problemas agora, está definitivamente em declínio, porque é extremamente dependente da China. Muitos dos produtos que a Rússia tem de vender ou comprar têm passado pela China. A China compra, com um bom desconto, muito do petróleo russo que os europeus agora não vão mais comprar.

"Embora os russos sempre apresentem a relação com a China como uma parceria entre iguais, fica claro que a Rússia é o parceiro “júnior”."

Neste momento, a Rússia não pode se dar ao luxo de perder o apoio chinês. Há uma preocupação, porque não é bom ter, digamos, os EUA e o Ocidente de um lado e a Rússia e a China juntas do outro. Já um dos fatores positivos é que a China e Xi Jinping, até o momento, deixaram muito claro que [usar] armas nucleares não são aceitáveis. E acredito que isso gera uma restrição sobre o que a Rússia pode fazer, até onde pode ir, algo que de outra forma não teríamos.

Há algo que acha importante mencionar de tudo isso que falamos?
Só que o próximo ano vai ser muito difícil.


Essa entrevista faz parte de matéria especial sobre o um ano de guerra na Ucrânia, presente na edição 1.248 da EXAME. Clique aqui para ler a matéria completa e veja todas as reportagens desta edição

Acompanhe tudo sobre:GuerrasHarvardRússiaUcrâniaVladimir Putin

Mais de Mundo

Trump nomeia Robert Kennedy Jr. para liderar Departamento de Saúde

Cristina Kirchner perde aposentadoria vitalícia após condenação por corrupção

Justiça de Nova York multa a casa de leilões Sotheby's em R$ 36 milhões por fraude fiscal

Xi Jinping inaugura megaporto de US$ 1,3 bilhão no Peru