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Debate civilizado não deve mudar os rumos da eleição americana

Trump se comporta e encaixa golpes em Biden, mas o democrata teve desempenho seguro e jogou pelo empate

Eleições americanas: último debate entre Donald Trump e Joe Biden (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)

Isabela Rovaroto

Publicado em 23 de outubro de 2020 às 06h33.

Última atualização em 23 de outubro de 2020 às 09h11.

Donald Trump e Joe Biden se enfrentaram na noite de ontem no segundo e último debate da campanha presidencial americana. O evento transcorreu num clima civilizado e de normalidade, ao contrário do primeiro confronto, três semanas atrás.

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Mas, com uma parcela pequena de indecisos e mais de 47 milhões de votos já depositados nas urnas, poucos acreditam que o que se viu na TV possa ter resultado decisivo na eleição do dia 3 de novembro.

O debate foi realizado na Universidade Belmont, em Nashville, e mediado pela jornalista Kristen Welker, da rede NBC. Desta vez, Trump deixou Biden falar, e o democrata não disparou ofensas contra o presidente. Quem queria assistir a uma troca de ideias não teve do que reclamar.

Mas isso não quer dizer que houve alguma novidade relevante ou que o debate possa ter mudado o rumo da eleição . Trump e Biden repetiram as mesmas mensagens -- e mentiras, no caso do presidente – dos últimos meses.

O primeiro tema, como esperado, foi a pandemia do coronavírus. Donald Trump mais uma vez mencionou a proibição da entrada de viajantes vindos da China, no final de janeiro, como uma medida decisiva, que teria evitado centenas de milhares de mortes.

Mas o presidente não respondeu à pergunta original de Welker, que dizia respeito a estratégia para a nova onda de casos de Covid-19. O país voltou a registrar mais de mil mortes diárias e 70.000 novas infecções pelo coronavírus. Ele afirmou apenas que manter o país fechado significa o risco de “não termos mais um país”.

Biden afirmou que Trump continua sem ter um plano de combate ao coronavírus e que os Estados Unidos estão entrando num “inverno sombrio”. Acusado pelo presidente de defender o fechamento generalizado da economia, Biden afirmou que é possível “mascar chiclete e andar ao mesmo tempo”. “Podemos abrir de forma responsável. Precisamos de testes rápidos, de rastreamento dos casos”, disse o ex-vice de Barack Obama.

Trump também reiterou a previsão de que uma vacina será aprovada em “semanas”, mas não quis se comprometer com um prazo. Ele defendeu uma afirmação que vem repetindo em seus últimos comícios: o país estaria “virando a curva”, ou seja, o fim da pandemia estaria à vista.

Mas não é o que dizem as autoridades de saúde nem os dados mais recentes, que mostram um novo repique da pandemia em boa parte do país. A crise sanitária já deixou mais de 220.000 mortos e 8 milhões de infectados nos Estados Unidos e é a maior ameaça à reeleição de Trump.

Trump encaixa golpes

O debate ganhou com o comportamento mais civilizado de Trump – que interrompeu o adversário mais de 120 vezes no primeiro encontro, segundo um cálculo – e também porque os candidatos tiveram dois minutos ininterruptos para responder as primeiras perguntas de cada tema.

Trump conseguiu tocar em umas das vulnerabilidades de Biden, um projeto de lei aprovado pelo democrata quando ele era senador, em 1994. A legislação é apontada como uma das responsáveis por transformar o país no líder mundial em população atrás das grades – boa parte dela composta por negros.

Hoje Biden diz que cometeu erros na época e defende uma reforma profunda no sistema judicial, com o fim da prisão por porte de drogas, por exemplo.

Trump também repetiu com diferentes formulações um argumento reciclado de quatro anos atrás, na disputa contra Hillary Clinton: “Você é político há 47 anos. Por que não fez nada antes?”

Mesmo deixando de lado o fato de que Trump é o atual ocupante da Casa Branca e está no meio de uma campanha pela reeleição, a imagem de outsider é uma das que mais ecoam junto a seus apoiadores. Biden seria o modelo do político profissional: “só fala, mas não faz nada”, disse o presidente.

Uma esperança dos republicanos era que Biden tropeçasse ou cometesse alguma grande gafe. Não aconteceu. O democrata gaguejou algumas vezes, mas em geral seu desempenho foi seguro. Usando um clichê surrado do futebol, Biden, com vantagem em todas as pesquisas, estava jogando pelo empate.

Apesar de ter conseguido encaixar alguns golpes no adversário, em uma hora e meia de debate Trump apresentou poucas ideias concretas para um eventual segundo mandato – ele nem sequer se deu ao trabalho de publicar um plano de governo detalhado.

Um dos temas foi a saúde. Trump foi eleito há quatro anos prometendo acabar com o Affordable Care Act, mais conhecido como Obamacare. Ele fracassou no Congresso e agora deposita suas fichas num caso que será analisado pela Suprema Corte no mês que vem.

Biden afirmou que, além dos mais de 10 milhões de americanos que perderam cobertura de saúde porque estão desempregados, outros 22 milhões ficariam sem plano de saúde. Trump disse que vai apresentar um “plano lindo, melhor”. Mas, em quase quatro anos de governo, esse plano nunca viu a luz do dia.

O presidente usou o tema da saúde para pintar Biden como um socialista, dizendo que num governo do democrata 180 milhões de americanos que têm plano de saúde privado ficarão descobertos.

Em uma de seus melhores momentos da noite, Biden respondeu: “Ele acha que está disputando com outro. Eu derrotei essas pessoas”, afirmou o democrata, fazendo referência aos senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren, que propunham um sistema de saúde nos moldes do National Health System, do Reino Unido.

O democrata falou pela primeira vez num “Bidencare”, que aumentaria as opções de saúde pública para a população carente e idosa, sem mexer nos seguros-saúde usados pela maioria da população.

Mais uma teoria da conspiração

Trump insistiu em levantar um suposto escândalo envolvendo Hunter Biden, filho mais velho do candidato democrata. As acusações não são exatamente novas, e não há nenhuma evidência de que a família Biden tenha feito algo errado – essa foi a conclusão de uma investigação realizada pelos próprios rebublicanos no Senado.

Há uma semana, o tabloide The New Post publicou uma reportagem que supostamente provaria que Hunter teria usado o acesso ao pai – na época vice-presidente – para obter benefícios financeiros.

A reportagem se baseia em informações encontradas num computador de Hunter Biden que teria sido deixado para conserto numa oficina. Elas foram passadas ao jornal por Rudy Giuliani, advogado de Trump, e Steve Bannon, ex-assessor e ex-diretor da campanha de Trump há quatro anos.

As informações seriam tão pouco confiáveis que o jornalista do New York Post que a redigiu se recusou a assiná-la, segundo o New York Times.

Apesar das muitas dúvidas a respeito da veracidade da história – redes sociais como Facebook e Twitter tomaram medidas para evitar o compartilhamento --, Trump vem insistindo no assunto como uma prova da “corrupção do adversário”.

Trump mencionou o caso algumas vezes no debate, mas sem muito sucesso. Olhando para a câmera, Joe Biden disse: “Não se trata da minha família ou da dele. É da sua família que se trata. Das famílias de classe média, mas isso é a última coisa de que ele quer falar”.

Este não foi o único mau momento de Trump quando o tema envolveu famílias.

Na terça-feira, revelou-se que 545 crianças que foram separadas à força de seus pais depois de cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos ainda não foram reunidas com suas famílias porque os pais não podem ser encontrados. Cerca de 60 das crianças tinham menos de cinco anos de idade quando foram separadas dos pais.

A mediadora Welker perguntou para Trump o que estava sendo feito a respeito. O presidente disse que seu governo “estava trabalhando” e que as crianças estão sendo “muito bem tratadas”.

Biden chamou de “criminosa” a política de Trump. Pesquisas apontam que a prática em relação às famílias que tentam entrar ilegalmente no país figura entre os principais motivos pelos quais as mulheres rejeitam Trump.

Muito barulho por nada?

O impacto do debate na eleição deve ser pequeno, segundo os analistas.

Além do pequeno número de indecisos, um outro dado serve para temperar as expectativa: estima-se que mais de 47 milhões de americanos já tenham votado. Esse total corresponde a mais de 30% de todos os votos da eleição de quatro anos atrás.

O dia oficial da votação é 3 de novembro, mas uma modalidade peculiar do sistema americano é o voto antecipado. Essencialmente, algumas seções eleitorais são abertas com vários dias de antecedência para quem não pode votar no dia (as eleições americanas sempre acontecem numa terça-feira).

Esse tipo de voto ganhou importância por causa da pandemia, pois reduz as chances de enfrentar aglomerações no dia da eleição. E os números recorde também refletem o interesse gerado no pleito e a polarização extrema da política americana.

Apesar de pequenas as chances de conquistar novos eleitores (ou roubá-los do adversário), o debate é a grande última oportunidade para os dois candidatos aparecerem diante de uma audiência tão grande.

O primeiro debate foi assistido por 73 milhões de pessoas, e o número não conta quem preferiu acompanhar o encontro pela internet. Mas é provável que o baixíssimo nível daquele primeiro enfrentamento leve muita gente a evitar assistir o segundo e último round.

Trump sendo Trump

Apesar do bom comportamento no debate, Trump postou no Facebook cerca de 40 minutos de uma entrevista concedida à jornalista Leslie Stahl, da rede CBS. A conversa foi gravada na quarta-feira, e o presidente americano, irritado, abandonou a entrevista antes do final.

Segundo o post do presidente, o vídeo demonstra “parcialidade, ódio e grosserias” por parte da equipe do programa 60 Minutes, que vai exibir a entrevista na noite de domingo juntamente com uma de Biden.

Antes mesmo do começo da entrevista, o presidente americano reclama que não recebe tratamento justo de Stahl e que as perguntas que ela faz a Biden não são duras. “É terrível, terrível”, diz Trump.

No desenrolar da entrevista, o presidente segue fazendo reclamações insistentes sobre o tom das perguntas da jornalista, sobre a imprensa “fake news” e sobre uma suposta preferência por Biden.

Mas as perguntas de Stahl não foram muito diferentes das feitas em outras entrevistas com Trump (com exceção das que ele concede à Fox News, canal de TV paga que o apoia abertamente) e também no debate.

“Você está se desacreditando,  a imprensa perdeu muito crédito”, afirmou Trump. Quando Stahl insiste que o público de seus comícios diminuiu muito, Trump nega com veemência e parece perder a calma. “Próxima pergunta.” Em outro momento, ele diz: “Você é muito negativa. Você vem aqui com uma atitude negativa”.

Questionado sobre a pandemia do coronavírus, Trump afirmou que os Estados Unidos “estão muito bem, diziam que seriam 2,2 milhões de mortos. Salvei milhões de vidas”.

Projeções catastrofistas como a mencionada pelo presidente americano foram feitas no início da pandemia e se baseavam num cenário em que nada fosse feito para combatê-la.

Quando um assessor diz que a entrevista deveria acabar em cinco minutos, Trump diz que tinha falado “o suficiente”, se levanta e vai embora. Ele participaria mais tarde de uma gravação ao lado de seu vice, Mike Pence, mas decidiu não comparecer.

Em nota, a rede CBS afirmou: “A decisão sem precedentes da Casa Branca de ignorar o acordo com a CBS News e divulgar a gravação não vai impedir o ’60 Minutes’ de oferecer sua reportagem completa, justa e contextualizada, da qual presidentes participam há décadas”.


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