Maradona em gol contra a Inglaterra na Copa de 1986: considerado o "gol do século" (Juha Tamminen/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 25 de novembro de 2020 às 16h30.
Última atualização em 25 de novembro de 2020 às 17h58.
O mundo recebeu com tristeza a notícia nesta quarta-feira da morte de Diego Armando Maradona, tido como um dos maiores da história do futebol. Aos 60 anos, o argentino sofreu uma parada cardiorrespiratória, enquanto estava se recuperando de uma cirurgia recente para a retirada de um coágulo na cabeça.
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Ao longo da carreira, Maradona liderou seus times a títulos memoráveis -- que incluíram uma Copa do Mundo com a Argentina e os títulos italianos com o Napoli. A morte do craque faz o esporte relembrar suas maiores vitórias, e algumas delas que reverberaram, também, para fora do campo e refletiram o mundo de sua época.
Um dos mais lembrados é o bicampeonato argentino na Copa do Mundo de 1986. Naquela Copa sediada no México, liderada por atuações brilhantes de Maradona, a seleção da Argentina terminou vencendo a Alemanha Ocidental na final.
Mas um dos jogos mais marcantes aconteceu nas quartas-de-final, quando a Argentina bateu a Inglaterra por 2x1, partida que viria a ter dois dos gols mais famosos da história das Copas.
O jogo aconteceu quatro anos depois da Guerra das Malvinas entre Argentina e Reino Unido (chamada de Falklands War entre os britânicos). O conflito foi rápido, entre abril e junho de 1982, e terminou com vitória acachapante do Reino Unido -- morreram 649 soldados argentinos e três civis, mais que o dobro de britânicos.
"Em um país marcado por tantas divisões políticas e polarizações, as Malvinas são uma das poucas causas verdadeiramente nacionais. A noção de que os ingleses usurpam um território argentino, que o país tem seus direitos soberanos violados por uma potência estrangeira, é profundamente arraigada na sociedade até hoje, e certamente o era com muito mais força na década de 1970/80", explica o internacionalista e especialista em Argentina e América Latina Matheus de Oliveira Pereira, do programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, da Unesp.
"O que é curioso é que mesmo havendo um amplo reconhecimento de que a decisão de ir à guerra foi um equívoco [por parte do governo militar argentino], uma missão suicida, a derrota militar não esmoreceu o apelo popular da causa -- daí a magnitude política do famoso 2x1 contra os ingleses na Copa do México", diz o pesquisador.
É nesse contexto que Inglaterra e Argentina se enfrentaram nos gramados em 1986. Primeiro, o 1x0 veio com o gol conhecido como "A mão de Deus", em que Maradona empurra a bola para as redes com a mão. Em entrevista anos mais tarde, o craque diz "eu estava esperando que meus colegas fossem me abraçar, e ninguém veio... Eu disse 'venham me abraçar, ou o árbitro vai anular o gol'", brincou.
Depois, veio o antológico gol em que o argentino sai driblando todo o time inglês. O feito, já no segundo tempo, praticamente confirma a vitória da Argentina e leva à euforia o Estádio Azteca, repleto de argentinos no México. Anos depois, esse gol seria escolhido como "o gol do século" e o mais bonito da história das Copas em votação da FIFA pela internet.
Uma das narrações mais famosas do tento, de Victor Hugo Morales, pergunta aos gritos: "De que planeta você veio? Para deixar pelo caminho tantos ingleses...". O britânico Gary Lineker ainda marcou o gol de honra inglês aos 81 minutos, mas não havia mais tempo para uma virada.
"Quando Maradona faz aquele gol contra a Inglaterra, na verdade sintetiza toda a revanche que a Argentina esperava dar para a Inglaterra desde as Malvinas. E ele não tinha o menor pudor em esconder isso ou em dissimular esse tipo de conquista", diz a professora Katia Rubio, da Faculdade de Educação da USP e que estuda a relação entre esporte, história e política.
O arquipélago das Malvinas, que fica na área oceânica argentina, estava desde o século 19 sob comando britânico, mas era reivindicado pelos argentinos como parte de seu território. No Reino Unido, a vitória na Guerra das Malvinas fortaleceu o governo conservador da premiê Margaret Thatcher, que venceria novamente as eleições no ano seguinte.
O confronto, aliás, recebeu outra dose extra de atenção neste mês de novembro, quando a Netflix divulgou a quarta temporada da série The Crown, que retrata justamente o período do confronto (no Google Trends, as buscas por "Guerra das Malvinas" mais que triplicaram na semana passada).
Na carreira de Maradona, outro feito lembrado para além dos gramados é o título italiano com o Napoli, time do sul da Itália. Um ano depois da vitória com a Argentina na Copa, Maradona levaria o Napoli a conquistar o Campeonato Italiano de 1987.
Há duas peculiaridades sobre o time do Napoli na época: o clube não era, nem de longe, visto como o favorito na Itália, e não estava entre as maiores forças da Europa. Mas, ainda assim, conseguiu bater nomes como a poderosa Juventus, então do craque Michael Platini.
Dentre os jogos que entraram para a história estão as vitórias lideradas por Maradona contra a Juventus. Naquele 1987, a Juventus termina o campeonato atrás do Napoli, em segundo, seguida pela Inter, em terceiro. Uma temporada antes, em 1985, Maradona seria ainda responsável por encerrar um jejum de sete anos sem vitória do Napoli sobre a Juve, com um gol de falta que ficou conhecido como "gol impossível".
Fora de campo, a vitória do Napoli contra a Juventus teve ainda outro simbolismo político. Historicamente, há uma rivalidade na Itália entre o Norte "rico" e o Sul, visto como mais pobre e de economia mais agrícola e menos industrial. Como reflexo desse contexto econômico, os times do Norte, como Juventus, Milan e Inter de Milão, também dominam o futebol local e costumam ter maiores orçamentos. O abismo entre as duas regiões permanece até hoje na economia italiana.
Maradona, por sua vez, havia chegado ao Napoli anos antes, em 1984, tendo sido inclusive cortejado pela própria Juventus. Após o feito de 1987, o argentino venceria novamente o título italiano com o Napoli na temporada 1989/90, quando jogou ao lado dos brasileiros Alemão e Careca. Naquela conquista, outra vitória lembrada até hoje é contra o Milan por 2x0, na casa do adversário, e cujos pontos seriam decisivos na conquista do título rodadas depois. Com o Napoli, Maradona também foi campeão duas vezes da Supertaça da Itália, uma vez da Taça da Itália e uma vez da Liga Europa, e é tido como um dos maiores ídolos da história do clube.
As vitórias "do Sul sobre o Norte" contribuíram para o apelido de "Dios" de Maradona também no futebol italiano.
Não são raros os momentos em que o esporte ultrapassa as competições e reflete o contexto geopolítico de suas épocas, para o bem ou para o mal. Na história do esporte, há uma dezena desses episódios: do uso propagandista das Olimpíadas por Hitler na Alemanha nazista aos boicotes mútuos entre União Soviética e Estados Unidos durante a Guerra Fria.
"Quem enxerga o esporte apenas como competição, afirma que esporte e política não se misturam. Mas, o que enxergamos na história é que o esporte tem de ser entendido como um fenômeno sócio-cultural", diz Rubio. "Se é guerra, é guerra que aparece; se é abundância, a abundância aparece no esporte; se é conflito racial, é isso que vai aparecer. Não é só um placar."
Nas próprias Copas do Mundo vencidas pela argentina, historiadores apontam que o primeiro título do país, em 1978 (em uma Copa sediada justamente na Argentina, antes que Maradona chegasse à seleção), foi usado como instrumento político para fortalecer a ditadura argentina na época.
Após a aposentadoria, Maradona também não se esquivou de comentar política, fazendo uma defesa árdua da soberania da América Latina. Após a notícia de sua morte nesta quarta-feira, pipocaram nas redes sociais declarações políticas do craque e imagens ao lado de líderes latino-americanos. Preferências políticas à parte, o futebol e o esporte, em muitos momentos, vão além de suas linhas. A história de vida e a carreira de Maradona são um exemplo como poucos.