Day trade: prática tem 40 mil pessoas físicas que tentam viver da especulação no mercado (VCG/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 20 de setembro de 2019 às 19h52.
Última atualização em 2 de julho de 2021 às 16h47.
Por Ângelo Pavini, da Arena do Pavini
Analista de sistemas em uma empresa de gás, B., de 33 anos, sempre se interessou pelo mercado financeiro. Com um bom salário, mais de R$ 10 mil por mês, fazia aplicações em Tesouro Direto, mas queria mesmo investir em bolsa. Seduzido por comentários de amigos e propagandas de corretoras, buscou informações, fez cursos de day trade, nome dado às operações curtíssimo prazo de compra e venda de papéis em bolsa e, em novembro do ano passado, estreou como trader, juntando-se às cerca de 40 mil pessoas físicas que tentam viver da especulação no mercado.
Sacou R$ 60 mil das economias do Tesouro Direto, depositou o valor como garantia em uma corretora e passou a comprar e vender minicontratos futuros de dólar e de Índice Bovespa.
O day trade nos mercados futuros é diferente do investimento tradicional em ações. Enquanto na compra de ações a perda é limitada ao valor investido caso a empresa quebre, no mercado futuro as perdas são ilimitadas. Se o investidor aposta que o dólar futuro vai subir e ele cai, ele tem de pagar a diferença para quem ganhou. Por isso, as corretoras exigem depósitos de garantias e estabelecem limites de perdas que, quando são atingidos, levam à liquidação compulsória da operação.
Mas o ganho também pode ser ilimitado, por isso a tensão é constante e a adrenalina é alta em meio às oscilações dos preços. O trader tem de ganhar não só de outros traders, mas também de investidores profissionais, como tesourarias de bancos, fundos de investimento e empresas, com seus grandes departamentos de análise e robôs.
Logo de cara, B. se deu bem e ganhou muito dinheiro. Em um único mês, chegou a lucrar R$ 100 mil com a especulação. O sucesso foi tanto que ele começou a ser procurado por amigos e conhecidos que queriam aprender também suas técnicas para ganhar dinheiro na bolsa. Montou então uma página no Instagram, na qual mostrava suas principais operações e os lucros que obtinha.
Em janeiro deste ano, porém, a sorte de B. mudou. Em um único mês, as perdas chegaram a R$ 70 mil, quase tudo que ele tinha guardado no Tesouro Direto. Mas ele não desanimou. Passou a se dedicar ainda mais ao mercado, tentando de alguma forma recuperar o que havia perdido. Operava todo dia, de casa ou do trabalho, o que acabou por atrapalhar seu desempenho e provocar uma advertência do chefe. Aos poucos, o day trade acabou se tornando um vício.
Começou então a faltar ao trabalho para se dedicar às operações em bolsa. Mas a sorte não mudava e ele estourou os limites na corretora em que operava, acumulando uma dívida. E foi trocando de corretora a cada nova perda, passando pelas principais do mercado, como Clear, Modal, Rico e Genial. O sistema de controle de inadimplência, de aviso ao mercado, que impediria que ele abrisse conta em uma corretora devendo em outra, não funcionou, e ele foi aumentando o prejuízo.
B. recorreu então ao limite da conta do cheque especial no banco, um valor alto, para financiar as operações. Quando o limite acabou, avisou a mulher, com quem havia se casado havia um ano e meio, que ia vender o carro para pagar as dívidas. Mas acabou investindo o dinheiro, mais R$ 80 mil, no mercado. Perdeu tudo. Pediu então mais R$ 16 mil para esposa para pagar as dívidas. O dinheiro também sumiu no day trade.
Sujeito inteligente e extrovertido, B. parou de sair de casa, só queria operar na bolsa, buscando recuperar os prejuízos, conta a mulher, que passou a se preocupar e questionar o que estava acontecendo. Mas, diante da insistência dela, ele parou de contar o que se passava. Notando a mudança no marido, ela insistiu e o fez procurar um psicólogo, que detectou depressão e receitou remédios e terapia. B., porém, não quis fazer o tratamento. “Meu problema é dinheiro, se a psicóloga me der dinheiro, eu vou”, dizia.
Estranhamente, ele continuava contando aos amigos que estava ganhando dinheiro no mercado e postando trades de sucesso no Instagram. Para todos, ele continuava sendo um vencedor. O que ele não contava é que de cada R$ 10 mil que ganhava, perdia R$ 20 mil.
No dia 19 de julho, uma sexta-feira, B. não foi trabalhar. Ficou em casa para esperar o pedreiro que fazia uma reforma no apartamento. Às 10h30 da manhã, a mulher de B. recebeu uma ligação no trabalho. Era da polícia, afirmando que B. havia sofrido um acidente e que ela deveria ir à delegacia. Como ele andava de moto, a mulher imaginou um acidente de trânsito. Ao chegar, o delegado contou que B. havia se jogado do 14º andar do prédio. No apartamento, os policiais encontraram o computador de B. ligado, com a tela aberta na página da bolsa de valores. Apenas naquela manhã, ele havia perdido mais R$ 37 mil, conta a esposa.
Ela soube então que B. acumulava uma dívida de R$ 285 mil no banco, referente aos empréstimos para cobrir os prejuízos no mercado. Além disso, tinha dívidas de R$ 50 mil em uma corretora e R$ 30 mil em outra. Outra surpresa a esperava: ela descobriu que, sem crédito para operar, B. havia aberto uma conta em nome dela em uma corretora, usando seus documentos. E ela, que nunca operou, estava sendo cobrada por uma dívida de R$ 25 mil.
Para a mulher de B., a tragédia tem muito a ver com a situação psicológica de cada pessoa. “Mas devia haver algum sistema de segurança nas corretoras, que visse quando a pessoa está perdendo muito e tentasse impedir”, diz. Com a morte de B., ela passou a ser cobrada pela corretora para pagar a dívida feita pelo marido em seu nome. E também caiu em depressão.
O caso de B. mostra o risco que pessoas com alguma vulnerabilidade emocional correm ao entrar em um mercado de altíssimo risco como o de day trade de mercados futuros. Competindo com robôs e grandes investidores, as chances desses pequenos investidores, em geral novatos do mercado, ganharem é baixíssima, como mostra estudo feito pelos professores da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fernando Chague e Bruno Giovannetti.
Segundo o estudo, 19.696 pessoas começaram a fazer day-trade em mini índice entre 2013 e 2015. Dessas, 18.138 (92,1%) desistiram, umas mais cedo, outras mais tarde. Das 1.558 pessoas que persistiram por mais de 300 pregões, tentando de fato viver de day-trading, 91% tiveram prejuízo e apenas 13 pessoas obtiveram lucro médio diário acima de R$ 300,00.
De acordo com os professores, os dados também mostram que o desempenho do day trader não melhora à medida que ele persiste na atividade (na realidade, piora). “Essa última evidência é crucial e vai de encontro à ideia, em geral propagada por especialistas das corretoras, de que day-traders melhorariam com a experiência e que, portanto, deveriam persistir”, afirmam os professores.
“Isso é como a maconha”, afirma o professor William Eid Junior, coordenador do Centro de Estudos em Finanças da FGV. “Criou-se um mito global que diz que maconha não faz mal, e ai de quem disser que causa esquizofrenia, que é porta para outras drogas… o lobby é gigantesco”, afirma. Ele critica a publicidade dada a esse tipo de atuação no mercado. “Se você der uma busca por day trade no Google, vai se deparar com um sem número de artigos e anúncios de cursos falando que este é o caminho para a independência, e uma montanha de inocentes acredita”. Quando surge um estudo como o do professor Chague, afirma Eid, a tendência é o investidor usar o famoso “viés da confirmação” e não ler a notícia. “Eu só leio o que confirma a minha opinião”, explica Eid.
Outro comportamento dos traders é o que Eid chama de “síndrome do beijo no baile”. “Nos tempos de rapaz, nós só contávamos para os amigos sobre as garotas que tinha aceitado nosso beijo, as que nos deram tapas, jamais”, diz. “É igualzinho o day trade, se alguém perde, não conta, só conta dos dias que ganha”, afirma o professor. Ele diz ter passado o estudo para um conhecido que gosta de operar day trade na bolsa recentemente e o resultado foi o esperado. “Claro que ele nem leu.”.
Eid, que foi um dos criadores do Centro de Estudos de Finanças Comportamentais da FGV, cita alguns vieses comportamentais que estão presentes no caso dos traders.
O primeiro é o excesso de confiança, no qual o investidor acha que consegue vencer o mercado sozinho. Há ainda o viés de confirmação em que se vê apenas aquilo que confirma nossa opinião, desprezando informações que nos contrariam.
Outro viés é a ilusão de controle, que faz as pessoas acreditarem que podem afetar os eventos futuros ou dominá-los, mesmo que não se tenha nenhuma influência sobre elas, como é o caso dos preços do mercado.
Há ainda a representatividade, no qual o investidor só leva em conta os eventos que o afetaram mais para analisar o futuro. Assim, o amigo falando do ganho que obteve no day trade acaba sendo mais representativo do que o fato de o próprio investidor ter perdido.
Também está presente o viés do autocontrole, em que o investidor tem dificuldade em se controlar e acaba voltando a arriscar para tentar ganhar o que perdeu, e o viés do otimismo, quando o indivíduo se considera melhor que a média em determinadas situações e acredita que só coisas boas acontecem com ele.
Eid lembra ainda que há um grande número de pessoas e empresas que ganham com esse tipo de mercado e que incentivam seu crescimento. “Sempre lembro que quem ganhou mais dinheiro na febre do ouro da Califórnia foram os fabricantes de picaretas”, ironiza.
Para o professor, há um forte apelo psicológico no mercado de day trade. “O investidor fica excitado, acha que vai resolver seu problema de desemprego ou de falta de dinheiro, mas acaba perdendo e destruindo a vida familiar.”