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Mulheres sofrem violência em fóruns online, aponta pesquisa (Alicja Stolarczyk / SXC)
Diretora Executiva do Instituto Natura
Publicado em 24 de setembro de 2023 às 08h00.
Parece ignorância apenas, mas é contradição mesmo. Na semana passada, o noticiário inteiro do Brasil discutiu a piada pronta: o advogado de defesa de um dos acusados dos atos de 08 de janeiro, em sua sustentação oral, atribui a citação de Nicolau Maquiavel em ‘O Príncipe’ – “os fins justificam os meios” - ao ‘O Pequeno Príncipe’, de Saint-Exupery.
O equívoco revela não só que não precisamos da ficção para nos entreter, mas também a falta de atenção generalizada à necessidade de protegermos ativamente espaços qualificados de discussão e exercício da cidadania, nas cortes, nas praças e nos fóruns da internet.
É a necessidade de defesa destes espaços e rituais qualificados de diálogo e discussão que estabelece um paralelo entre a gafe da semana passada, que não passou impune, e a banalização da violência em fóruns anônimos na internet, que passa largamente impune, sob a proteção da despersonalização e sofisticação tecnológica na internet. Mas o que um episódio tem a ver com o outro?
O que mais me chama atenção na fala do advogado Hery Kattwinkel, é que o equívoco vai muito além da gafe. Ele erra não só na atribuição de autoria da obra, mas na atribuição de da atitude que pretende denunciar. Ele faz a citação acusando o tribunal do pragmatismo acima de qualquer princípio articulado na teoria política de Maquiavel.
No entanto, se ele tivesse se dado ao trabalho de se aprofundar na reflexão sobre o pensamento do florentino, teria percebido que a acusação que pesa sobre o seu cliente, não sobre o STF (talvez ele tenha se confundido também sobre quem era o réu), repousa justamente sobre o pensamento central da obra: o fato de ter agido com astúcia, violência e incivilidade para fazer avançar a sua causa, sem se deixar limitar por princípios ou instituições que sustentam o que hoje chamamos de estado democrático de direito. Pode parecer só um deslize, mas denuncia a falta de pensamento crítico: a noção de que está acusando a instância julgadora da mesma predisposição que teria movido o seu cliente.
Esta grande demonstração de inconsciência e ignorância teve repercussão imediata, até porque foi vista e ouvida pelo país inteiro. Mas quero chamar a atenção sobre as transgressões anônimas que também estão no cerne de violações graves, mas que passam desapercebidas cotidianamente.
Estou falando dos fóruns anônimos (chans) na internet, que funcionam como verdadeiras oficinas de radicalização ideológica e articulação de violências. A pesquisa “Misoginia e Violência contra mulheres na internet: um levantamento sobre fóruns anônimos” do Instituto Avon em parceria com a Timelenses, divulgada este mês, revela o quanto estes espaços se popularizaram no Brasil.
O simples volume de mensagens destes fóruns anônimos é assustador, tendo passado de 19 por semana para 228 por hora em 2 anos (entre 2021 e 2023). Além do anonimato, estes fóruns são caracterizados pela interdição da presença das mulheres.
Não sem razão, pois elas são o alvo dos ataques que seus frequentadores organizam, tendo como principais vítimas as influenciadoras, celebridades e pessoas com maior visibilidade no meio online. Um dos dados que mais chama a atenção no levantamento foi a quantidade de conteúdos que mencionam violências: 46% em discussões sobre mulheres em geral e 69% em discussões sobre pornografia, sendo quase 18 mil comentários dedicados a vazamentos e/ou pedidos de vazamentos de nudes.
Ao contrário da rápida repercussão e administração de consequências observada no caso do Advogado Kattwinkel, nestes fóruns em que as mulheres são a origem de profundo desconforto e alvo de múltiplas violações o anonimato protege e viabiliza violências simbólicas que inevitavelmente se convertem em violências concretas.
O estudo tem a intenção de apontar para a importância de pautarmos o funcionamento destes fóruns anônimos e a necessidade de apontarmos para a necessária ligação entre relacionamentos, espaços públicos de diálogo e responsabilidade. A falha em jogarmos luz sobre esta conexão está na origem de recorrentes atos de violência, menos divulgados, mas igualmente nocivos à nossa sociedade.