Governança de expectativas, frustrações e ansiedades
Como em todas as áreas da vida, também como líderes empresariais estamos sujeitos a expectativas fracassadas e projeções não atingidas
Colunista
Publicado em 2 de novembro de 2024 às 14h15.
“Já estamos chegando?” Quantos de nós vivenciamos essa frase nas viagens familiares, inúmeras vezes. Primeiro, erámos nós repetindo a frase pela infância afora. Depois, ouvindo essa fala de nossos irmãos ou filhos crianças. Eram como stakeholders perguntando ao CEO quando seria realizada a expectativa coletiva, formulada como meta no início daquela viagem-empreendimento.
A liderança empresarial atua com metas de continuidade e de êxito da empresa. Essas metas definem as prioridades de atividade da empresa e de suas pré-ocupações, no seu planejamento rumo às metas. Contudo, essas metas, expectativas ou preocupações são dinâmicas. Variam conforme as realidades vão se definindo e redefinindo.
A consciência desse cenário dinâmico é um elemento central para a boa formulação de metas. Por exemplo, metas formuladas agora, para as hipóteses de eleição de Kamala ou Trump, precisarão ser reformuladas após o resultado eleitoral. É como num jogo de futebol, onde a sua meta de fazer um gol vai se readaptando continuamente, enquanto você, a bola, o placar e os demais jogadores vão se reposicionando na partida. É como ocorre com o GPS nos aplicativos de locomoção.
Esse dinamismo na formulação das metas ocorre também no acompanhamento da realização ou não das expectativas. Se a expectativa foi atendida, é hora de criar a próxima meta a realizar, o próximo sonho a sonhar.Na vida empresarial, ocorre também a frustração de expectativas, projeções não atingidas, como ocorre na vida pessoal.Nesse acompanhamento, os KPIs - Principais Indicadores de Performance ou Key Performance Indicators - funcionam como um painel de controle de expectativas.
Esta primeira metade da década de 2020 traz uma espécie de burn out coletivo, sintetizado na frustrada Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Repete-se o mantra de que é preciso aprender a lidar com a frustração. É verdade que cada meta frustrada é uma oportunidade de aprendizado. Afinal, toda realização (= toda expectativa realizada) costuma resultar da resiliência na superação a inúmeras expectativas frustradas. Há tempo de realizar metas e tempo de ter expectativas frustradas. A vida é assim.
Uma forma de lidar com a gestão da frustração é olhar para a sua raiz: a origem, a dimensão e a justificativa da expectativa. Expectativas menores ou mais realistas tendem a gerar frustrações e ansiedades reduzidas. Porém, sonhar pequeno não costuma agregar muitos entusiasmos.
Qualquer administrador de companhia está sujeito ao dever legal de diligência, que requer que administre a empresa com o cuidado e diligência que uma pessoa ativa e honesta dedica a seus próprios negócios. Vale atentar para o prefixo de algumas das palavras do cotidiano desse “dever de diligência”, como: pré-visão (ver antes), pré-ocupação (ocupar-se antes), e prevenir, pré-venir (vir antes). O cuidado requer um olhar que busque antever o futuro, uma expectativa de futuro.
Guimarães Rosa escreveu que viver é muito perigoso, e que o que a vida quer da gente é coragem. São ensinamentos que se aplicam também à vida empresarial, que é essencialmente arriscada. Não se faz omelete sem quebrar ovos, e não se faz um empreendimento sem assumir riscos. O cuidado empresarial impõe a coragem de identificar, antecipar, avaliar e divulgar os riscos a que a empresa está sujeita. Mapear uma matriz dos riscos empresariais, no contínuo esforço de mensurar frustrações prováveis, possíveis ou remotas.
Nesse rumo, a gestão de riscos empresariais demanda a adoção de medidas preventivas. A priorização dessa gestão de risco integra o sistema de governança da companhia, inclusive para prevenir e mitigar riscos de fraude empresarial.
De tempos em tempos, acontece de surgir no mercado uma vontade de acreditar em expectativas infladas, metas impossíveis, que gerem fluxo de caixa supervalorizados, com avaliações superestimadas e números fabulosos. São percepções entre o “me engana que eu gosto” e “milagres acontecem”.
Essas metas irrazoavelmente altas, metas inviáveis, costumam ser o centro de culturas empresariais tóxicas. Podem até gerar resultado no curto prazo, mas a experiência demonstra que implodem a empresa no médio/ longo prazo. São expectativas distorcidas, que já embutem em si um grande potencial de frustração. Não são expectativas consensuais, geradas a partir da realidade factível, mas metas impostas de cima para baixo, numa relação de poder abusiva.
A cultura tóxica irradia ansiedade empresarial por toda a equipe, que corre atrás de metas inatingíveis. É como uma corrente elétrica de violência, na expressão do escritor Édouard Louis, estrela da FLIP 2024. Essa ansiedade é uma disfunção na gestão de expectativas. Pulsa uma preocupação exagerada com o controle do futuro, inevitavelmente incerto e desconhecido.
A ansiedade na gestão de metas pode, inclusive, extrapolar para a vivência do assédio moral, evidenciado na constante ativação do instinto de sobrevivência, em estado de alerta e ameaça – uma hipertensão defensiva.
Esse risco de abuso moral está presente no jogo de poder que existe dentro da empresa, ativado na dinâmica da ameaça e recompensa, chicote e torrão de açúcar (numa tradução livre do “stick and carrot” ). Permeia toda a escada empresarial, desde o micro poder do gerente ao macro poder do acionista controlador. Uma cultura empresarial ESG deve estar atenta a esse jogo.
O profissional experiente tende a ter menos ansiedade, por já ter vivido muita ansiedade. “Ando devagar por que já tive pressa.”* Tem expectativas mais reduzidas, pois já viveu a frustração de muitos “sonhos grandes”. Não se trata de ter pouca ambição ou metas restritas.
É a maturidade de compreender que os 42 quilômetros de uma maratona, empresarial ou vital, requerem um passo depois do outro, executados de modo sucessivo e satisfatório, cerca de cinquenta mil vezes seguidas. Por isso, a expectativa imediata e constante do maratonista experiente é dar corretamente o próximo passo -- até realizar a sua expectativa maior, de completar a maratona.
Voltando à viagem familiar, a segura chegada da família ao destino é apenas a primeira expectativa a ser realizada no empreendimento “Férias”. É bem verdade que as frustrações de um pneu furado, de chuva na praia, de falta de luz, ou do ar refrigerado quebrado, às vezes tornam as férias inesquecíveis. São um imprevisto que une o grupo para a superação daquele obstáculo real - tendo inclusive o mérito de resgatar a atenção da garotada para fora do celular!
* Referência musical: verso da canção “Tocando em Frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira