Governança de Crenças: valores, propósitos, identidades
A cooperação distingue o ser humano de outras espécies, e ela depende do compartilhamento de crenças. Mas, como manter essa capacidade num cenário de deep fakes e greenwashing?
Colunista
Publicado em 13 de abril de 2024 às 07h00.
“Sem sorte não se chupa nem um Chicabon. Você pode engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha”, alertou o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980). Do mesmo modo, sem uma crença, ninguém se levanta da cama ao amanhecer. Acordo hoje acreditando ser a mesma pessoa que fui ontem, acreditando que devo lavar o rosto e começar um novo dia. Sem essas crenças operacionais básicas, a pessoa não se move.
As crenças, porém, não são permanentes. Uma criança tem as crenças da sua infância. Um jovem tem as crenças da sua juventude. Um adulto tem as crenças de sua vida adulta. Um idoso tem as crenças de sua velhice. As crenças de uma pessoa mudam ao longo de sua vida. “Tudo muda”.
As crenças individuais convivem com as crenças sociais. A “ordem pública” requer termos confiança na moeda, na solvência bancária, em instituições públicas e privadas. Franquias e certificações são atestados de credibilidade, que agilizam a confiança consumidora na qualidade do produto franqueado ou certificado. As rotinas sociais e mercados estão estruturados nessas crenças, nessas redes de confiança.
Simultaneamente às mudanças de crenças individuais, ocorrem também mudanças de crenças sociais. O livro “Os Anos”, de Annie Ernaux, traz uma biografia de crenças, individuais e sociais. Descreve o ritmo cadenciado das sucessivas mudanças, ano a ano, das crenças coletivas prevalentes no noticiário de cada ano, com crenças de vivências etárias da autora naquele ano.
A habilidade de cooperação distingue os humanos das demais espécies. Essa cooperação decorre da capacidade de compartilhamento de crenças, e da flexibilidade de adaptar e atualizar essas crenças compartilhadas -- nos fala o Sapiens, de Yuval Harari. As crenças são instrumentos fundamentais para a colaboração e, inversamente, para a violência e as guerras.
O mesmo Harari destaca que a empresa é uma ficção jurídica, na qual acreditamos. Cada empresa é um coletivo de pessoas e, também, um coletivo de crenças, que agregam os seus integrantes.
No universo start-up, o potencial do empreendimento começa como a crença “visionária” do fundador. Vai passando a ser uma crença compartilhada na medida em que outros venham a se agregar a essa crença, como coinvestidores, parceiros, clientes e colaboradores. Cada um desses indivíduos aceita se agregar ao projeto empresarial em razão de suas crenças individuais. E a continuidade dessa união requer a renovação dessa interseção de crenças.
Uma integração empresarial, como a vivenciada numa operação de fusão ou aquisição (M&A), gera também o encontro entre duas crenças corporativas distintas, que realizarão a convergência decidida. Tende a ocorrer na recente da fusão entre Arezzo e Grupo Soma, como teria ocorrido quando cada um dos dois grupos foi se formando, por meio de M&As, com Farm, Hering, Reserva e etc. O M&A surge de uma crença integrativa, de que a união é melhor do que a independência das empresas.
Visão, missão, valores e propósitos de uma empresa são também crenças. O ESG é uma crença. Quantos CEOs, C-suite, acionistas controladores ou “de referência” acreditam em governança, em ESG, em compliance? Quantos leram os Manuais de Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC (cuja 6ª edição foi recém publicada), ou os códigos de conduta de suas próprias empresas? Quantos dos que dizem que acreditam, efetivamente, praticam o que dizem, dando vida real ao lema do compliance “pratique o que fala" (walk the talk)?
Nas decisões empresariais, essa dinâmica tem como parâmetro a chamada “Business Judgement Rule”, objeto de pesquisa de Marcelo Godke. Essa regra requer do gestor empresariala crença “razoável” de que está atuando no melhor interesse da empresa, junto à boa fé e à prudência.
Na atualidade babélica, tem sido inevitável lidar com des-crença, fake news, deepfake, greenwashing, ESGwashing, etc. Essa des-confiança requer cautela por parte das empresas. Quando uma companhia divulga projeções de resultados futuros, expectativas de demanda, tendências ou previsões sobre os seus negócios, a companhia deve alertar aos destinatários que a informação divulgada depende de condições diversas, e que está sujeita a vários riscos e incertezas. Este disclaimer deve destacar que a crença que a companhia tem hoje, na informação futura que divulga, não é garantia de que essa crença venha a se tornar realidade.
Um tema em voga nesta década é a identidade, pessoal, profissional, corporativa, instagramática, linkedinica. As identidades são crenças? Quem é você? Quem você acredita que é? Quem os outros acreditam que você é? Você acredita no seu potencial? Tem autoestima ou sente inseguranças? A “síndrome do impostor” é uma des-crença na imagem que se divulga.
Crenças podem ser herdadas ou adquiridas. A “educação que recebi de meus pais" é a transferência geracional de um sistema de crenças, um “regime de verdade”. Não é a verdade em si, mas a melhor crença detida por pessoas específicas, num determinado espaço/tempo. A adultização traz um processo de distanciamento crítico quanto a essas crenças herdadas, rumo à individuação e autonomia. Em princípio, cada um tem o livre arbítrio, a liberdade, de escolher as crenças que adotará para si.
“Não quero acreditar!” “Não posso acreditar!” “É inacreditável!” Acreditar em algo começa com a vontade de querer acreditar em algo. Uma vontade consciente ou não. O processo educativo inclui reproduzir ou atualizar crenças. Inclui também a educação para o pensamento crítico, que instiga o questionamento, a reflexão quanto às crenças disponíveis. Para deixar de acreditar em algo, é preciso que haja espaço para a dúvida, para a curiosidade -- que viabilizará a inovação, a criatividade, com o que surgirão novas crenças. Processos terapêuticos, pessoais ou corporativos, também atuam nessa desconstrução e reconstrução de camadas de crenças.
Fala-se muito hoje em crenças limitantes, em prol de outras crenças que poderiam ser rotuladas como crenças expansivas, ou ilimitantes.Limites e crenças fazem parte da natureza humana e da realidade empresarial. Se há crenças que demandam superação, a diversidade é um instrumento útil. Por exemplo, a nova presença de Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras agrega à instituição um infinito de crenças, onde havia um limite há mais de 120 anos.
A centralidade da crença está demonstrada no vocabulário que dela irradia: confiança, fiança, fé, boa fé, má fé, fé pública, acreditar, crédito, credibilidade.
Quais são as suas principais crenças nesta etapa da sua vida? Vai dar tudo certo! Acredite.