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A natureza contra-ataca

Em maio de 2020, um barco pesqueiro foi atacado e afundado por um grupo de orcas na Península Ibérica. O que originalmente se acreditava ser a brincadeira de algumas baleias adolescentes, curiosas com grandes embarcações, provou ser uma situação mais complexa

Animais marinhos (Michael Zeigler/Getty Images)

Publicado em 23 de setembro de 2023 às 08h00.

Em maio de 2020, um barco pesqueiro foi atacado e afundado por um grupo de orcas na Península Ibérica. O que originalmente se acreditava ser a brincadeira de algumas baleias adolescentes, curiosas com grandes embarcações, provou ser uma situação mais complexa e trágica que o esperado.

Isso não é de se surpreender do grupo dos Cetáceos, mamíferos marinhos conhecidos por sua inteligência, como golfinhos e baleias, já que é muito comum que eles aprendam o comportamento de seus companheiros, ou até mesmo de outros grupos que eles tenham contato. Sua extrema sociabilidade se demonstra no caso de 2008 , no qual um golfinho, chamado Billie, foi capturado para ser tratado logo após adoecer. Curiosamente, enquanto estava sob cuidados humanos, o animal observou truques realizados por seus pares em cativeiro e ao ser liberado, o golfinho ensinou esses truques aos seus companheiros, que aprenderam simplesmente por observação. Esse incidente, ocorrido na costa sul da Austrália, foi apenas uma das várias demonstrações da habilidade comunicativa e inteligência desses incríveis animais.

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Pode-se mencionar também um evento ocorrido em 1978, quando uma orca fêmea começou a usar salmões mortos como uma espécie de adereço, sem motivo aparente. Logo em seguida, toda a sua manada adquiriu esse comportamento e, posteriormente, outras manadas passaram a adotar a prática. A partir desse episódio, foi possível perceber, em pequena escala, a capacidade comunicativa das orcas em um contexto puramente lúdico.

Entretanto, o caso dos barcos afundados na Península Ibérica está se mostrando uma situação mais delicada. Atualmente, supõe-se que esse comportamento tenha origem no trauma de uma matriarca apelidada de "Gladys Branca" (White Gladys). Essa fêmea, quando grávida, teve um encontro traumático com um barco pesqueiro ilegal. Especialistas acreditam que ela tenha colidido com o navio ou ficado presa em redes de pesca. Esse trauma provocou um comportamento defensivo contra barcos em geral.

Desde esse episódio, o número de ataques a embarcações aumentou progressivamente. Atualmente, mais de cem barcos foram danificados e três, afundados pelas baleias. Dezenas de orcas começaram a imitar esse comportamento, que se espalhou até a costa da Escócia, localizada a mais de três mil km de distância do primeiro caso de afundamento. Várias testemunhas afirmaram até mesmo ter observado orcas maiores "ensinando" orcas menores como atacar navios.

O comportamento obsessivo de Gladys tornou-se tão dominante que a mãe tem negligenciado seu próprio filhote, colocando-o em risco em prol dos ataques. Segundo Monica Gonzalez, bióloga marinha e coordenadora do Estudo dos Mamíferos Marinhos (CEMMA), essa agressividade recente é anormal. Estima-se que cerca de um em cada cinco interações resulte em danos graves que requerem assistência de reboque, de acordo com a pesquisadora em entrevista à CNN. Esse comportamento é uma medida de defesa: após passar por uma situação traumática, a orca mãe reagiu e, devido à natureza sociável desses animais, toda a manada adotou o novo hábito.

Embora seja provável que esse comportamento eventualmente diminua, ele coloca tanto os marinheiros quanto as próprias orcas em risco. No Estreito de Gibraltar, a espécie está em perigo de extinção, com menos de 39 espécimes vivos atualmente. Esse incidente incomum pôs toda a comunidade em xeque, deixando evidente os culpados por esses incidentes são os pescadores ilegais que invadem áreas protegidas, provocando uma vingança contra a comunidade inteira por parte de um dos predadores mais mortais do mundo marinho.

A pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU) é um problema recorrente e ainda muito presente atualmente, apesar de ser um dos maiores destruidores dos oceanos e de seus ecossistemas. Esse tipo de pesca envolve a captura sem licença, em áreas protegidas ou com técnicas proibidas, ou acima das cotas permitidas pelas leis locais. Apesar dos tratados estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização para Agricultura e Alimentação (FAO) e Organização Marítima Internacional (OMI), nos quais os estados-membros se comprometeram a não incentivar nem praticar a pesca excessiva, muitos países que adotaram essas medidas as desrespeitam abertamente.

Um exemplo é os Estados Unidos, que aderiram ao tratado Medidas de Portos do Estado para Prevenção (Port State Measures to Prevent- PMSA) da FAO, o qual estabelece medidas contra a sobrepesca e promove a conservação das espécies ameaçadas. No entanto,segundo um relatório da Comissão de Comércio Internacional dos Estados Unidos (United International Trade Comission), cerca de 85% do pescado consumido no país é proveniente da pesca ilegal, o que impulsiona a sobrepesca globalmente.

O tubarão, frequentemente considerado um dos maiores perigos do oceano e conhecido como o "terror dos mares", é na verdade mais uma vítima dessa prática cruel. De acordo com Freitas da Silva (2003), apenas dez seres humanos são mortos por tubarões a cada ano, geralmente por invadirem seus territórios ou berçários. Em contrapartida, mais de cem milhões desses animais são mortos anualmente, aproximadamente 73 milhões deles para o comércio de barbatanas (JUSBRASIL, 2015).

A National Geographic estima que cerca de 64% dos recursos pesqueiros atuais estão em estado de sobrepesca e 23% deles estão completamente explorados. Estudos da Universidade de Halifax preveem que, se o ritmo de exploração continuar, não haverá mais peixes no mar até 2048. Além disso, mais de cem mil animais marinhos ficam presos em redes de pesca abandonadas por embarcações pesqueiras, e muitos são atropelados por embarcações recreativas ou comerciais, sujeitando-os a danos físicos e psicológicos, como no caso de “White Gladys”.

Enquanto medidas efetivas não forem tomadas contra indivíduos e organizações que ativamente atentam contra a fauna marinha, a destruição da vida marinha continuará a se intensificar. Consequentemente, histórias lamentáveis como a da Gladys serão mais comuns. Animais atacando humanos, um contra-ataque da natureza.

Fontes:

PARE, S. Orcas have sunk 3 boats in Europe and appear to be teaching others to do the same. But why? Disponível em: .
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CICCARELLI, R. “There’s something down there”: British sailor’s boat attacked by apex predator. Disponível em: .
YACHT-REDAKTION. Seenot: Totalverlust nach Orca-Attacke. Disponível em: .
PARE, S. White Gladis the orca may have been pregnant when she started attacking boats. Disponível em: .
Orcas afundam barcos na Europa e podem estar ensinando outras a fazer o mesmo, diz site. Disponível em: .
FREITAS DA SILVA, L. ATAQUES DE TUBARÕES AO HOMEM. [s.l: s.n.]. Disponível em: .
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FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF UNITED NATIONS. Agreement on Port State Measures (PSMA) | Food and Agriculture Organization of the United Nations. Disponível em: .
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FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES EM TRANSPORTE. A luta para acabar com a pesca INN. Disponível em: .
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MAIA, L. Coleção Itinerante de Zoologia. Disponível em: .
PRISCO, J.; CNN. Why killer whales won’t stop ramming boats in Spain. Disponível em: .
ESTADÃO. Golfinho selvagem ensina companheiros a andar na água. Disponível em: .
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ROACH, J. Seafood May Be Gone by 2048, Study Says. Disponível em: .
FIORATTI, C. Mapa denuncia os portos onde estão arruinando a pesca no mundo. Disponível em: .
O'Laughlin, P. Illegal, Unreported, and Unregulated Fishing Accounts for More than $2 Billion of U.S. Seafood Imports, Reports USITC | USITC. Disponível em: .

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