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Hiperconstitucionalismo, doença adulta do constitucionalismo

Democracia não pode ser vista como uma solução ineficaz e acomodatícia quando comparada com as formas de governo autocráticas

Segundo autor, “o legislativo nem deve ser destituído da margem de decisão e de controle do executivo, nem deve substituir-se a este” (Leonardo Sá/Agência Senado/Flickr)
Esfera Brasil

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Publicado em 31 de julho de 2024 às 15h01.

Última atualização em 31 de julho de 2024 às 16h10.

Por Vitalino Canas*

A “bestsellerização” do tema das ameaças à democracia é uma marca dos tempos que correm. Muitos acham que essas ameaças se enfrentam por meio de instrumentos de democracia militante. Mas tais instrumentos não são eficazes para enfrentar as novas ameaças. Além disso, recorrem à antidemocracia em nome da democracia.

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Uma alternativa é o robustecimento das instituições democráticas.

A democracia não pode ser vista como uma solução ineficaz e acomodatícia quando comparada com as formas de governo autocráticas. Os executivos democráticos devem ter condições para lideranças robustas e ser capazes de corresponder celeremente aos desafios e às aspirações dos cidadãos. O legislativo nem deve ser destituído da margem de decisão e de controle do executivo, nem deve substituir-se a este. O judiciário deve ter a capacidade de, com independência, controlar o executivo e legislativo, mas sem invadir os seus campos exclusivos. Sem impasses, com fluidez.

O hiperconstitucionalismo, doença adulta do constitucionalismo democrático moderno, prejudica esses objetivos. O hiperconstitucionalismo transporta para dentro da constituição tudo e mais alguma coisa. A constituição deixa de ser a lei fundamental, para passar a ser o código de tudo o que parece importante, incluindo muito do que poderia ser regulado por simples leis. Manifestações mais notórias do hiperconstitucionalismo são as constituições da Índia, da Nigéria e do Brasil, primeira, segunda e terceira, respetivamente, do ranking de maior número de palavras segundo o Comparative Constitutions Project.

Acometidos da vertigem do hiperconstitucionalismo, os partidos, membros do parlamento, minorias, centros de interesse, acadêmicos, classes profissionais, promotores de agendas de nicho, aspiram ver as suas pretensões garantidas na constituição. Mesmo que sejam irrealizáveis ou completamente contraditórias com outras. O legislador, vinculado pela normatividade de uma constituição super-regulatória, fica cada vez mais frequentemente de mãos amarradas. Arrisca-se a que qualquer norma que produza – ou não produza – suscite a suspeita da inconstitucionalidade. Não é improvável que vendo a sua seara natural ser devorada pela constituição ceda à tentação de invadir o campo que tradicionalmente pertence ao executivo.

Esse panorama exige crescente protagonismo do juiz constitucional. Em Portugal, o juiz constitucional supremo é o Tribunal Constitucional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal. A principal missão do juiz constitucional é velar pelo cumprimento da constituição. Se a constituição acolhe generosamente todas e quaisquer pretensões com algum valor e adesão sociais, o juiz constitucional é chamado a intervir em quase tudo o que afeta interesses relevantes. O dilema é inevitável: se age de forma contida, acusam-no de ser como os juízes constitucionais dos Estados em que a constituição é para inglês ver; se cumpre a sua missão a rigor, é obrigado a um protagonismo decisório cada vez maior e acusam-no de ativista.

É claro que isso tem repercussões significativas no funcionamento das instituições democráticas, retirando-lhes racionalidade e transparência, colocando problemas de legitimidade na atuação dos órgãos.

O hiperconstitucionalismo, embora seja um efeito colateral do êxito da ideia de constituição, pode colocar em causa sua capacidade para reger o aparelho institucional e a decisão política democrática de forma eficiente e compreensível para as pessoas. Por melhores que sejam as intenções que o movem, é contraproducente. Vamos pensar sobre isso?

*Vitalino Canas é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e presidente do Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe)

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