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"O Garoto de Bicicleta" com parcimônia de emoções

No filme os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne se esforçam de maneira obsessiva para evitar o sentimentalismo lacrimejante

O filme rendeu aos irmãos belgas o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano (Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 30 de novembro de 2011 às 09h57.

São Paulo - Em uma sucessão de episódios bem demarcados, crus e singelos, O Garoto de Bicicleta conta a história de Cyril, um menino de 11 anos confiado a um orfanato. O garoto não se conforma com o abandono e decide encontrar o pai, ajudado por uma cabeleireira local, que concorda em ficar com ele aos fins de semana. É uma demanda penosa, durante a qual as ilusões infantis serão despedaçadas.

Esse relato linear rendeu aos diretores, os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano (rachado com Era Uma Vez na Anatólia, do turco Nuri Bilge Ceylan). Desde o primeiro plano, transparece a intenção de evitar o sentimentalismo lacrimejante, sempre virtual numa narrativa que envolve crianças amarguradas.

Aliás, os irmãos, oriundos do documentário, são notórios pela ascese monástica da sua cinematografia – nada de balangandãs narrativos. Consta que aqui afrouxaram a frugalidade, introduzindo trilha sonora e elenco midiático. Discordo.

O esforço para regular a voltagem emocional é obsessivo. O menino (Thomas Doret, selecionado entre 200 garotos) não é propriamente um querubim: irascível e taciturno, não inspira empatia incondicional – às vezes, temos vontade de lhe dar uns cascudos. E o orfanato, com quadras, videogames e gramados que parecem aparados com uma pinça, não evoca exatamente a Febem.

No papel da cabeleireira Samantha está a belga Cécile De France. Uma atriz conhecida? OK, ela guarneceu Além da Vida, filme de 2010, do norte-americano Clint Eastwood. Mas a sua composição em O Garoto de Bicicleta se submete a uma austeridade espartana. A doçura é transmitida apenas pela linguagem corporal – não aflora nem um murmúrio de ternura.

Perto do final, ela pede um mísero beijinho à criança, que lhe concede o beijo mais mixuruca do mundo. Certos momentos fazem lembrar uma frase de O Demônio das Onze Horas (1965), do francês Jean-Luc Godard: “Não dá para conversar com você. Você nunca tem ideias, só sentimentos”. Neste caso, é o contrário: uma parcimônia de emoções numa história eminentemente visceral.


Band-Aid Emocional

A princípio, o roteiro previa que Samantha fosse uma fada, uma fantasia do menino rejeitado. Felizmente, essa opção estapafúrdia foi descartada. Porém o teor da personagem continuou desequilibrado. É difícil engolir o altruísmo samaritano da cabeleireira – afinal, Cyril, que até ontem ela nunca vira mais gordo, é um pestinha que logo de cara escangalha o salão de beleza.

Também é difícil aceitar a frieza do pai do garoto – implausível, embora não impossível. A trilha sonora brota precisamente nas ocasiões em que a rejeição paterna é mais ignóbil­. Segundo os diretores, mobilizaram a música para oferecer um consolo a Cyril.

E não passa disso: um band-aid emocional. Ninguém pense que a coisa se transfigurou num musical da Metro coreografado pelo norte-americano Bubsy Berkley. Paradoxo: um filme realista, mas nem sempre verossímil.

O Garoto de Bicicleta recorda a cada cinéfilo uma genealogia subjetiva. A mim, ocorreu Glória (dirigido pelo norte-americano John Cassavetes em 1980), Pixote: A Lei do Mais Fraco (filme do argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco, de 1981, expurgado da sordidez barroca) e, inevitavelmente, Ladrões de Bicicleta (o clássico neorrealista do italiano Vittorio De Sica, de 1948).

Também aqui a bicicleta é um símbolo sutil: do afeto fugidio (presente do pai, que depois a vendeu), da dimensão lúdica da infância (Cyril faz acrobacias para Samantha, na sua única efusão carinhosa) e da liberdade (com esse meio de transporte, ele pode ir aonde quiser).

Oscilando entre o repúdio e a tentação da emoção, O Garoto de Bicicleta vende o seu peixe. Por vezes, essa bicicleta solta os freios e lembra menos um anódino brinquedo do que aquelas motos dos globos da morte dos circos de antigamente. A qualquer instante, pode tombar e semear a tragédia. Mas ninguém – nem os irmãos Dardenne – é de ferro. A inocência traída é resgatada. Resta saber se ainda é infância.

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São Paulo - Em uma sucessão de episódios bem demarcados, crus e singelos, O Garoto de Bicicleta conta a história de Cyril, um menino de 11 anos confiado a um orfanato. O garoto não se conforma com o abandono e decide encontrar o pai, ajudado por uma cabeleireira local, que concorda em ficar com ele aos fins de semana. É uma demanda penosa, durante a qual as ilusões infantis serão despedaçadas.

Esse relato linear rendeu aos diretores, os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano (rachado com Era Uma Vez na Anatólia, do turco Nuri Bilge Ceylan). Desde o primeiro plano, transparece a intenção de evitar o sentimentalismo lacrimejante, sempre virtual numa narrativa que envolve crianças amarguradas.

Aliás, os irmãos, oriundos do documentário, são notórios pela ascese monástica da sua cinematografia – nada de balangandãs narrativos. Consta que aqui afrouxaram a frugalidade, introduzindo trilha sonora e elenco midiático. Discordo.

O esforço para regular a voltagem emocional é obsessivo. O menino (Thomas Doret, selecionado entre 200 garotos) não é propriamente um querubim: irascível e taciturno, não inspira empatia incondicional – às vezes, temos vontade de lhe dar uns cascudos. E o orfanato, com quadras, videogames e gramados que parecem aparados com uma pinça, não evoca exatamente a Febem.

No papel da cabeleireira Samantha está a belga Cécile De France. Uma atriz conhecida? OK, ela guarneceu Além da Vida, filme de 2010, do norte-americano Clint Eastwood. Mas a sua composição em O Garoto de Bicicleta se submete a uma austeridade espartana. A doçura é transmitida apenas pela linguagem corporal – não aflora nem um murmúrio de ternura.

Perto do final, ela pede um mísero beijinho à criança, que lhe concede o beijo mais mixuruca do mundo. Certos momentos fazem lembrar uma frase de O Demônio das Onze Horas (1965), do francês Jean-Luc Godard: “Não dá para conversar com você. Você nunca tem ideias, só sentimentos”. Neste caso, é o contrário: uma parcimônia de emoções numa história eminentemente visceral.


Band-Aid Emocional

A princípio, o roteiro previa que Samantha fosse uma fada, uma fantasia do menino rejeitado. Felizmente, essa opção estapafúrdia foi descartada. Porém o teor da personagem continuou desequilibrado. É difícil engolir o altruísmo samaritano da cabeleireira – afinal, Cyril, que até ontem ela nunca vira mais gordo, é um pestinha que logo de cara escangalha o salão de beleza.

Também é difícil aceitar a frieza do pai do garoto – implausível, embora não impossível. A trilha sonora brota precisamente nas ocasiões em que a rejeição paterna é mais ignóbil­. Segundo os diretores, mobilizaram a música para oferecer um consolo a Cyril.

E não passa disso: um band-aid emocional. Ninguém pense que a coisa se transfigurou num musical da Metro coreografado pelo norte-americano Bubsy Berkley. Paradoxo: um filme realista, mas nem sempre verossímil.

O Garoto de Bicicleta recorda a cada cinéfilo uma genealogia subjetiva. A mim, ocorreu Glória (dirigido pelo norte-americano John Cassavetes em 1980), Pixote: A Lei do Mais Fraco (filme do argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco, de 1981, expurgado da sordidez barroca) e, inevitavelmente, Ladrões de Bicicleta (o clássico neorrealista do italiano Vittorio De Sica, de 1948).

Também aqui a bicicleta é um símbolo sutil: do afeto fugidio (presente do pai, que depois a vendeu), da dimensão lúdica da infância (Cyril faz acrobacias para Samantha, na sua única efusão carinhosa) e da liberdade (com esse meio de transporte, ele pode ir aonde quiser).

Oscilando entre o repúdio e a tentação da emoção, O Garoto de Bicicleta vende o seu peixe. Por vezes, essa bicicleta solta os freios e lembra menos um anódino brinquedo do que aquelas motos dos globos da morte dos circos de antigamente. A qualquer instante, pode tombar e semear a tragédia. Mas ninguém – nem os irmãos Dardenne – é de ferro. A inocência traída é resgatada. Resta saber se ainda é infância.

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