Maradona e Pelé em campo: personalidades opostas (Reprodução/Getty Images)
Ivan Padilla
Publicado em 25 de novembro de 2020 às 14h58.
Última atualização em 28 de novembro de 2020 às 23h04.
É tentador cair no clichê de comparar a morte de Maradona com um passo de tango. Mas os chavões têm esse poder: sintetizam em poucas palavras um sentimento difuso. O tango é um estilo apaixonado, sexualizado, agressivo, explosivo. E que passa da euforia à melancolia. No fim, é triste.
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Maradona foi tudo isso. E sua tristeza, em tantos momentos da carreira e no final de vida, agora toma conta da Argentina. Caindo em outro lugar-comum, este inevitável, é uma trajetória oposta à de Pelé, com quem inevitavelmente divide a preferência do pódio da história do futebol.
Maradona foi polêmico e briguento. Foi gênio dentro da sua irregularidade e é adorado por seu povo. Morreu no mesmo dia que um de seus maiores ídolos, Fidel Castro. Pelé é conciliador, político, apartidário. Foi o melhor em todos os fundamentos, até no tempo de carreira, mas não goza da mesma reverência entre os brasileiros.
Maradona e Pelé, no entanto, têm um denominador comum, definitivo para a vida de ambos: eles se dividiram entre o homem e o personagem para dar conta do tamanho da celebridade.
Para Pelé, foi uma opção. Para Maradona, pela dependência das drogas, fatalidade. O craque argentino não chegou se referir a si na terceira pessoa, como o rei do futebol. Mas no fenomenal documentário Diego Maradona, de 2019, dirigido pelo britânico Asif Kapadia, essa cisão fica evidente, no enredo, nas fantásticas cenas gravadas, na boca do craque, na opinião das pessoas próximas. O filme acaba de subir no Youtube.
Diego e Maradona começaram a se estranhar com o início do sucesso do jogador no Boca Juniors e em sua passagem seguinte um tanto apagada pelo Barcelona. O divórcio litigioso mesmo aconteceu em Nápoles, onde Maradona virou ídolo, entre 1984 e 1991. É lá onde se passa a maior parte das cenas do documentário.
A Nápoles do filme de Kapadia era uma cidade pobre, suja, violenta, desprezada pelo norte próspero da Itália. Mais ou menos como Villa Fiorito, o subúrbio onde Diego foi cresceu. A identificação foi imediata. O Napoli, time local de resultados pífios, era pequeno para ele. Mas não desproporcional.
Maradona cabia bem dentro daquele time periférico. Seu período anterior no Barcelona havia decepcionado. Os recursos lá eram limitados. Em uma cena do filme, o craque diz: "Pedi uma casa, me deram um apartamento. Pedi uma Ferrari, me deram um Fiat. Era tudo para baixo."
Aquela atmosfera adversa, no entanto, era estimulante para ele. Time e jogador precisavam um do outro para triunfar. E triunfaram. Foram dois scudetto, o título nacional italiano, uma Copa da Itália, uma Supercopa da Itália e uma inacreditável Copa da Uefa. No meio do caminho Maradona ainda foi campeão pela Argentina da Copa do Mundo, em 1986.
Um momento eletrizante do documentário é a partida entre Itália e Argentina pela semifinal da Copa de 1990. O palco do jogo foi Nápoles, onde Maradona já era deus. Mas ele enfrentaria justamente o país que o acolheu. Para quem os italianos torceram? Obviamente, para a Itália. E os napolitanos? Bem, estes se dividiram. O filme mostra torcedores locais virando o rosto para seu próprio país e apoiando a Argentina.
Ou seja, uma parcela, ainda que pequena, de italianos torceu contra a Itália, tamanha era a devoção pelo ídolo do Napoli. "Meu time é Maradona", afirma um deles.
Com os gols e os títulos vieram as festas, a perseguição dos fãs e da imprensa, as mulheres, a cocaína, os novos amigos e os mafiosos locais. Um trecho do documentário mostra Carmine Giuliano, chefe da Camorra, indo buscar Maradona em sua casa à meia noite para participar da inauguração de uma boate.
Maradona vai, claro, deixando em casa sua família. Ele diz, em certo ponto do filme: "Quando você depende da Camorra, vira sua propriedade." O elo entre máfia e craque era a droga. A mulher de Maradona, Claudia Vilafañe, comenta então que aquele não era mais o Diego que conhecia. Era outra pessoa. Era Maradona.
Maradona afirma, em outro momento: "Quando cheguei a Nápoles, fui recebido por 85.000 pessoas. Quando fui embora, estava só.” Ele havia acabado de ser pego em um exame antidoping. Era sombra já do jogador que havia sido, ainda que jogaria por bons anos. Em outra cena, o preparador físico Fernando Signorini, amigo do jogador, diz: "Com Diego eu iria até o fim do mundo. Com Maradona não daria um passo"
Maradona e Pelé, celebridades partidas ao meio, nunca foram próximos, até porque não foram contemporâneos. Mas se afastaram ainda mais nos anos seguintes à derrocada do argentino, por rivalidades intangíveis e com farpas de lado a lado. Sinal dos tempos, estiveram juntos principalmente em eventos e campanhas publicitárias, para marcas como Louis Vuitton e Hublot. A paixão separa, mas o dinheiro une.
Kapadia ainda não filmou a vida de Pelé, mas dirigiu outros dois documentários de grandes personalidades, geniais, complexas, amadas. Amy Winehouse e Ayrton Senna tiveram toda sua vida retratada, da infância à morte. Foi um percorrido completo. Com Maradona, então o único dos três personagens vivos, a intenção foi mostrar um período específico da vida do craque, em Nápoles.
Maradona chega inclusive a participar do documentário, com alguns depoimentos. Para tristeza do mundo e desespero dos argentinos, acaba de entrar para a trilogia de Kapadia como mais um personagem póstumo.